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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.7 n.1 Porto jan. 2007

 

Da conjuntura corporal e do ambiente obesogénico, relaxado e indolente

Jorge Olímpio Bento

 

1.Tanto por boas como por más razões, as condições de vida impõem-nos uma conjuntura corporal, ou seja, uma renovação das atenções dedicadas ao corpo e ao seu carácter instrumental. De resto sempre assim foi; a nossa vida e a nossa identidade sempre foram corpóreas, o corpo sempre foi uma anatomia do nosso destino. Mas talvez esta circunstância surja agora muito mais evidente do que noutras eras.

Merleau-Ponty, entre outros pensadores existencialistas, tinha alertado para isso nos anos 60 do século passado, negando a consciência como pura espontaneidade desencarnada e soberana no tocante à doação de significados e afirmando a sua encarnação num corpo cognoscitivo e reflexivo, dotado de interioridade e sentido e capaz de se relacionar com as coisas como corpos sensíveis que são. Com isso Merleau-Ponty retira o corpo da coisificação e institui-o em sede de símbolos e significados, porque ele é não num mundo natural, mas sim num universo cultural e axiológico. É um artefacto sócio-cultural; está para além do protocorpo natural e biológico. E assim incorpora o sentido estruturante da existência humana e da qualidade de vida imanente. Isto é, a vida é uma performance corporal, nós somos o nosso corpo, ele é medida e expressão do nosso ser; ambos os lados estão interrelacionados.1

Nos nossos dias, Michel Serres assinala que a aparência e a essência saem de uma mesma fonte e nada é tão profundo e abrangente como a cosmética que aplicamos na nossa pele ou como a forma da nossa apresentação e acção. Na superfície da nossa pele e comportamento torna-se visível a invisível mas verdadeira identidade, mostram-se a sensibilidade e consciência, as inclinações e tendências, as orientações e sentimentos que temos e aqueles que nos faltam. A fachada corporal e comportamental revela a nossa autêntica identidade e sensibilidade, o modo de pensarmos, idealizarmos e julgarmos.2 O mesmo é dizer que, na superfície e visibilidade das nossas atitudes, hábitos e rotinas, das nossas acções e reacções, aflora pouco a pouco, traço a traço aquilo que somos e, muitas vezes, queremos iludir.

Goethe já havia sugerido o mesmo ao afirmar que atrás do visível não há nada; no visível e na superfície é que está tudo. Que há uma relação íntima entre a obscuridade das nossas entranhas e a nossa visibilidade; que as primeiras não são mais importantes do que aquilo que é visível no corpo. A metamorfose e o crescimento terão forças próprias, mas são manifestas à superfície.

Também Carlos Drummond de Andrade navegou nas mesmas águas com esta exclamação: Salve, meu corpo, minha estrutura de viver / e de cumprir os ritos do existir! 3

Esta função do corpo é bem evidenciada pelos obesos, mostrando de modo dramático que a obesidade é uma doença sinistra, porquanto as suas implicações vão além do plano estritamente biológico. Como se sabe, pertencemos à sociedade da imagem e aparência e vivemos numa época em que a beleza, juventude, perfeição e aptidão corporais são ambições generalizadas e são definidas por um aspecto padronizado pelo culto da magreza. Ora a obesidade não se inscreve nesta matriz, nem é fácil de esconder ou disfarçar. Altera a imagem dos atingidos e causa marginalidade, com incidências negativas no plano psicológico, afectivo e social. Mais ainda, torna-se um estigma que aponta os obesos como pessoas fracas e indolentes, desprovidas de vontade e capacidade de controlo. Isto é, num tempo em que a conjuntura corporal é sobremaneira marcada pela estética e pelo culto da imagem, não é fácil aos obesos resistir aos olhares dos outros. A doença torna-se a nova identidade e a única companhia; isolam-se e evitam o contacto com as pessoas. Como resultado surge o desencanto em relação à vida.

2. A actual conjuntura corporal tem razões e expressões diferentes das de outras épocas. À medida que a civilização desenvolve a ciência e cria tecnologia, torna-se possível substituir o gado humano por máquinas. E quanto mais estas se aperfeiçoam e generalizam, mais aumenta a dimensão mental e intelectual das distintas actividades, o que redunda em afisicidade, em inactividade física e na desconsideração do corpo na maior parte das tarefas laborais e mesmo das acções quotidianas.4

Daqui resultam consequências iniludíveis para os estilos e formas de vida, para a saúde, para a civilização, para a condição humana e para a identidade das pessoas e até da nossa espécie.

Esta é uma evolução objectiva, que apresenta motivos óbvios tanto para justificado contentamento como para reflexões ponderosas. Entre estas merece particular atenção o facto de estarmos a caminhar em todo o mundo em direcção à obesidade. Ela atinge não só os adultos e idosos, mas penetra cada vez mais na população infantil, afectando já muitos milhões de crianças com menos de 5 anos de idade.

O ambiente obesogénico, o relaxamento, a indolência e a preguiça alastram por toda a parte, constituindo uma séria ameaça tanto para a saúde como sobretudo para a realização de valores educativos e sociais.

A gravidade do problema encaminha para a activação desportiva, como se esta fosse uma tábua de salvação, uma prótese para uma infinitude de insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam. Uma réstia de esperança! Para o corpo que temos e somos, “sem cuja satisfação – lembra Fernando Savater – não há bem-estar nem bem viver que resistam”.5 O mesmo é dizer que a aptidão desportiva e a condição corporal cumprem uma função instrumental; ‘condicionam’, prestam serviços e constituem pressuposto para a qualificação das restantes dimensões ou ‘condições’ da pessoa. O que é sobejamente ilustrado no caso dos idosos; é neles que melhor se vê como, na nossa sociedade da concorrência e rendimento, a ‘condição física’ serve as outras condições, como cumpre uma relevante função humanista, contribuindo para que a pessoa não morra antes do tempo no conceito de quem a rodeia.

3. A inactividade corporal e mental, hoje reinante, convida portanto a aumentar e melhorar o índice do desempenho corporal e da condição física das pessoas. Essencialmente porque o ambiente obesogénico não pode ser subestimado; ao invés, exige que olhemos através e para além dele. A situação é tão alarmante que já há mais indivíduos com excesso de peso do que com fome. Ou seja, aquilo que uns comem a mais e lhes é inteiramente prejudicial dava e sobrava para matar a fome no mundo, se houvesse suficiente sensibilidade e decência. Mas não há, nem se descortina que elas possam surgir.

Fazendo fé no que atrás ficou exposto e na constatação de Fernando Pessoa, de que o corpo é a pessoa de fora que dá a imagem da pessoa de dentro, vivemos num mundo anafado e afogado em obesidade e adiposidade, em gordura e banha, em sebo e unto, em relaxamento, desídia, preguiça e indolência. Isto é, o ambiente obesogénico afecta em igual medida por fora e por dentro; configura não apenas a fachada corporal, mas repercute-se de maneira indelével nos sentimentos, desejos e atitudes, nas posturas, comportamentos e expressões, nos olhos, no coração e na alma. Por isso o mundo exala cada vez mais um cheiro nauseabundo, tornando-se insuportável para viver. Ora é neste mundo que crescem as crianças e jovens. É mesmo assim que os queremos educar? É nesse mundo e ambiente relaxados, ditados pela ‘razão’ indolente que devem crescer?

Para combater este panorama não se aconselha uma deriva de natureza higienista ou sanitária, por mais aliciantes, encantatórios e refulgentes que pareçam os propósitos. Não precisamos de abandonar a matriz antropológica e axiológica que o desporto encerra. Do que carecemos é de mais labor pedagógico e não tanto de ‘activismo físico’, de mais moral em acção e não tanto de fisiologia, de mais reflexão filosófica e não tanto de prescrições médicas.

Nesta nossa era de crescente afisicidade, de ética indolor e de crepúsculo do dever – tão bem assinaladas por Hannah Arendt6 e Lipovetsky7 – agudiza-se a necessidade de cultivar qualidades, princípios e atitudes que, sendo centrais na condição de rendimento desportivo e corporal, são marcas fundamentais do carácter e do modelo de pessoa que tanto enaltecemos e valorizamos. A partir do momento em que os humanos, por terem comido a saborosa maçã ou terem aberto a Caixa de Pandora e terem assim espalhado no mundo os ventos e sementes da desgraça, foram expulsos do paraíso e se viram condenados a comer o pão ganho com o suor do rosto, a civilização e a cultura ocidentais instituíram um modelo de Homem e de vida, inteira e fidedignamente configurado no desporto e nas exigências e ideais que ele comporta.

Assim, enquanto não renunciarmos ao modelo de Homem que tem guiado a civilização, desde o início até aos nossos dias, o desporto continuará a ser um investimento no progresso corporal, gestual e comportamental das pessoas. Ele desafia-nos a tomarmos a gnose e a técnica, a ética e a estética dos nossos actos como pontes para a liberdade. Porque nós somos livres não pela boca falante, mas sim pela mistura que o corpo sabe realizar com os sentidos, ou seja, pelo saber, pelo querer e fazer consequentes e não pelo crer e dizer negligentes. Somos livres pela palavra convincente e pela acção correspondente. Por fazermos convergir o eixo da visão e o eixo das coisas e acções.

No desporto participamos na construção de pessoas e identidades cujo Ego é sempre um espírito incarnado, uma tatuagem corpórea da alma. Ocupamo-nos da apropriação e irradiação de mitos, símbolos e ideais através de desempenhos corporais. Da instalação em conceitos e preceitos, deveres e obrigações, ilusões e utopias. Da adesão a uma cultura de metas e compromissos, de dificuldades e desafios, de hábitos e rotinas de trabalho para lá chegar. E assim procuramos anular as fronteiras entre a alma e o mundo exterior; lavramos no esforço severo, incansável e sistemático de projectar a nossa natureza, nomeadamente o corpo, contra si própria, para além e acima de si mesma, convidando-a a não se dar por satisfeita com o seu estatuto, a suplantar-se e a chegar-se a níveis para os quais não se apresenta como particularmente predestinada. Por isso renunciar ou afrouxar na observância dos seus princípios e valores equivale a empobrecer os cidadãos nas dimensões técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas e morais e a favorecer a proliferação do laxismo e relativismo, do clima relaxado e indolente.8

Em suma, o sedentarismo, a inactividade física e as suas sequelas combatem-se não com um qualquer activismo higienista que se esgota em si mesmo, mas sim com uma actividade chamada ‘desporto’ que, por ter matriz cultural, agrega uma panóplia de valores.

4. Fernando Savater convida a situar na escola “o campo de batalha oportuno para prevenir males que mais tarde serão muito difíceis de erradicar.” A sociedade “deve reclamar a iniciativa e converter a escola em ‘tema de moda’ quando chega a hora de executar programas colectivos de futuro… Caso contrário, ninguém poderá queixar-se e apenas lhe resta resignar-se ao pior ou falar no vazio.” 9

Também neste caso da inactividade, do ambiente obesogénico, relaxado e indolente, da ética indolor, do crepúsculo do dever e do eclipse da vontade é preciso situar na escola a principal frente de batalha, embora convidando a participar nela outros sectores. Ao desporto pertence um papel cimeiro neste empreendimento, tendo em atenção que os actos desportivos somente são físicos na aparência; na sua essência são sempre decisões e exercícios da vontade. Ademais nele não se faz o que se quer, mas quer-se o que se faz.

 

1 Merleau-Ponty (1964): Fenomenologie de la Perception. Paris: Gallimard.

2 Serres, Michel (2001): OS CINCO sentidos – Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

3de Andrade, Carlos Drummond (1996): FAREWELL. Rio de Janeiro: Record.

4 de Masi, Domenico (2000 ): O Ócio Criativo. Rio de Janeiro: GMT Editores Ltda.

5 Savater, Fernando (1991): ÉTICA PARA UM JOVEM. Editorial Presença, Lisboa.

6 Arendt, Hannah (2001): A CONDIÇÃO HUMANA. Relógio D’Água Editores, Lisboa.          

7 Lipovetsky, Gilles (1994): O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Publicações Dom Quixote, Lisboa.     

8 A renúncia às exigências do desporto ajuda ainda a minar o pilar da emancipação dos indivíduos, constituído por três lógicas ou linhas de autonomia racional, particularmente notórias e centrais na prática desportiva, a saber: a racionalidade expressiva das artes, a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e a racionalidade prática da ética e do direito. (Boaventura dos Santos: Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. Cortez Editores, São Paulo, 2000).

9 Savater, Fernando (1997): O VALOR DE EDUCAR. Editorial Presença, Lisboa.