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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto

versão impressa ISSN 1645-0523

Rev. Port. Cien. Desp. v.6 n.3 Porto out. 2006

 

Nota editorial: Da falácia da ‘actividade física’

 

Jorge Olímpio Bento

 

1. As presentes considerações surgem como reacção a um refinado ataque ao desporto, perpetrado por quem tem com ele uma relação ditada por reservas, equívocos, complexos e preconceitos mentais, casados em comunhão de bens com uma confrangedora indigência cultural e filosófica. O dito ataque está a acontecer em duas frentes: no plano da lei e nas orientações perfilhadas por algumas entidades académicas. Numa e noutra frente confluem correntes de proveniências diversas, umas ingénuas e confusas e outras bem espertas e oportunistas, contribuindo todas elas para alimentar e aumentar a onda neoliberal (revestida do verniz de um hipócrita e falso humanismo) e a sua pretensão de neutralidade ideológica e axiológica, de negar e retirar ao desporto dimensões constituintes do seu património e legado de princípios e valores.

No primeiro caso trata-se da designação da nova Lei de Bases que visa regular o sector em Portugal. Ela introduziu e chamou a primeiro plano a expressão ‘actividade física’, desconsiderando e relegando o desporto para um lugar secundário.1

No segundo caso trata-se da proliferação da tendência – oriunda do espaço americano e com ramificações noutros quadrantes - de promover igualmente a ‘actividade física’ a categoria e referência centrais, não apenas no tocante à criação de cursos de pós-graduação, como também no estabelecimento e desenvolvimento de programas de acção e de linhas de pesquisa.

É contra esta tentativa de aplicar um garrote em torno do desporto que urge desencadear um movimento que faça frente aos equívocos e traga à colação a extraordinária valia da actividade desportiva. Eis uma responsabilidade e uma obrigação indeclináveis para todos quantos amam o desporto, entendem e apreciam a sua incumbência cultural ao serviço do processo de civilização dos humanos e da respectiva sociedade.

2. O pretexto para este renovado ataque ao desporto é fornecido pelos dados de numerosos estudos, bem como pelas preocupações da OMS - Organização Mundial de Saúde. Ambos apontam a inactividade física e a obesidade como as duas grandes ameaças à saúde pública no século XXI. A partir daí a ‘actividade física’, sem clarificar o seu tipo e a sua forma, é erigida em panaceia para combater a doença e para garantir a saúde; ela passa a ser recomendada e receitada para a generalidade da população, enquanto o desporto é reduzido à sua versão profissional e comercial e perspectivado como prática de uma elite, com toda a aversão, condenação e rejeição que isto suscita.

Conhece-se bem o zelo fervoroso e ideológico que anima, em regra, os arautos da dicotomia ‘povo - elite’. Assim a ‘actividade física’ é a actividade que deve ser postulada e consumida por ser saudável, sã, genuína e depurada dos excessos do desporto. Este deve consequentemente ser abandonado, por ter em cima de si os desvios, estigmas e opróbrios que cobrem, aos olhos dos populistas, todos quantos não se conformam à norma por baixo, à pequenez e insignificância, ao apoucamento e à mediania e gostam de triunfar e vencer, de almejar a superação e a excelência.

Mais, para os apologistas da ‘actividade física’ e para que se consiga o efeito ‘saúde’ basta que o indivíduo ande, se mexa e agite, que consuma minutos e calorias, que diga letras e sílabas, sem necessidade de compor palavras e frases e, muito menos, textos com sentido e significado; basta-lhe ser instintivo, natural e primitivo, não sendo necessário que melhore o seu vocabulário e reportório motores, que aprenda e aprimore gestos e actos codificados, com técnica e estética, que atinja competência desportiva, que tenha um corpo ágil e hábil, culto e civilizado, que desenvolva relações com os outros e com eles construa o seu auto-conceito e a sua auto-estima.

A falácia vai mais longe: para ter saúde e ser ‘activo’ o indivíduo não carece de enfrentar os ‘horrores’ e incómodos, a ‘opressão’ e obrigações da competição desportiva, de suportar os odores e olhares, as fintas, forças e resistências, a superioridade e humilhações infligidas pelos adversários; nem precisa de ouvir e aceitar os conselhos e reparos, as críticas e recriminações dos colegas. Não, esse fardo é dispensável, chega um qualquer empenho muscular e dispêndio energético. Como se vê, o conceito pluridimensional de ‘saúde” conta pouco, sendo mesmo atirado para debaixo do tapete!

Há outras ‘razões’ de fundo que servem de fonte de inspiração para os conselheiros da ‘actividade física’. O desmesurado enaltecimento da recreação e lazer e a insana desvalorização do trabalho – tão em voga nos dias de hoje em muitos quadrantes intelectuais - conjugam-se também para encomendar o funeral apressado do desporto. Eis aqui uma outra faceta do delírio mental! E porquê? Porque é no desporto que mais refulgem princípios caros ao trabalho (rigor, seriedade, empenho, afinco, exigências, objectivos, regras, disciplina, compromissos etc.), sem que isso leve à anulação ou subjugação dos valores e dimensões associadas ao lúdico e prazeroso. Pelo contrário, o desporto é a demonstração exuberante e cabal do quanto é possível humanizar e sublimar o labor esforçado e suado, por constituir uma síntese extraordinária e ímpar de coisas que apenas são opostas e contraditórias na aparência, nomeadamente trabalho e jogo, dor e felicidade, exigência e diversão, obrigação e liberdade, natureza e cultura, ter e ser etc.

Em suma, no modismo e americanismo da ‘actividade física’ escondem-se, embora deixem um grosso, reluzente e comprido rabo de fora, tanto o apelo ao regresso à ‘pureza’ original e selvagem como a recusa do progresso, da cultura, da tecnologia e da civilização. Rousseau, se fosse vivo, por certo não faria melhor!

3. A defesa do desporto não é, pois, ditada por uma oposição ou questão de natureza linguística; nem, muito menos, por uma embirração ou preferência terminológica. Trata-se, sim, de uma importante diferença conceptual e esta, por sua vez, contém em si essenciais diferenças filosóficas e ideológicas, que não podem ser ignoradas e escamoteadas. Não, não é ingénuo ou indiferente que a LBAFD (Lei de Bases) introduza na sua designação a ‘actividade física’ e que coloque esta à frente do desporto.

Ademais a utilização, no contexto aqui em apreço, da expressão ‘actividade física’ é absolutamente estapafúrdia. É provável que com ela se queira enfatizar a relação das formas básicas da exercitação desportiva com a saúde, assim como chamar a atenção para outra maneira, diferente da tradicional, de olhar o desporto; porém isso não autoriza semelhante aberração. ‘Actividade física’ é, neste contexto, uma expressão imprópria e equivocada, chegada tardiamente e a más horas, porquanto ela engloba tudo o que exige dispêndio de energia.2 Nisto cabem tanto actividades laborais (cavar, lavrar, jardinar, podar, assentar tijolos, pintar muros etc.), como movimentos do quotidiano e actos desportivos (andar, correr, saltar, nadar, jogar etc.), como ainda acções destinadas à satisfação de elementares necessidades sexuais e biológicas (fornicar, urinar, defecar e outros termos cuja inclusão nesta lista a educação não consente) etc. Ora não parece, nem é crível que os autores de orientações académicas e de documentos legais pretendam envolver-se, elaborar e impor normativos, prescrições e sentenças em toda esta vasta panóplia de actividades.

‘Actividade física’ é, pois, um conceito vago, difuso e transversal, sem qualquer relação de exclusividade ou de intimidade preferencial com o desporto, tomado este tanto em sentido lato como em sentido restrito; isto é, não se coaduna de modo claro com o vasto campo de exercitação desportiva, lúdica e corporal. É tudo e nada, logo é impreciso e inadequado para o fim em vista e não vai além de um pretensiosismo bacoco. Assim, por detrás da imprecisão e do acrescento não distraído nem ingénuo da nova designação, moram estigmas e complexos académicos que revelam mau relacionamento com o desporto, uma compreensão deficiente do que este representa, do sentido cultural, social, educativo e humano que ele encerra.

O país não carece de ‘actividade física’; precisa sim de fomentar a actividade desportiva, de aumentar e melhorar a prática do desporto, em toda a sua multiplicidade. É isto que o movimento associativo (com o COP à cabeça) e as instituições que cuidam séria e responsavelmente da educação e do desporto do nosso país devem afirmar. Para que não volte o tempo em que perdíamos por muitos e já era uma alegria quando perdíamos por poucos. Não se lembram do que sucedia, p. ex., no andebol, basquetebol e voleibol? Éramos os bombos certos da festa, zurzidos de forma implacável e sem apelo nem agravo. Não são preferíveis a melhoria que hoje exibimos, as vitórias que vamos conseguindo? Não sabe melhor ganhar do que perder?!

Na mesma linha de raciocínio, os cidadãos não carecem de um corpo e de um estilo de vida moldados pela ‘actividade física’; precisam sim de acrescentar ao corpo do trabalho (seja ele predominantemente manual e ‘físico’ ou mental e intelectual) e à vida quotidiana outros corpos e dimensões enriquecedores da existência; para adentrarem a porta da humanidade, precisam de ser senhores de muitos corpos e de muitas vidas num só corpo e numa só vida. O corpo ‘desportivo’ e o estilo correspondente da vida fazem parte desse ideário.

4. O desporto instala em conceitos e preceitos, princípios e ideais, deveres e obrigações, ilusões e utopias. Implica metas e compromissos, hábitos e rotinas de trabalho para lá chegar. Coloca barreiras, desafios e dificuldades e convida a nossa natureza a não se dar por satisfeita com o seu estatuto, a suplantar-se e a obter carta de alforria, procurando alcandorar-se a níveis para os quais não se apresenta como particularmente predestinada. Nele aprendemos que não podemos descansar e que o mérito e o sucesso sérios e honrados custam entrega porfiada e suada, uma vez que o talento é raro, porquanto, ao contrário do que consta no registo bíblico, Deus não criou o homem conforme à Sua imagem e semelhança; somente quando se distrai, em dia de aniversário, é que faz uma criatura à Sua medida. O desporto é uma opção pela dificuldade, em face da tentação da facilidade. Socializa no trabalho em grupo e em equipa e leva a partilhar anseios e projectos com os demais. Civiliza a conduta corporal, ética e moral em relação a nós e aos outros. E é também com o seu concurso, estímulo e ideário que, parafraseando Richard Bach (autor do hino à liberdade humana intitulado Fernão Capelo Gaivota), “podemos sair da ignorância, podemos ser criaturas perfeitas, inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!” E é isto mesmo que eu vou tentar.

Se nos dermos a comparações para o medir e avaliar, só aumentam as razões para nele acreditar; a todas as depreciações ele consegue ganhar. ‘Actividade física’ é accionismo natural; desporto é acto cultural. Ela é imanência da nossa condição; ele é prótese criada pela civilização. Ela é ditada pelo peso da excrescência; ele provém da noção de insuficiência. Desporto é algo mais e além; ela é algo menos e aquém. Nele moram a consciência da falta de forças e capacidades e a vontade da sua criação e exaltação; ela cinge à conformação, limitação e resignação. Ele aponta a lonjura e o cume da elevação; ela contenta-se com o umbigo e em olhar o chão. Nele enfrenta-se o vento e as marés; nela gasta-se o tempo e os pés. Ele quer fazer do corpo uma encarnação do espírito e inteligência; ela satisfaz-se em queimar gordura e aligeirar a indolência. Ele é marco civilizacional; ela é moda ocasional.

Ele ocupa-se da formação do carácter e do quanto este obriga; ela cuida da forma das pernas e do volume da barriga. Ele é beleza, paixão e encantamento; ela é penitência, obrigação e sofrimento. Ela é remédio e necessidade; ele é opção e exercício da liberdade. Ela pode diminuir a obesidade; ele gera riso e habilidade. Ele assume o risco com optimismo; ela segue a regra do conformismo. Ele visa o tecto ilimitado e infinito; ela o gesto contido e restrito. Ele é comunicação, partilha e comunhão; ela cumpre-se no isolamento e solidão. Ele é impulso, orgasmo, êxtase e ousadia; ela é medicamento, bula de calorias e sensaboria. Ele é euforia e sublimação da vida; ela é expiação da culpa assumida. Ela é comum ao animal; ele é próprio do ser cultural.

 

1 LBAFD - Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto

2 ‘Actividade física’ é definida por Caspersen, Powell & Christenson (Symposium: Public health aspects of physical activity and exercise, 1985, p.126), especialistas de renome mundial, “como qualquer movimento produzido pelos músculos esqueléticos que resulta em dispêndio energético para além do metabolismo de repouso”. Somente isto e nada mais; tudo e nada ao mesmo tempo. Fica assim claro quão inapropriado é o uso daquela expressão numa lei destinada a regular o sistema desportivo.