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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.21 no.2 Lisboa Aug. 2020

https://doi.org/10.15309/20psd210215 

Cuidados paliativos na demência - o que sabem os cuidadores formais

Palliative care in dementia - knowledge of formal caregivers

Joana Duarte1 & Eduardo Carqueja2

1 Mestrado em Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Portugal, up200504150@med.up.pt

2 Centro Hospitalar Universitário de S. João, EPE, Porto, Portugal, eduardocarqueja@netcabo.pt

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

O aumento progressivo da dependência associado à demência é, muitas vezes, motivo para a institucionalização. A prestação de cuidados na demência deve privilegiar a preservação da dignidade e do conforto, numa abordagem paliativa. Ainda assim, o acesso desta população a Cuidados Paliativos (CP) é insuficiente. Tendo em conta o papel essencial dos cuidadores formais, este estudo tem por objetivo descrever os seus conhecimentos sobre CP na demência. Foi realizado de um estudo qualitativo, de caráter descritivo-exploratório e de corte transversal. A amostra foi constituída por 46 cuidadores formais de idosos, que responderam a um questionário criado pelos autores, analisado segundo o método de Análise de Conteúdo de Bardin. Os resultados sugerem que a amostra foi capaz de identificar os pilares centrais dos CP: controlo de sintomas, o apoio à família, a comunicação e o trabalho em equipa. No entanto, foi ainda notório um forte estigma social negativo associado aos CP, bem como algumas crenças desajustadas sobre o âmbito destes cuidados.

Palavras-chave: demência, cuidados paliativos, cuidador formal


 

ABSTRACT

The progressive increase in dependence associated with dementia is often a reason for institutionalization. Caring for dementia should focus on preserving dignity and comfort in a palliative approach. Even so, the access of this population to Palliative Care (PC) is insufficient. Given the essential role of formal caregivers, this study aims to describe their knowledge about PC in dementia. A qualitative, descriptive and exploratory cross-sectional study was conducted. The sample consisted of 46 formal caregivers of the elderly, who answered a questionnaire created by the authors, analyzed according to the Bardin’s Content Analysis method. The results suggest that the sample was able to identify the central pillars of PC: symptom control, family support, communication and teamwork. However, there was still a strong negative social stigma associated with PC, as well as some misconceptions about the scope of this care.

Keywords: dementia, palliative care, formal caregiver


 

O aumento acentuado do padrão de envelhecimento da população a que Portugal assiste (Instituto Nacional de Estatística, 2017), está associado ao aumento da prevalência de doenças crónicas, como é o caso da demência. A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017a) define Demência como um conceito abrangente, que corresponde a uma síndrome de carácter neurodegenerativo, que resulta em défice de capacidades cognitivas e alterações de comportamento, cuja forma mais comum é a Doença de Alzheimer. A prevalência da demência está a aumentar, afetando mais de 47 milhões de pessoas a nível mundial (OMS, 2017b).

Enquanto doenças degenerativas, as demências são caracterizadas por um quadro evolutivo: se as manifestações clínicas iniciais são subtis (Prado & Jiménez-Huete, 2019) , a demência avançada corresponde a um comprometimento cognitivo profundo associado a uma completa dependência funcional (Murphy et al., 2016). Neste quadro de perda de independência, preservar a dignidade e o conforto do doente deve ser o enfoque dos cuidados (Santos, 2016). Percebe-se, portanto, que a demência avançada pode ser considerada como uma doença terminal, na qual o objetivo de muitos dos cuidados (ainda que não a sua totalidade) deve ser paliativo, maximizando o conforto e a qualidade de vida, em vez de exclusivamente curativo (Murphy et al., 2016). A OMS define Cuidados Paliativos (CP) como os cuidados dirigidos a melhorar a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, através da prevenção e alívio do sofrimento, não só físico, mas também dos psicológico, social e espiritual (Connor & Bermedo, 2014).

Apesar da noção generalizada que os CP poderiam beneficiar os doentes com demência, o acesso a CP desta população é ainda insuficiente (Teper & Hughes, 2010). Gove, Diaz-Ponce, e Georges (2017) apontam como barreiras à prestação de CP na demência o estigma associado tanto à demência como aos cuidados paliativos, especialmente nos estadios iniciais. Parece, então pertinente, realçar a necessidade de os cuidadores reconhecerem a natureza terminal da demência, de forma identificarem e anteciparem as necessidades dos doentes, implementando-se uma abordagem paliativa, independentemente do estadio da doença (Dempsey, Dowling, Larkin, & Murphy 2015).

De acordo com a Alzheimer Europe (2015), a tradição cultural de cuidar dos doentes em casa, deu lugar, nas últimas décadas, a uma crescente mudança na forma de prestar cuidados na demência (Cova et al., 2018): os cuidadores informais, geralmente familiares, foram parcialmente substituídos por cuidadores formais, tanto no domicílio como em instituições. Estes cuidadores formais estão na primeira linha do contacto com os doentes, tendo, portanto, um papel primordial nos cuidados. No entanto, Rodriguez, Reinhardt, Spinner, e Blake (2018) reconhecem que estes profissionais muitas vezes não têm formação específica para lidar com os problemas de comunicação decorrentes da demência. Também Pfeifer,Vandenhouten, Purvis, e Zupanc (2018) realçam que os cuidadores formais reportam frequentemente dificuldades na gestão dos comportamentos típicos da demência.

Tendo em conta a exigência da prestação de cuidados na demência, torna-se pertinente perceber a perspetiva dos cuidadores formais e os seus conhecimentos sobre CP. E, de facto, apesar dos muitos estudos realizados com profissionais de saúde, a literatura é ainda escassa no que diz respeito aos cuidadores formais. Assim, o presente estudo tem por objetivo descrever os conhecimentos de cuidadores formais de idosos sobre CP na demência.

Método

Participantes

Foi realizado de um estudo qualitativo, de caráter descritivo-exploratório e de corte transversal. A recolha dos dados foi realizada em duas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) da zona norte de Portugal, após solicitada a respetiva autorização, pelo que se trata de uma amostra não probabilística por conveniência. A amostra teve como critérios de inclusão cuidadores formais, que à data da colheita de dados exerçam funções na prestação de cuidados a idosos com demência e aceitem a participação voluntária no estudo, e foi constituída por um total de 46 participantes.

Material

Para a recolha de dados, foi utilizado um questionário sociodemográfico criado pelos autores, e inclui também um conjunto de itens pensados no sentido de dar resposta à questão de investigação. Assim, são solicitados dados relativos a género, idade, escolaridade, religião, estado civil, turno/ horário, formação profissional e tempo de atividade profissional na área e na instituição. Em seguida, foi aplicado um questionário criado pelos autores, relativo aos conhecimentos sobre CP, com questões que remetem para a problemática em estudo: é questionado se já vivenciou o processo de morte de familiares próximos; solicita-se uma definição de CP, em formato de resposta aberta; solicita-se que o participante avalie se presta cuidados a doentes que precisam de CP e é questionada a opinião sobre a necessidade de os doentes com demência receberem CP.

Procedimento

Foi realizado um pré-teste, de forma a garantir a compreensão das questões e a adequabilidade dos instrumentos e solicitou-se a assinatura do modelo de consentimento informado. Dos 48 questionários devolvidos, 2 foram excluídos pelo elevado número de não respostas. Após a recolha de dados, recorreu-se à metodologia de Análise de Conteúdo de Bardin (2003) para a análise do material qualitativo.

Resultados

A amostra foi constituída por 46 participantes, todos do género feminino, com idades compreendidas entre os 18 e os 56 anos, M = 39,6 (SD = 9,9). As habilitações escolares variaram entre o 6º ano e Mestrado. Verificou-se ainda que a maior parte da amostra vivenciou a o processo de morte de familiares próximos (91,3%). Todos os participantes reportaram ter uma Religião, e identificaram a Religião Católica, com exceção de 5 participantes, que não identificaram o tipo de Religião.

No que diz respeito à situação profissional, 82,2% da amostra exerce atividade por turnos, por oposição a 17,8% que desempenha atividade em horário normal, de segunda a sexta. Relativamente à formação profissional, 33 participantes afirmam ter formação em Geriatria, enquanto que apenas 4 referem ter formação em CP. Metade da amostra desempenha exerce atividade na área há mais de 5 anos, e 37% está há mais de 5 anos na Instituição.

Relativamente à análise de conteúdo dos dados qualitativos, foi efetuada a transcrição das respostas para facilitar a análise. Após a exploração detalhada deste material resultante dos questionários, os dados foram agrupados e codificados, e extraídos para uma grelha de análise, organizada em 4 categorias major: destinatários dos cuidados, cuidados per se, papel dos profissionais e mitos dos CP na demência.

Destinatários dos Cuidados

A primeira categoria que emerge da exploração do material diz respeito aos destinatários dos cuidados, sendo identificados a priori dois eixos: por um lado, o doente em CP, por outro a família.

O doente

Relativamente ao doente, os participantes associam as características da doença à necessidade de CP, sendo dado enfâse à doença grave, avançada, prolongada, incurável e terminal: "pessoas com doenças graves, incuráveis e avançadas" (P47). Ainda relacionado com a doença, o tema do fim de vida surge como recorrente, sendo utilizadas expressões como "pessoas em fase terminal" (P9), "enfrentam uma doença que ameaça a vida'' (P31) ou "cuidados prestados nas últimas fases da vida de uma pessoa"(P19). Relativamente à idade dos destinatários dos CP, importa ressalvar que apenas 1 participante considerou a hipótese de CP pediátricos: "seja em adultos ou crianças" (P18).

Os sintomas surgem também como um tema emergente, sendo referidos tanto sintomas físicos como psicológicos. Relativamente aos sintomas físicos, a dependência é o tema mais recorrente, sendo identificado por 6 participantes: "pessoas sem qualquer condição de mobilidade e com doenças graves que a impedem, andar, comer, falar entre outras" (P5).

As últimas subcategorias relacionadas com o doente dizem respeito ao diagnóstico. Assim, emergem 3 diagnósticos centrais: cancro, demência e outras doenças. O diagnóstico de cancro é referido por apenas 2 participantes: "pessoas com cancro, por exemplo" (P23) e "pessoas que ficam cancerosas" (P28). No que diz respeito ao diagnóstico de demência, as alterações cognitivas e comportamentais são referidas como as principais dificuldades: "por causa da desorientação, falta de capacidade em comunicar, alteração de comportamento, etc." (P1), surgindo a necessidade de cuidados permanentes: "porque a demência é considerada uma doença crónica, que necessita de muita ajuda e muito trabalho com o doente." (P41). Por fim, apenas 1 participante remete para o diagnóstico de outras doenças, ao associar a "doença pulmonar avançada" (P36) aos CP.

A família

Para além das variáveis relacionadas com doente, a família surge também como um dos eixos principais de destinatário dos cuidados, sendo referidos aspetos como "os cuidados paliativos asseguram (...) o acompanhamento necessário também para os familiares" (P33) ou "os cuidados paliativos desempenham um papel crucial (...) no apoio aos familiares" (P47).

Os Cuidados

Partindo da delimitação dos destinatários dos CP, importa dirigir a atenção para os cuidados prestados, nomeadamente para os seus objetivos. Desta forma, da exploração do material recolhido emergiram 7 objetivos dos cuidados, a saber-se: controlo de sintomas, tratamentos, promoção de conforto, manutenção da qualidade de vida, preservação da dignidade do doente, preservação da autonomia e respeito pelas vontades do doente.

Os objetivos dos cuidados

O Controlo de Sintomas aparece como o objetivo de cuidados mais identificado pelos participantes. Numa perspetiva mais geral de controlo sintomático são referidos aspetos como "tentativa de atenuar os efeitos das doenças" (P8); "prevenção e alívio do doente" (P18) ou "estes cuidados centram-se em (...) gerir sintomas" (P47). Numa ótica mais específica, o controlo da dor surge também como um tema recorrente. Ainda assim, importa sublinhar que, enquanto que apenas 3 participantes referem a necessidade de controlo da dor, 7 participantes dão mais ênfase ao alívio do sofrimento, o que parece remeter para um conceito mais lato, através de expressões como "de forma a que os mesmos tenham a melhor qualidade de vida livre de sofrimento" (P3).

Outro dos objetivos dos cuidados enunciados foi a promoção do Conforto. Os participantes referem a necessidade de "proporcionar conforto, saúde enquanto possível" (P2) e de "promover o bem-estar do doente e o conforto" (P45). A manutenção da qualidade de vida foi identificada por 13 participantes como um dos objetivos dos cuidados, por exemplo "estes cuidados têm como objetivo proporcionar a máxima qualidade de vida" (P6).

Foi também referida a importância de manter a dignidade do doente: "poderemos dizer que os agentes de geriatria prestam estes cuidados, pois todos os dias debatemo-nos que poderá ser o último de qualquer utente, e damos o melhor para que eles tenham dignidade melhor até ao final da vida" (P42). Por fim, 1 participante referiu a importância da promoção da autonomia do doente: "fazendo que o utente tenha a maior autonomia e dignidade possível até ao final da sua vida" (P42); e 1 outro participante sublinhou o respeito pelas vontades do doente como um dos objetivos dos cuidados: "criando as melhores condições" e respeitando as "vontades dos utentes" (P38).

O local de cuidados

Os cuidados prestados foram ainda diferenciados em três níveis, consoante o local de prestação de cuidados, seja no domicílio, em internamento hospitalar ou integração em instituição. É de realçar que apenas 1 participante contemplou a possibilidade de prestação de CP no domicílio do doente: em ambiente de internamento como no domicílio" (P47). A complexidade das necessidades do doente foi apontada como um fator para a saída do domicílio, para integração em instituição: "quando as pessoas precisam de mais cuidados que não têm condições de estarem em casa" (P24). Relativamente ao internamento hospitalar, foram diferenciados dois exemplos, o internamento per se, por oposição à Rede de Cuidados Continuados, apontada como a mais indiciada para casos de demência: "para os doentes com demência serão os cuidados continuados." (P18).

Outro tema emergente remete para a qualidade dos cuidados prestados: "trata-se de cuidados de saúde rigorosos e qualificados" (P47), o que sublinha a necessidade de formação adequada dos profissionais. Ainda relacionada com a questão da qualidade, a igualdade no acesso a estes cuidados foi igualmente referida por 1 participante: "todos devemos ter os melhores cuidados sendo na demência ou no seu juízo. Devemos tratar todos por igual." (P16).

Por último, a dimensão temporal de continuidade foi outra característica destacada no que diz respeito à prestação de cuidados. Apesar da referência generalizada da aplicabilidade dos CP nas últimas fases dos processos de doença, remetendo para a dimensão da terminalidade, foi também destacada a ideia de cuidados continuados no tempo: "suporte a longo prazo" (P18)/ "cuidados continuados e assistidos todos os dias" (P35).

O papel dos Profissionais

Tendo em conta que a análise da prestação de cuidados não pode ser dissociada dos profissionais que os prestam, o papel dos profissionais constitui outra das categorias major resultante das narrativas dos participantes. Este papel foi relacionado com 3 subtemas chave: comunicação, trabalho em equipa e prestação de cuidados diários.

A comunicação

A comunicação assume um papel central enquanto competência dos profissionais, estando implícita na relação que é estabelecida com o doente. É de realçar que 2 participantes se referem a esta relação numa lógica de vínculo afetivo: "dando o nosso carinho e amor" (P13) e "doentes em fase terminal que precisam de todo o nosso carinho, afeto, respeito e conforto" (P40). A relação de ajuda que é estabelecida entre os profissionais e os doentes é caracterizada como "aconselhamento tendo por base as competências de relação de ajuda, tais como escuta ativa, a compreensão, a empatia e aceitação incondicional do outro, a compaixão e disponibilidade" (P7). O suporte emocional, ao doente e família, é também realçado: "existem tomadas de decisão e conflitos emocionais a gerir e suportar, é aí que entra a psicologia por exemplo e o trabalho dos técnicos e auxiliares que cuidam e apoiam" (P4). Relacionadas com a tomada de decisão, estas competências comunicacionais são ainda perspetivadas como essenciais para o fornecimento de informação sobre o processo de doença: "a prestação de cuidados paliativos ajuda o indivíduo e a família a providenciar melhores cuidados e entender da doença" (P3).

Outro dos temas dominantes na esfera da comunicação diz respeito à conspiração do silêncio, na qual o evitar assuntos relacionados com a doença permite já colocar em hipótese a falta de competências de comunicação, sendo descrito que o trabalho realizado com os doentes pretende que estes "não pensem tanto nas suas tristezas e dor" (P48).

O trabalho em equipa

Ainda relativamente ao papel dos profissionais, 3 participantes sublinham a importância do trabalho em equipa, referindo-se aos CP como um "conjunto de medidas pluridisciplinares" (P4) ou uma "abordagem interdisciplinar" (P36), constituída por "uma equipa de médicos, enfermeiros e auxiliares" (P15).

Os cuidados diários

Por fim, são descritos alguns cuidados diários que são prestados aos doentes: "estes cuidados centram-se em providenciar (...) alimentação, hidratação..." (P47), reforçando a necessidade de acompanhamento permanente, tendo em conta as doenças associadas: ''algumas incapacitam fisicamente e todas psicologicamente tornando os doentes dependentes de um cuidador permanentemente" (P14).

Mitos dos CP na demência

As narrativas até aqui analisadas descrevem o conhecimento dos participantes sobre os CP em geral, e mais especificamente, sobre os CP na demência. Ao perceber aquilo que os participantes perspetivam como o universo envolvente aos cuidados na demência, foram evidentes algumas crenças, que foram englobadas na categoria mitos dos CP na demência.

A ausência de insight e de sofrimento físico

De facto, quando questionados sobre a aplicabilidade dos CP na demência, 69,6% dos participantes consideram que os doentes com demência devem receber CP. No entanto, importa dirigir a atenção para os 30,4% que discordam desta aplicabilidade.

Uma das principais razões apontadas diz respeito à ausência de insight, ou seja, os doentes com demência não precisam de CP "porque nem todos sentem dor, nem se apercebem do estado em que se encontram" (P17). Outro participante vai mais além, afirmando mesmo que "só vai para esses cuidados quem está mesmo a sofrer" (P11). Outra ideia que persiste está efetivamente relacionada com a questão do sofrimento, havendo a crença de que os CP apenas se aplicam em caso de sofrimento físico, o que pode não acontecer na demência, uma vez que "um utente demente pode estar bem a nível físico" (P26).

A presença de comorbilidades

Apesar de a demência ser considerada uma doença terminal para alguns participantes

["trata-se de uma doença que acaba por levar à morte." (P39); "a demência é uma doença terminal." (P3)]
, encontram-se também relatos do conceito oposto
["uma pessoa com demência não está em estado terminal" (P24); "a demência não é uma doença terminal" (P25).]
, utilizada como argumento para a não aplicabilidade dos CP na demência. Um dos participantes refere mesmo que os CP na demência só farão sentido na presença de comorbilidades: "nem sempre o doente com demência precisa de cuidados paliativos a não ser que tenha doenças mais graves" (P5).

O estigma social

Foi ainda notório um forte peso do estigma social associado aos CP. Para além de serem considerados o último passo a dar na abordagem à doença, persiste a ideia de que todas as alternativas serão melhores do que os CP: "na demência há várias fases, umas mais agressivas que podem ser controladas e outras menos agressivas. Tenho lidado com as várias e com paciência tudo se compõe, não é preciso esses cuidados." (P13). Este estigma é ainda visível quando 1 dos participantes refere que doentes com demência não devem receber CP "porque devem ser tratados de forma igual" (P32), a sugerir uma avaliação negativa destes cuidados.

Ainda assim, 56,5% da amostra reconhece que presta cuidados a doentes que necessitariam de CP. No entanto, esta necessidade está intrinsecamente relacionada com a terminalidade.

A questão da proximidade da morte está ainda muito associada aos CP, sediada na crença de que os CP apenas fazem sentido na fase terminal: "porque a demência tem vários graus de evolução e numa fase terminal sem dúvida alguma os cuidados paliativos asseguram o bem estar" (P33); "no caso de estarem em sofrimento e em fase terminal" (P9); "os cuidados paliativos desempenham um papel crucial no cuidado da pessoa com demência que está em fase terminal" (P47). Este estigma remete para a aplicabilidade dos CP na demência, mas apenas numa fase terminal: "na demência chega uma fase em que necessitam de cuidados paliativos" (P37).

No polo oposto, 43,5% da amostra considera que não presta cuidados a doentes que necessitam de CP. As principais razões apontadas prendem-se com o próprio local onde desempenham atividade profissional - o contexto de IPSS: "no meu posto de trabalho não temos cuidados paliativos" (P15); "trabalho num lar e não numa casa de saúde que presta cuidados paliativos" (P25). A forte associação de CP a ambiente hospitalar acaba por condicionar esta perceção, havendo mesmo 1 participante que refere não ter tido "oportunidade para isso" (P26), ao excluir a hipótese de doentes com necessidades paliativas estarem integrados em contexto de IPSS.

"Não há mais nada a fazer"

Outro dos mitos relacionados com os CP na demência diz respeito à noção de "fim da linha", ou seja, os CP apenas são relevantes quando "não há mais nada a fazer" (P11).

Discussão

Relativamente à formação profissional, é de realçar que 28,3% da amostra refere não possuir formação específica na área da geriatria. Como já foi referido, a exigência do cuidado a idosos, requer uma formação adequada, pelo que esta ausência de formação poderá ser preocupante. Efetivamente, a Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD, 2018) recomenda a implementação de formação específica sobre cuidados na demência para os funcionários de instituições de longa permanência, tanto para trabalhadores de ação direta como elementos de direção, uma vez que conhecimentos específicos sobre a gestão de comportamentos na demência são essenciais para a prestação de cuidados de qualidade. Já no que diz respeito à formação em CP, os números são ainda mais alarmantes, com apenas 9% da amostra referir ter formação em CP. De facto, lidar com a vulnerabilidade que advém da perda de autonomia decorrente da demência exige o domínio de um conjunto de conhecimentos específicos, pelo que será importante deixar o alerta da necessidade de formar estes profissionais, nos temas da demência e dos CP, de forma a promover cuidados de maior qualidade. Também Jansen et al (2017) realçam não só a importância de aumentar as competências destes profissionais de forma a melhorar a qualidade dos cuidados prestados, mas também a necessidade de uma mudança na maneira como a profissão é conceptualizada: em vez de ser considerado um trabalho não qualificado, e, portanto, mal remunerado, urge destacar a dedicação e resiliência necessárias para responder às necessidades físicas e emocionais desta população.

Este estudo permitiu ainda retratar os conhecimentos dos cuidadores formais sobre os CP. Logo à partida, um olhar sobre as categorias resultantes da análise de conteúdo permite perceber que, apesar de bastantes domínios identificados irem ao encontro daquilo que é a definição de CP da OMS (Connor & Bermedo, 2014), o surgimento de uma categoria de Mitos dos CP na demência permite desde já perceber que há ainda muito desconhecimento sobre o âmbito dos CP.

Apesar disso, foram identificados aqueles que são os pilares centrais dos CP: o controlo de sintomas, o apoio à família, a comunicação e o trabalho em equipa (Neto, 2006). Relativamente aos objetivos dos cuidados foram identificados o controlo sintomático e a manutenção da qualidade de vida do doente, tendo por base a preservação da sua dignidade e da autonomia. Esta dimensão está intrinsecamente relacionada com os princípios da ética biomédica (Beauchamp & Childress, 2001). No que diz respeito ao controlo de sintomas, as questões do controlo da dor e do alívio do sofrimento foram também bastante referidas, a par dos cuidados diários prestados. Os participantes foram também capazes de identificar a díade doente - família como o destinatário dos cuidados. Foi ainda sublinhado o papel fulcral da comunicação na relação entre o doente e os profissionais, não só numa dimensão mais relacional/emocional, mas também direcionada para a partilha de informação sobre o processo de doença. A equipa, multidisciplinar, tem assim um papel preponderante no apoio ao doente e à família.

Relativamente ao doente, foi também interessante perceber que há todo um conjunto de patologias associadas aos CP, incluindo a demência. Resultados semelhantes foram obtidos por Wallerstedt, Benzein, Schildmeijer, e Sandgren (2019). No entanto, há que realçar algumas incongruências no que diz respeito à demência. Apesar de a maior parte da amostra considerar que os doentes com demência devem receber CP, cerca de 30% são da opinião oposta. Algumas das razões apontadas são, de facto, alarmantes, nomeadamente o facto de os doentes com demência não terem insight sobre a sua condição ou a ausência de um sofrimento extremo que justifique a ação dos CP. Foi, então, notório um forte estigma social negativo associado aos CP. Shen e Wellman (2019) encontraram resultados semelhantes, e alertam ainda para o facto de o estigma associado aos CP estar na base de uma menor probabilidade de vir a recorrer aos CP, tanto para si próprio como para um familiar.

Ainda assim, apesar de a maior parte da amostra reconhecer que presta cuidados a doentes que precisam de CP, esta necessidade está muito relacionada com o fim de vida. Efetivamente, a recorrência do tema da terminalidade denota ainda uma forte associação de CP à fase terminal. Hill, Savundranayagam, Zecevic, e Kloseck (2018) obtiveram resultados semelhantes num estudo sobre as barreiras do acesso a CP na demência em instituições de longa permanência: os profissionais manifestaram incerteza de quando iniciar CP, devido à confusão entre o conceito de CP e de cuidados de fim de vida. Com efeito, no presente estudo vários participantes associam a necessidade de CP à proximidade da morte, para quando nada mais há a fazer, a traduzir um total desconhecimento sobre o âmbito dos CP.

Estas crenças erróneas relativas ao âmbito dos CP, nomeadamente a associação de CP apenas à fase terminal da doença, ou a crença de que os CP são antagónicos aos tratamentos curativos estão mesmo na base do facto de 30% da amostra discordar da aplicabilidade dos CP na demência, e de 44% da amostra não reconhecer que presta cuidados a doentes que necessitariam de CP. Mais uma vez se destaca a necessidade urgente de formação, numa tentativa de combate ao estigma que persiste em torno dos CP. É imperativo disseminar a necessidade de intervenção precoce em CP, mostrando que são benéficos no caso de doenças crónicas, como a demência, e distingui-los de cuidados em fim de vida. Portanto, propõe-se a meta de dotar as instituições das competências para que possam promover ações paliativas, aplicando, de forma ajustada, os princípios e filosofia dos CP, em benefício dos seus utentes, e suas famílias.

Por fim, considera-se a necessidade de replicar o estudo, recorrendo ao método de entrevista semiestruturada, uma vez que a resposta escrita não permite que o investigador aprofunde ou solicite mais esclarecimentos sobre as respostas dadas pelos participantes. Ainda assim, considera-se que este projeto de investigação permitiu trazer um contributo relevante para o conhecimento da perceção dos cuidadores formais de idosos com demência sobre os cuidados em fim de vida.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Alameda Prof. Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto, email: up200504150@med.up.pt

 

Recebido em 16 de Setembro de 2019/ Aceite em 04 de Maio de 2020

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