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Psicologia, Saúde & Doenças

versión impresa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.20 no.3 Lisboa dic. 2019

https://doi.org/10.15309/19psd200317 

O processo de ancoragem na representação social de líderes evangélicos sobre aids

The anchoring process in the social representation of evangelical leaders on aids

Caren Santo1, Antônio Gomes1, Pablo Couto2, Camila Souza3, Rafael Wolter4, & Samantha Pereira2

1Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil, gamaesouza.edu@gmail.com, mtosoli@gmail.com

2Colegiado de Enfermagem, Centro de Ensino Superior de Guanambi. Guanambi, Brasil, pabloluizsc@hotmail.com, samantha.uefs@gmail.com

3Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil, ccsouza@into.saude.gov.br

4Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Brasil, rafaelpeclywolter@gmail.com


 

RESUMO

O objetivo desse estudo foi analisar as representações sociais de líderes religiosos evangélicos pentecostais acerca do HIV/Aids, em sua interface com as construções representacionais sobre pecado e Deus. Trata-se de um estudo qualitativo e descritivo fundamentado na Teoria das Representações Sociais em sua abordagem processual, incluindo o processo de ancoragem. Como cenários foram escolhidas aleatoriamente três igrejas evangélicas pentecostais da mesma denominação. Os dados foram coletados através de entrevistas realizadas com 30 líderes de tais denominações religiosas, no qual, utilizou-se a análise de conteúdo temática-categorial. A ancoragem da aids para os líderes religiosos está centrada na ideia de pecado, principalmente quando representam a síndrome com o castigo divino e desobediência às leis de Deus. A representação social da aids apresenta-se como negativa enquanto consequência do pecado cometido, principalmente no que se refere às práticas sexuais contrárias às leis divina presentes na Bíblia. Conclui-se que a avaliação negativa da aids e as imagens e atitudes em referência à síndrome e as pessoas que convivem com o vírus HIV, possuem raízes em representações hegemônicas da síndrome no início da epidemia.

Palavras-chave: Aids, representações sociais, religião e medicina, enfermagem em saúde coletiva.


 

ABSTRACT

The aim of this study was to analyze the social representations of evangelical Pentecostal religious leaders about HIV/AIDS, in their interface with the representational constructions on sin and God. This is a qualitative and descriptive study based on the Theory of Social Representations in its procedural approach, including the anchoring process. As scenarios, three Pentecostal evangelical churches of the same denomination were chosen at random. The data were collected through interviews with 30 leaders of such religious denominations, in which the thematic-categorial content analysis was used. The anchoring of AIDS to religious leaders is centered on the idea of ​​sin, especially when they represent the syndrome with divine punishment and disobedience to the laws of God. The social representation of AIDS presents itself as negative as a consequence of the sin committed, especially with regard to sexual practices contrary to the divine laws present in the Bible. It’s concluded that the negative evaluation of AIDS and the images and attitudes in reference to the syndrome and people living with the HIV virus, have roots in hegemonic representations of the syndrome at the beginning of the epidemic.

Keywords: Aids, social representations, religion and medicine, nursing in collective health.


 

A religiosidade marca a vida cotidiana das pessoas e seus modos de pensar e agir. Neste estudo entende-se religião como um sistema de crenças e práticas vivenciados por uma comunidade, baseado em um conjunto de escrituras ou ensinamentos a influenciar significados e comportamentos das pessoas (Couto, Paiva, Oliveira, Gomes, Teixeira, & Sorte, 2018).

Dessa forma, as religiões têm se constituído ao longo da história como instituições sociais capazes de fomentar representações e significados acerca de assuntos cotidianos, sempre com intuito de influenciar os pensamentos e ideias dos grupos sociais e dos indivíduos, a fim de preservar as suas práticas e os seus valores característicos. Diante dos vários vieses que a epidemia da AIDS tomou nos últimos anos, as igrejas, na figura de seus líderes tem difundido opiniões e discursos sobre as práticas que permeiam a sexualidade e o cotidiano das pessoas, com destaque para a defesa do sexo no matrimônio e as objeções quanto ao uso do preservativo, o que torna muitos fieis reféns de doutrinas que taxam o que é certo ou não no tocante ao exercício da sexualidade ou prática sexual (Couto et al., 2017). Desde o início da epidemia do HIV/AIDS, circulavam nos meios de comunicação domínios configurados por morte, contágio, e sexo, favorecendo a eclosão de estigmas e preconceitos oriundos de concepções de ordem moral, social e biológico (Pinho et al., 2017; Trigueiro et al., 2016).

A priori, no mundo, em geral, a infecção acometia as pessoas de classes sociais mais elevadas e populações excluídas socialmente (gays, prostitutas e usuários de drogas), em seguida, prosseguiu a outros grupos sociais como heterossexuais, mulheres monogâmicas, idosos, crianças, que não são considerados vulneráveis (Labra, 2015; Silva, Duarte, Nelson, & Holanda, 2013). O que se sugere, como foi apontado em um estudo de intervenção com adolescentes americanos afrodescendentes, (realizado em Nova Orleans, Estados Unidos, entre 2012 e 2014), sobre os comportamentos de risco para a saúde sexual, que além dos fatores comportamentais, os culturais que determinam as construções sociais da masculinidade e feminilidade como as religiões, podem, em determinadas situações, mascarar as vulnerabilidades das pessoas (Jenner et al., 2016). Além disso, como foi destacado em outro estudo realizado com adolescentes do sexo feminino, em Zâmbia na África, que a AIDS é uma doença estigmatizante, por ser uma infecção decorrente da prática sexual, e as civilizações cujos valores são fundamentados em culturas e religiões patriarcais, cercam a sexualidade e o sexo de tabus e estigmas (Mackworth-Young et al., 2017).

As representações sociais são adequadas a este estudo, por possibilitar a observação de ideias, discursos e comportamentos do senso comum refletidos na história de vida e nas vivências cotidianas, além contribuir para apreensão e análise dos significados que as pessoas (nesse estudo líderes evangélicos pentecostais) possuem sobre fenômenos e objetos da sociedade, difundidos e compartilhados nos grupos de pertença social (Moscovici, 2012). Quando as dimensões simbólicas que são/foram construídas histórica e socialmente sobre a aids são identificadas entre os grupos sociais, o processo de formação representacional, sob a égide da ancoragem, torna mais nítido as ideias presentes nos sistemas cognitivos das pessoas e que sustentam comportamentos e práticas adotados frente aos diversos fenômenos sociais (Jodelet, 2001). Ao serem reveladas a complexa e relevante relação entre representações e práticas, as representações revelam aspectos socais mais densos, em decorrência dos discursos e comportamentos adotados por líderes religiosos diante de pessoas que convivem com o HIV ou que desempenham práticas sexuais que contrastam com as normas morais religiosas.

Diante disso, objetivou-se analisar o processo de formação das representações sociais de líderes religiosos evangélicos pentecostais acerca do HIV/Aids, em sua interface com as construções representacionais sobre pecado e Deus.

Método

Participantes

Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, baseada na Teoria das Representações Sociais proposta por Moscovici (2012) em sua abordagem processual, sistematizada por Denise Jodelet, que inclui o processo de ancoragem, o qual tende a transformar o estranho e desconhecido em algo conhecido, através de um sistema de classificação e conhecimento que torna real e prático concepções do inconsciente produzidas no sistema de cognição humano (Jodelet, 2001).

Como cenários do estudo foram escolhidas três igrejas evangélicas pentecostais da mesma denominação nas cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, Brasil, de forma aleatória. Na etapa de coleta de dados, foram realizadas entrevistas em profundidade com 30 líderes evangélicos, configurando numa amostra não probabilística de conveniência, a partir dos seguintes critérios de inclusão: serem nomeados pastores, evangelistas e presbíteros pertencentes à mesma convenção e maiores de 18 anos. Aqueles que se encontravam afastados de suas atividades eclesiásticas foram excluídos.

Material

A entrevista foi dividida em três momentos caracterizados por blocos temáticos, a saber: sobre a aids, sobre a pessoa com aids, e o último bloco sobre Deus, fé e Teologia e aids. As perguntas eram adaptadas à medida que o entrevistado não conseguia captar o seu sentido.

Os dados foram coletados em agosto e setembro de 2014. Como estratégia, foi levantada a agenda de reuniões dos líderes evangélicos e, com a autorização do pastor presidente, foi liberado um espaço nestas reuniões para apresentar a pesquisa e proceder com a coleta de informações. No total, foram realizadas 05 reuniões nos turnos da manhã, da tarde e da noite, no intuito de obter uma maior profundidade nas respostas dos participantes.

Para analisar os dados obtidos através das entrevistas utilizou-se a análise de conteúdo temática-categorial proposta por Bardin (2011), na qual, pretendeu-se buscar nesse conteúdo os elementos que permitem identificar como se processam e se constroem, a partir da objetivação e da ancoragem tais representações para os participantes da pesquisa (Jodelet, 2001; Oliveira, 2013).

Para realizar a análise, alguns conceitos foram necessários para seu desenvolvimento, como os de Unidades de Registro (UR), Construção de Categorias (CC) e Análise Categorial (AA). Conceitua-se UR como uma unidade de segmentação ou de recorte, a partir da qual se faz a separação do conjunto do texto para análise. Essa unidade pode ser definida por uma palavra, uma frase ou um parágrafo do texto; ou ainda, o segmento de texto que contém uma assertiva completa sobre o objeto em estudo (Bardin, 2011). A definição de UR para a concretização do presente estudo se deu no recorte da menor fração do discurso dos sujeitos que possuíssem um sentido ligado ao objeto de estudo, que poderia ser uma palavra, uma frase ou um parágrafo. Já CC são rubricas ou classes que reúnem um conjunto de elementos sob um título genérico, efetuado segundo os caracteres comuns destes elementos. Por fim, a AA considera a totalidade do texto na análise, passando-o por um crivo de classificação e de quantificação, segundo a frequência de presença ou de ausência de itens de sentido (Bardin, 2011).

Procedimento

Destaca-se que o estudo foi desenvolvido à luz dos dispositivos apresentados como normas e diretrizes de desenvolvimento de pesquisa na Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). O projeto foi submetido ao comitê de ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e aprovado sob o parecer nº 699.220, de 2014.

Resultados

Nesta seção são apresentados os resultados obtidos a partir da análise de conteúdo temática-categorial das entrevistas realizadas com líderes religiosos evangélicos acerca das representações sociais da aids, contextualizando-as dentro da abordagem estrutural destas representações.

No que se refere à variável sexo, os participantes das entrevistas, eram majoritariamente do sexo masculino, com pouca participação feminina. Os cargos eclesiásticos mais altos foram disponibilizados há pouco tempo para fiéis do sexo feminino, refletindo nos dados encontrados neste estudo.

Percebe-se que a faixa etária de 50 a 59 anos possui a maior expressividade de participantes em ambas as etapas de coleta de dados. Quanto à variável tempo de evangélico, a faixa na qual se concentra o maior tempo é entre 20 e 29 anos, em ambas as etapas de coleta de dados. Em relação ao cargo eclesiástico de maior nível que possuem, cuja função, dentre outras é a do pastorado, ou seja, estar apto a conduzir uma comunidade religiosa, percebe-se que a maioria dos participantes das entrevistas, respectivamente, é nomeada pastor; seguido dos cargos de evangelista e presbítero. Quanto às variáveis escolaridade e estado conjugal, percebe-se que a maioria dos participantes possui apenas o ensino médio e quase a totalidade é casada.

Neste sentido, o corpus abarcou 30 entrevistas, resultando em 780 unidades de registro (UR), distribuídas em 115 temas/unidades de significação. Originaram-se da segmentação do material discursivo 04 categorias, conforme exposto no Quadro 1.

 

 

De um modo geral, os líderes religiosos revelam suas representações sociais acerca da aids baseados em seu conhecimento cristão, atrelado às informações que circulam no senso comum, bem como no universo reificado. Destacam, ainda, o papel da igreja, da religião e de Deus no contexto do HIV/Aids, principalmente no que se refere ao encontro da cura e na forma de lidar com a pessoa que convive com a síndrome.

Para este artigo, será aprofundado a seguir, a descrição e a discussão da categoria 2, expostas no Quadro 1, que aborda o processo de ancoragem na representação social da aids para líderes evangélicos.

Esta categoria abarca 270 URs, representando a maior da análise, com 34,6% do material analisado. Os líderes evangélicos, nesta categoria, retratam a aids em um contexto ainda mais religioso, principalmente ao relacionarem a síndrome com Deus e com o pecado, além de referirem elementos que indicam sua ancoragem.

Em relação à ancoragem da aids, os líderes, ao falarem sobre si ou sobre o que a igreja e a liderança pensam sobre a origem da aids, representam a síndrome principalmente como proveniente do castigo divino, maldição de Deus ou punição divina.

A igreja vê a aids como uma doença, vamos dizer assim, como se fosse um castigo de Deus (E 14).

Concordo [com a aids como castigo divino] [...] Como forma de castigo, porque o pecado acontece e vem a consequência, que é o castigo. [...] Eu acredito que a aids entra como forma de castigo de Deus (E 04).

Uma causa destacada pelos líderes religiosos sobre a origem da aids associada à ideia de castigo divino é a desobediência das pessoas aos mandamentos divinos, descritos no livro sagrado cristão, a bíblia. Dessa forma, a aids está ancorada, igualmente, no ato de desobedecer a Deus, que tem como consequência, o surgimento de todas as doenças que existem no mundo.

Então, a aids, ou quaisquer outras doenças, são resultados dessa atitude negligente do homem em relação às orientações de Deus. Se o homem pegasse a bíblia e usasse como manual de conduta social, medicinal, espiritual, nós não teríamos tantos problemas como nós temos hoje (E 27).

Metade dos entrevistados acreditam que a aids é fruto do castigo de Deus ou punição pela desobediência a ele. Associaram, ainda, a síndrome à homossexualidade e demonstraram desconhecimento quanto à origem da aids.

Ressalta-se, ainda, que para a liderança evangélica, a desobediência faz parte da dimensão conceitual de pecado, já que este está relacionado a não cumprir ou a descumprir um mandamento ou uma orientação divina, descritos principalmente na bíblia, considerada como a palavra de Deus. Destaca-se, igualmente, a utilização do conceito de pecado como transgressão, que possui o mesmo sentido de desobediência ou violação, no caso deste estudo, da lei divina, bem como ir contra a vontade de Deus e fazer algo que o desagrade.

Pecado é algo que fazemos que não agrada a Deus, que transgride alguma lei de Deus. O mundo peca sem conhecer a Deus, quando nós que conhecemos a Deus pecamos, transgredimos alguma coisa que fere algo que está em Deus (E 10).

Pecado é fazer aquilo tudo que desagrada a Deus. Fez algo... Vou fazer algo, isso vai desagradar a Deus, isso é o pecado (E 18).

Se a aids está ancorada no castigo divino e na desobediência a Deus, também surge a palavra “peste”, demonstrando o desdobramento: desobediência a Deus - castigo divino - peste, ou seja, ao desobedecer ao mandamento divino, tem-se como consequência um castigo aplicado pelo mesmo Deus, que se concretiza no envio de pestes para punir.

E para mim é uma moléstia, conhecida como uma peste (E 02).

Não diretamente, mas semelhante, com pragas, pestes que surgiram no tempo antigo e que também estão surgindo nessa época, a palavra peste pode ser qualificada como a aids (E 04).

Embora a maioria conceba a aids como castigo de Deus, existem alguns líderes que discordam desta afirmativa, com a justificativa de que este é um pensamento da sociedade e não da religião, já que o propósito divino é abençoar a humanidade e não castigá-la.

Não concordo não [com a aids como um castigo divino], porque Deus sabe o que faz, tenho certeza de que Deus sabe o que faz. Então para mim, não concordo não (E 17).

Saindo do universo de contextualização religiosa da ancoragem da aids, percebe-se, ainda, que a aids está ancorada no câncer, especialmente quando a associam à terminalidade da doença e a morte, bem como a sua incurabilidade, em muitos casos. Neste sentido, ao exemplificarem comparações da aids com alguma outra doença, o câncer é a referência. Essas comparações estão relacionadas principalmente ao modo de transmissão e à agressividade e gravidade das doenças, caracterizando o câncer como pior do que a aids.

[Aids é] Como um câncer (E 04).

E existem outras doenças terminais que eu já vi pessoas serem curadas. Então se Jesus cura o câncer, Ele cura a aids, não tenho dúvida sobre isso (E 07).

Em relação ao abandono ou afastamento de Deus, que leva à infecção pelo HIV/Aids conforme relatado pelos líderes religiosos, é ocasionado pela própria ação de pecar, já que, para os participantes do estudo, o pecado é ou leva à separação/desvio do homem em relação à Deus, de acordo com as falas a seguir:

Algo que vem desviar o homem de Deus (E 01).

Tudo aquilo que é abominável aos olhos do senhor e que faz a separação entre o homem e Deus (E 06).

As doenças, de modo geral, como a aids, são consideradas consequências dos pecados cometidos pelos seres humanos contra Deus e, colhê-las, não se trata de castigo ou punição, mas sim de uma justiça divina.

Do ponto de vista espiritual, como todas as outras doenças - porque que ela não é diferente das outras, nós já tivemos outras epidemias no mundo - Ela é resultado do pecado, não tenho dúvida. Mas não é o pecado específico, porque todo pecado é pecado. Todo pecado terá consequência. Então do ponto de vista espiritual eu creio que é uma consequência. [...] (E 07).

Destaca-se que a reconciliação envolve, necessariamente, o abandono das práticas consideradas pecado e que levaram a pessoa a adquirir a aids, pois ser infectado pelo HIV é considerado como uma oportunidade de Deus, o qual permite que isso aconteça para que o homem mude seu comportamento. Neste sentido, a aids é vista como um freio para a sociedade e como uma reflexão do que não se deve fazer.

Porque creio eu, na vivência, já com 60 anos de idade, creio eu que se não tivesse essa taxa tão alta de pessoas contaminadas com a aids, o sexo já estaria sendo praticado nas ruas, precisa ser freado. Então na minha visão, Deus usa a aids como freio pra ainda conter a situação, pra dar ainda uma oportunidade pra humanidade olhar, ver, se tocar. E verdadeiramente começar a viver uma vida pra Ele (E 14).

Para os líderes evangélicos, a principal forma de pecado sexual que transmite o HIV/Aids é a relação homossexual, sendo esta considerada a prática que originou a aids na humanidade. Os participantes ainda destacam a relação homossexual masculina como a principal transmissora do vírus, devido à relação anal. Neste sentido, a aids veio especialmente para “frear” este tipo de relação.

Eu tive um primo que aos 22 anos, era homem normal, mas quis se tornar homossexual e contraiu a aids e morreu. Ele não conseguiu se salvar (E 24).

[aids é] como se fosse uma posição de Deus para conter a homossexualidade, conter toda a prostituição (E 14).

Apesar dos líderes associarem a aids à homossexualidade, reconhecem que não é apenas através da relação homossexual que a aids é transmitida, destacando que qualquer pessoa que tem relação sexual desprotegida pode ser infectada pelo HIV, inclusive em uma relação heterossexual. Neste sentido, não consideram a aids como “câncer gay”.

Pode ser uma relação homossexual, qualquer tipo de relação... A pessoa não se preservou, ela colocou a sua vida e a do parceiro em risco, como também todos os outros que ela vai se relacionar [...] Então eu não posso dizer que o fato da Bíblia condenar o homossexualismo significa que, como reação disso, os homossexuais estão ficando aidéticos. [...] Então não creio, de forma alguma, que a aids seja uma consequência de uma maldição de Deus sobre o seguimento gay (E 27).

Por fim, outra forma de transmissão, que também se trata de uma prática condenada pelos evangélicos, é através do uso de drogas, principalmente pelo compartilhamento de seringas nas drogas injetáveis.

Pelo compartilhamento de seringas no caso do uso de drogas. [...] Uma pessoa que usa droga ela já está por si só se predispondo não só a aids, mas a outras doenças. Evitando isso a pessoa vai estar evitando se contaminar com o vírus da aids (E 03).

Discussão

No processo de ancoragem, classifica-se e dá-se um nome a alguma coisa. Uma das lições que a epistemologia contemporânea ensina é que todo sistema de categorias pressupõe uma teoria que o defina e o especifique e especifique, inclusive, seu uso (Trigueiro et al., 2016). A ancoragem, segundo Jodelet (2001), consiste na integração cognitiva do objeto, sejam ideias, acontecimentos, pessoas e relações a um sistema de pensamento social preexistente e nas transformações implicadas (Oliveira, 2013). Sendo assim, ancorar é dar nome, classificar alguma coisa, bem como atribuir sentido e, portanto, tornar familiar coisas que sejam estranhas e ao mesmo tempo ameaçadoras (Jodelet 2001; Moscovici, 2012; Trigueiro et al., 2016).

Neste sentido, uma pesquisa constatou que as próprias pessoas que convivem com HIV/Aids representam a aids como um castigo divino, como uma forma de oportunidade para conscientização acerca do valor da vida, promovendo sua ressignificação (Colvin, 2014). Desse modo, o diagnóstico positivo para HIV induz alguns soropositivos a perscrutar a própria vida em busca de comportamentos que comprovem a trilogia: transgressão moral-aids-punição, fortalecendo o sentimento de culpa pela infecção do HIV (Gomes et al., 2012). A associação entre castigo divino e desobediência a Deus também é constatada no estudo desenvolvido na Nigéria com estudantes e funcionários de uma universidade cristã privada no país (Leite, 2015).

A representação social da aids associada ao pecado e, consequentemente, ao castigo ou punição divina foi identificada na pesquisa que apontou que nas igrejas cristãs da África, estar infectado pelo HIV é significado de ter cometido um grande pecado (Olaore & Olaore, 2014). Portanto, a epidemia do século XIV, precedida por um sinal celeste, foi apreendida como um sinal de Deus para que as pessoas pudessem corrigir as ações pecaminosas que adotavam. Como a mortalidade foi elevada, esta situação foi ancorada na ira Divina descrita no apocalipse, que contava com a eliminação de igual relação (Speakman, 2012).

A representação da aids a partir da associação à aids, encontrada nesta pesquisa, também fica evidente em um estudo realizado com estudantes pertencentes a grupos religiosos sobre sua representação social de pecado. Para os evangélicos, o pecado é caracterizado como algo que é contra os mandamentos de Deus, abominável a Deus e como errar perante Deus (Leite, 2015). Outra pesquisa desenvolvida no Facebook, com jovens católicos de ambos os sexos acerca dos consensos e dissensos sobre sexualidade e prevenção ao HIV/aids, as representações sociais dos homens que participaram revelaram que a aids é decorrente da prática sexual fora do matrimônio, tanto da infidelidade quanto realizado antes do casamento, considerado por eles como consequência do pecado cometido contra deus, mostrando que em seus inconscientes há influência das doutrinas conservadoras da religião cristã no que tange ao controle da sexualidade e da culpabilização do indivíduo que adquiriu o vírus (Couto et al., 2018).

Ancorar-se na bíblia para explicar as situações cotidianas e o que “extrapola” à realidade religiosa, é uma prática comum para os cristão um modo geral, inclusive os evangélicos e, dessa forma, desenvolvem o controle sobre a sexualidade dos fiéis e condenando aquelas pessoas que adquiriram o vírus (Couto et al., 2017; Leite, 2015). Em pesquisa desenvolvida na Zâmbia-África, com meninas adolescentes que convivem com HIV, foi apontado que, o país, por ser fortemente conservador e com influência das religiões de origem cristã na política e na sociedade, possui normas morais que estigmatiza o sexo banal e fora do matrimônio, assim como as pessoas infectadas pelo vírus causador da AIDS, cujas mensagens de prevenção vão de encontro ao que é posto pela ciência, ou seja, controlam a sexualidade com a abstinência sexual e condenam o uso do preservativo (Mackworth-Young et al., 2017).

Embora os líderes participantes acreditem que a aids esteja relacionada ao pecado, alguns esclarecem que não é através de uma prática específica considerada pecado que faz com que alguém adquira o HIV. Quanto ao cosmos materializado na ideologia cristã, pode-se observar que os dados empíricos indicam a construção de um mundo ideal, puro, santo e imaculado, saído das mãos divinas para o uso, o prazer e o consumo humanos: um jardim seminal para onde se deseja voltar, como emblema da perfeição e da decadência humana através do pecado (Couto et al., 2018; Couto et al., 2017; Pinho et al., 2016).

A história do pecado gera, automaticamente, a história da salvação e define, de maneira categórica e definitiva, dois pólos, o bem e o mal, entre os quais, os homens, de acordo com sua adesão religiosa e suas práticas cotidianas, vão se aproximando ou se distanciando. Inclui-se, aqui, os pecados que envolve o sexo e a sexualidade, que são moralizados pelas religiões cristãs e dotados de estigmas pelo conservadorismo patriarcal que imperam em tais religiões e nas sociedades influenciadas por elas (Cianelli et al., 2013). A consequência disso, no contexto religioso, são as doenças e mazelas sociais, como a epidemia da aids, cuja afirmação pode ser constatada no estudo desenvolvido sobre as mulheres adultas da América Latina e os determinantes sociais de seus comportamentos de risco, quando são destacados que as mulheres e os homens são influenciados, respectivamente, pelo marianismo (as mulheres latinas devem ser dóceis e obedientes) e pelo machismo (os machos devem ser sexualmente dominantes e ter múltiplos parceiras sexuais) difundidos pelo cristianismo (Rojas et al., 2016).

Destaca-se que a visão da homossexualidade enquanto pecado é tão difundida, que em estudo realizado com jovens gays e bissexuais que vivem com HIV/Aids, identificou-se que muitos deles acreditam que a homossexualidade é realmente pecado, ou seja, se reconhecem enquanto pecadores e, por isso, poucos são os que revelam sua orientação sexual em suas comunidades religiosas (Speakman, 2012).

Destarte, com esse controle rigoroso, que as religiões cristãs, como as evangélicas, fazem da sexualidade e do relacionamento afetivo das pessoas, torna-as significativamente mais propensas a ter relações sexuais desprotegidas com seus parceiros primários. Isso demonstra que esses papéis de gênero, influenciam questões relacionadas ao comportamento sexual, incluindo o uso de preservativos (Cianelli et al., 2013; Rojas et al., 2016).

Se, por um lado, a aids apresenta-se como negativa enquanto consequência do pecado cometido, principalmente no que se refere às práticas sexuais (em especial as relações homoafetivas e o adultério), por outro, pode ser representada como algo positivo, quando permite a (re)aproximação do homem ao divino, dando-lhe a oportunidade de refletir sobre sua vida e mudar suas ações consideradas pecaminosas.

Desse modo, os resultados permitiram confirmar os pressupostos do presente estudo: a dimensão negativa da representação social que os líderes pentecostais possuem acerca do HIV/Aids está ancorada principalmente ao pecado e, portanto, no que se refere às suas causas e formas de transmissão. Por outro lado, a representação da aids foi associada à cura divina, bem como as condições para que ela aconteça, são fortemente influenciadas pela representação de Deus. É nesta relação que a conduta dos líderes evangélicos e o modo de lidar com a pessoa que vive com HIV/Aids dentro da comunidade religiosa se estabelece.

Conclui-se que à medida que foram identificados e descritos o conteúdo e a estrutura das representações sociais da aids, emergiriam as construções sociais sobre Deus e pecado, estabelecidas na relação comparativa entre elas segundo os líderes evangélicos.

Portanto, este estudo permite ao enfermeiro atuar na promoção, no tratamento e na reabilitação da saúde da pessoa que convive com HIV, a partir da compreensão da organização do pensamento social da religião evangélica acerca da aids para, a partir de então, trabalhar juntamente com a pessoa com HIV/Aids a aceitação da doença, a vivência cotidiana com a síndrome e a adesão à terapia medicamentosa, sem reforçar as representações negativas que a religião possui sobre a aids e que acaba interferindo na qualidade de vida do indivíduo, bem como utilizando as representações positivas como estratégia para o bem viver com HIV/Aids. Destaca-se, ainda, a instituição religiosa como um espaço de produção de saberes que pode ser compartilhado com o enfermeiro e demais profissionais da saúde especialmente para a promoção da saúde e a troca de conhecimentos que permitam ao líder religioso acolher a pessoa com HIV/Aids.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 11 de Fevereiro de 2019/ Aceite em 26 de Setembro de 2019

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