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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.20 no.1 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.15309/19psd200116 

Temor e insignificância: representações sociais da hanseníase para adolescentes com a doença

Fear and insignificance: social representations of leprosy for adolescents with the disease

Fabiana Drumond Marinho1 , Susilene Tonelli Nardi2, Luziane Zaccché Avellar3, & Gilma Corrêa Coutinho4

1Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Terapia Ocupacional, Vitória, Brasil, drumondfabi@hotmail.com;

2Instituto Adolfo Lutz, São José do Rio Preto, Brasil, susilene.nardi@ial.sp.gov.br;

3Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Psicologia, Vitória, Brasil., luzianeavellar@yahoo.com.br;

4Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Departamento de Terapia Ocupacional, Vitória, Brasil, gilmaccoutinho@gmail.com


 

RESUMO

Fundamentado pela Teoria das Representações Sociais, o estudo objetivou investigar e analisar as representações sociais da hanseníase para adolescentes com a doença, além de explorar o processo de objetivação relacionando-o aos contextos de produção das representações. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, realizada com 19 sujeitos em tratamento medicamentoso para a hanseníase com idade entre 12 e 18 anos. O material verbal foi analisado pelo software ALCESTE, que gerou cinco classes. Os resultados indicaram representações marcadas por afetos positivos e negativos acerca da doença, dinâmica que se confirma no conteúdo icônico das representações. A elaboração do núcleo figurativo do objeto hanseníase, para alguns participantes, apoiou-se na ideia de tranquilidade, despreocupação e cura; para outros, foi representado como uma doença assustadora e ameaçadora. Os dados indicaram também prevalência de conhecimentos oriundos do senso comum no que diz respeito à hanseníase, contribuindo para uma construção simbólica da doença alicerçada por crenças e hipóteses pessoais por parte de alguns entrevistados. Conclui-se, portanto, a necessidade de avanço das práticas profissionais para a valorização da dimensão psicossocial, assumindo a ação legítima não só do conhecimento científico, mas como de construção da realidade, em que a partir de um processo ativo sejam efetivados espaços de produção e transformação de representações arcaicas.

Palavras-chave: representação social, hanseníase, adolescentes


 

ABSTRACT

Based on the Theory of Social Representations, the study aimed to investigate and analyze the social representations of leprosy for adolescents with the disease, as well as exploring the objectification process relating to the production of representations of contexts. Whose data were collected through semi-structured interviews conducted with 19 subjects in drug treatment for leprosy aged 12 to 18 years. The verbal material was analyzed by Alceste software, which generated five classes. The results indicated representations marked by positive and negative affects on the disease dynamics that confirms the iconic content of the representations. The preparation of the figurative core of leprosy object, for some participants, was based on the idea of tranquility, unconcern and healing; for others, it was represented as a frightening and threatening disease. The data also indicated gaps between scientific knowledge and common sense with regard to leprosy, contributing to a symbolic construction of the disease underpinned by beliefs and fanciful ideas by some respondents. It follows, therefore, the need for improvement of professional practices for the development of psychosocial dimension, taking legitimate action not only of scientific knowledge, but as the construction of reality in that from an active process to take effect production spaces and transformation of archaic representations.

Keywords: social representation, leprosy, adolescents


 

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, de evolução lenta, cujo agente etiológico é o Mycobacterium Leprae, com predileção pela pele e pelos nervos periféricos (Brasil, 2002). Atualmente sabe-se que a hanseníase tem cura, porém, se não for diagnosticada e tratada precocemente, poderá evoluir para sintomas graves, como as deficiências físicas, sendo esse um dos fatores para fazer dessa uma doença temida.

Embora a endemicidade da doença esteja em decréscimo desde 2003, novos casos continuam surgindo, mantendo o Brasil em segundo lugar no cenário mundial. Estima-se que mais de 200 mil casos novos são detectados anualmente no mundo. Em 2015 foram diagnosticados quase 29.000 casos novos no Brasil, sendo 2.113 em menores de 15 anos (Brasil, 2015). No entanto, esses números podem ser ainda maiores, conforme observado em estudo realizado por Barreto, Guimarães, Frade, Rosa, e Salgado (2012) com 1.592 crianças e adolescentes escolares em 8 municípios hiperendêmicos da Amazônia brasileira. Utilizando a estratégia de visita domiciliar para exame das pessoas residentes no mesmo domicílio do doente e exame de escolares da rede pública de ensino, esses autores encontraram cerca de 3 a 4% de estudantes com hanseníase que não foram previamente diagnosticados, sinalizando uma prevalência oculta da doença, em que os dados registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) são significativamente menores do que realmente é encontrado na população pesquisada (Brasil, 2008).

A hanseníase, amplamente conhecida pela designação de “lepra”, tem suas raízes históricas desde os tempos bíblicos com conotação repugnante e terrível. A doença era vista como uma praga, o flagelo do mundo antigo e um símbolo do pecado. Por ter sido considerada durante anos uma doença contagiosa, mutilante e incurável, inúmeras restrições foram impostas aos doentes no passado, sendo cerceados de sua liberdade e, sem contato com o mundo externo, confinados em instituições de isolamento com privações de suas necessidades básicas e afetivas (Baialardi, 2007), favorecendo repercussões socioculturais negativas na vida dessas pessoas.

Tais repercussões podem ser notadas nos estudos realizados por Batista (2014), Monte (2011), e Vieira (2010), que buscaram investigar as representações sociais de adultos com hanseníase sobre a doença. Os resultados evidenciam imagens mentais associadas à conjuntura da doença no passado - lepra - e trazem representações exclusivas e compartilhadas, revelando estigma, preconceito, medo e desinformação em relação à enfermidade.

Para compreender a maneira como os adolescentes com hanseníase apreendem a doença, empregou-se a Teoria das Representações Sociais (TRS) como arsenal teórico deste estudo.

O conceito de representação social (RS) foi introduzido por Serge Moscovici na sua obra inaugural Psychanalyse, son image et son public, publicada em 1961. Por representações sociais, Moscovici (1981) refere a um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crença das sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum (p. 181).

Portanto, as representações sociais são conhecimentos elaborados e partilhados coletivamente e, como tal, têm o poder de significar, de construir sentido, de criar realidade (Jodelet, 2001; Jovchelovitch, 2008). Nessa perspectiva, Jovchelovitch (2008) destaca que as representações não são construções mentais de sujeitos individuais; elas envolvem um trabalho simbólico que emerge das inter-relações Eu, Outro e objeto-mundo. Moscovici (2012) propôs a ação de dois processos sociocognitivos que atuam sincronicamente para explicar a construção e o funcionamento de uma representação - a ancoragem e a objetivação. A função elementar dos referidos processos é tornar o estranho familiar. O primeiro corresponde à incorporação ou assimilação de novos elementos de um objeto em categorias cotidianas e conhecidas, e que lhes são facilmente disponíveis na memória (Trindade, Santos, & Almeida, 2011). O segundo, por sua vez, torna concreto aquilo que é abstrato, ou seja, objetivar consiste em “descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem” (Moscovici, 2012).

Assim, tendo em vista que as representações dão sentido à realidade social, organizam as comunicações e orientam as condutas dos sujeitos, dar voz aos adolescentes com hanseníase, é via que permite conhecer suas crenças, imagens, opiniões e valores acerca da doença, no intuito de contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de cuidado, favorecendo um repensar sobre a enfermidade, além de orientar e incentivar a prática de autocuidado, visando impedir o aparecimento ou agravamento das deficiências físicas, promovendo melhorias na qualidade de vida dessas pessoas.

Diante de tais considerações, o estudo objetivou investigar e analisar as RS elaboradas por adolescentes com hanseníase acerca da doença, além de identificar o processo de objetivação, relacionando-o aos contextos de produções das representações.

Método

Esta pesquisa foi realizada em Unidades de Saúde de quatro municípios de médio porte do sudeste brasileiro, as quais contavam com o Programa de Controle da Hanseníase (PCH).

Participantes

Participaram deste estudo 19 adolescentes com diagnóstico confirmado de hanseníase, sendo 11 do sexo feminino e 8 do sexo masculino. Quanto à faixa etária, 9 participantes tinham idade entre 12 e 15 anos, e 10 entre 16 e 18 anos. Quanto ao estado civil, todos os entrevistados eram solteiros. Em relação à escolaridade, 6 estavam cursando o ensino médio e 12 cursavam o ensino fundamental. Apenas um adolescente afirmou ter parado os estudos no sétimo ano do ensino fundamental. No que diz respeito à ocupação, 17 adolescentes não trabalhavam, e 2 desempenhavam atividades junto aos pais, sendo que um trabalhava com reciclagem e outro em um lava-jato. Todos os entrevistados estavam em tratamento para a hanseníase.

Material

Para a coleta de dados, utilizou-se de entrevistas semiestruturadas, além de um formulário contendo perguntas que permitissem conhecer as principais características dos participantes. O roteiro de entrevista contemplou questões-guia relacionadas às concepções dos adolescentes sobre a hanseníase - sinais e sintomas, forma de contágio, tratamento, autocuidado, sentimentos e reação frente à revelação do diagnóstico e significado da doença.

Procedimento

O trabalho de campo ocorreu no período entre outubro de 2014 e março de 2015. Foi realizado contato prévio com os responsáveis pelo Programa de Controle da Hanseníase nos locais referidos, solicitando a colaboração destes para a seleção dos participantes. Mediante a indicação dos profissionais, foram feitos contato e agendamento com os adolescentes, que foram instruídos a comparecer com um responsável no dia agendado, autorizando sua participação na pesquisa. As entrevistas foram realizadas individualmente na própria unidade de saúde em que os adolescentes estavam em tratamento, de forma que todas as instituições cederam espaço em ambiente privativo, sem a interferência externa. Após o consentimento/assentimento, as falas foram registradas em áudio, com duração aproximada de 40 minutos.

O material textual foi submetido, mediante rigoroso processo de preparação, ao software Analyse Lexicale par Context d' um Ensemble de Segments de Texte (ALCESTE) (Reinert, 1990). O programa realiza uma análise lexicográfica do material textual, verificando as ocorrências e co- ocorrências das palavras enunciadas, a fim de organizar e sumarizar informações consideradas mais relevantes segundo o critério de quiquadrado (x2). Na concepção de Lima (2008), a relevância em utilizar o programa reside no fato dele detectar e identificar, por meio das classes, os lugares do discurso no qual um sujeito coletivo se manifesta.

Para a viabilização da pesquisa, o projeto foi previamente autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde dos municípios e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo. De acordo com o que é estabelecido pela Resolução nº. 466 de 12/12/2012, todos os participantes que aceitaram contribuir com este estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como o Termo de Assentimento Esclarecido (TAE) para menores de idade, sendo garantido sigilo das informações.

Resultados

O corpus de análise foi composto por 19 entrevistas, cada qual sendo uma “unidade de contexto inicial” (UCI), das quais foram extraídos 251 segmentos textuais ou “unidade de contexto elementar” (UCE). O trabalho executado pelo programa ALCESTE teve um aproveitamento de 71% do corpus de dados original, tendo sido geradas 5 classes (Figura 1). Para representar os significados presentes em cada classe, foram selecionadas as 10 palavras com maior quiquadrado, cálculo que indica a força de associação entre cada vocábulo e sua classe correspondente (Kronberger & Wagner, 2002).

 

 

O Eixo 1 “Objetivação das imagens da hanseníase” foi formado pelas Classes 1, 3 e 2. Conforme apresentado na figura 1, as Classes 1 e 3 tiveram maior índice de relação - 0,65, comparado à Classe 2 - 0,42.

O conjunto de dados que compõe o eixo 1 fornece elementos que indicam a seleção do conteúdo referente ao complexo icônico associado ao objeto de representação abordado no estudo (Quadro 1).

 

 

Classe 1: Tratamento: As Duas Faces do Remédio

Esta classe é composta por 42 UCEs e compreende 16,73% do corpus analisado. Foram selecionadas 200 palavras, com uma média de 24,14 palavras analisadas por UCE.

Na classe 1 os léxicos que apresentam os maiores X2 são “tomo” e “remédio”, indicando que o tratamento aparece, principalmente, ligado ao ato de ingerir medicamentos. O remédio é mencionado como algo essencial, assumindo diferentes valores simbólicos, de forma que, ora é referido como “salvador dos problemas” e ora como causador de diversos efeitos colaterais negativos, e com certa insatisfação, devido à grande quantidade a ser ingerida diariamente, conforme UCEs a seguir:

Dor? Não. Não, só se você ficar sem tomar o remédio. Se você ficar sem tomar o remédio você começa a sentir, passar mal, essas coisas, você fica com febre, não come nada, não quer beber nem água, fica deitado o dia todo (Classe 1).

Me dá enjoo e eu não sinto vontade de comer, eu posso ficar uma semana sem comer que eu não sinto fome. Eu fico enjoada, vomito, quando eu sinto o cheiro do remédio já me dá vontade de vomitar, porque é muito remédio que eu tomo (Classe 1).

No que diz respeito aos efeitos colaterais decorrentes do uso da medicação, os comumente referidos por alguns entrevistados foram: dor de cabeça, tontura, enjoo, vômito, perda de apetite e desânimo. Dentre os fatores relacionados às reações citadas, estavam: a dose, o estado nutricional, a quantidade e horário de administração da medicação, entre outros. Ainda em relação à medicação, a análise desvelou que o remédio se constituiu o principal elemento do tratamento, o qual representou a esperança para a cura da doença. Dessa forma, cura pareceu centralizar o sentido presente na tríade: tratamento-medicação-cura.

Além do remédio, as palavras “posso”, “ficar”, “comer” associadas à classe, indicam algumas alterações nos hábitos cotidianos dos adolescentes como prática de cuidado no percurso do tratamento. Essas mudanças coincidem com o aconselhamento dos profissionais de saúde e, muitas vezes, estão relacionadas a uma tentativa de prevenir os efeitos indesejáveis do tratamento medicamentoso. Portanto, ter uma alimentação saudável, principalmente antes de ingerir a medicação, restrição alimentar, evitar sol, e hidratação do corpo foram alguns cuidados referidos pelos participantes nas narrativas: “Tem que se alimentar primeiro senão me dá muita dor de cabeça, dá tontura, quando eu não tomo café da manhã eu passo mal, eu fico tonta, minha pressão abaixa” (Classe 1).

Classe 3: O Diagnóstico Descortinado

Esta classe representa 16,73% do conteúdo processado pelo programa, tendo sido analisadas 42 UCEs (com média de 24,40 palavras/UCE) e 184 vocábulos foram selecionados.

As palavras mais significativas da Classe 3 descrevem sobre os sentimentos e reações dos adolescentes diante da confirmação do diagnóstico de hanseníase. Nos relatos colhidos acerca do momento da revelação do diagnóstico, observou-se que, apesar de compartilharem a mesma doença, repercussões diferentes foram encontradas entre os participantes do estudo ao receberem a notícia. A análise desvelou sentimentos com conotação negativa, tais como: choro, tristeza, susto e estranheza sob a principal justificativa de não conhecerem a doença, emergindo, assim, a incerteza da cura, o medo da mancha se espalhar pelo corpo e a possibilidade de morte. Segue um excerto da classe que ilustra essa dimensão afetiva: “Eu fiquei triste. É porque eu estava com uma doença que eu nunca ouvi falar. Fiquei assustada. Pensei que eu estava à beira de morrer, não sabia o que era” (Classe 3).

Assim, os léxicos que apresentam maior X2, como “pensar”, “preocupado” e “fiquei” sugerem que os sentimentos com conotação negativa diante da descoberta de “estar com hanseníase” foram decorrentes da carência de informações. Tanto que, embora num primeiro momento tenha predominado sentimentos negativos, alguns participantes referem “tranquilidade” logo que são informados de que a hanseníase tem cura: “Ah, eu senti medo na hora que ela falou, de sei lá, mas depois fiquei tranquila porque ela disse que tem cura” (Classe 3).

Entretanto, outras reações foram evidenciadas frente ao diagnóstico da doença, entre elas aquelas expressas pelas palavras: “nada”, “normal”:

Tem cura, tem sim. Eu não, pra falar a verdade eu não senti nada, normal mesmo, senti nada não. Na hora eu não me preocupei comigo não, que estava com hanseníase, porque eu não sabia o que era essa doença muito (Classe 3).

Dessa forma, identificou-se 3 variedades que justificam tal reação: também não conheciam sobre a hanseníase, tinham esperança na cura ou faziam face à doença como um “mal menor”: “eu não tive nenhum tipo de reação assim, pra mim acho que foi como se fosse uma coisa normal, como se fosse uma coisa do dia a dia” (Classe 3).

Classe 2: Concepções Acerca da Hanseníase

Esta classe é constituída de 60 UCEs, que corresponde a 23,90% do corpus, tendo sido analisadas, em média, 25,80 palavras por UCE. O total de palavras selecionadas foram 303.

As palavras mais significativas desta classe descrevem sobre os conhecimentos, crenças e fantasias dos adolescentes com hanseníase em relação à forma de contágio, aos sinais e sintomas, ao tratamento e às possíveis consequências da doença. Os léxicos que se destacam são “pessoa” e “você”, indicando as ideias dos entrevistados relacionadas ao que poderá acontecer com quem tem a doença ou com quem tem contato com um doente de hanseníase.

No que diz respeito ao contágio, para alguns, a análise evidenciou uma fraca elaboração dos conhecimentos biológicos ou médicos relativos à transmissão da doença, para outros, pairou-se a dúvida. Em contrapartida, para alguns sujeitos, constatou-se que as concepções de contágio ou de contato estão diretamente ligadas a hipóteses pessoais. Os elementos “tiver” e “pega” que se destacam no contexto refletem as ideias de contágio dos enunciadores, apresentadas a seguir no excerto ilustrativo da classe:

É porque essa doença ela pega, por exemplo, a pessoa que tem se ela tiver com um corte, se ela tiver com um corte na sua mão, se você encostar nessa pessoa você pega, se ela conversar muito perto de você, você pega também (Classe 2).

O conjunto exposto nas UCEs acima coloca em evidência os sistemas nocionais e simbólicos relacionados à transmissibilidade da hanseníase. A análise permitiu constatar que, no imaginário dos adolescentes, a hanseníase pode ser transmitida pelo: ar, virose, suor, tato, sangue, saliva, respiração e pelo contato com quem tem a doença.

No que diz respeito aos sinais e sintomas da hanseníase, o léxico “sensibilidade” foi associado à “mancha” - “mancha sem sensibilidade” - e apareceu como o principal sinal atribuído à doença em detrimento dos demais sinais e sintomas da doença. Foi predominante no imaginário dos adolescentes a imagem da mancha, que se apresenta de diferentes tamanhos e colorações, com possibilidade de se espalhar por todo o corpo: “A pessoa cresce ou manchas ou crescem, tem gente que cresce bolinhas, mas na maioria das pessoas crescem manchas e as manchas são vermelhas, brancas também e são dormentes” (Classe 2).

É interessante destacar também a presença dos elementos “sequela” e “perde” que foram associados ao campo lexical que reúne o complexo icônico vinculado à hanseníase. Estes elementos colocam em evidência imagens que marcam a vivência da doença no passado - lepra -, ou seja, a figura do doente desfigurado e mutilado, conforme UCE ilustrativa: “Na mão, seus dedos morrem, o sangue para de circular nos seus dedos e você perde a sensibilidade, não sente nada, pode chegar aqui e cortar” (Classe 2). Desvelando, assim, significados negativos para a doença: “É muito ruim, porque você não volta a ser a pessoa que você era antes” (Classe 2).

Ainda na Classe 2, o léxico “tratamento” também se destacou, evidenciando que o grupo tem ciência sobre alguns aspectos, dentre eles o tempo de duração, a importância do não abandono da poliquimioterapia (PQT), a ingestão correta do medicamento, a dose supervisionada e a cura.

O Eixo 2 “Itinerário da doença: do contágio à revelação diagnóstica” é constituído pelas Classes 4 e 5, com índice de relação entre elas de 0.58. Este conjunto de dados diz respeito às ideias relacionadas à fonte de contaminação e ao caminho percorrido pelos adolescentes entre o início dos sinais e sintomas até a confirmação do diagnóstico de hanseníase (Quadro 2).

 

 

Classe 4 “Como Peguei Hanseníase?”

Foram analisadas nesta classe, em média, 25,89 palavras por UCE, sendo constituída por 7,17% do corpus total processado, com 18 UCEs e 102 palavras selecionadas.

Aqui, os elementos em destaque se concentram em torno do imaginário dos adolescentes a respeito de como se deu a contaminação da doença. Significativa parte dos enunciados da classe evidencia que a hanseníase aparece próxima da realidade de alguns participantes do estudo. A elevada incidência dos léxicos “família”, “avó”, “primo” e “padrasto” indicam que alguns sujeitos conheciam alguém que tem ou teve a doença.

Assim, as ideias acerca da contaminação da hanseníase foram assimiladas não só por meio do convívio sociocultural, mas também pelos conhecimentos técnicos científicos adquiridos com os profissionais de saúde, conforme UCEs a seguir:

Não sei, porque eu acho que é de sangue. Minha avó deu também, meus dois tios por parte de pai (Classe 4).

Ela falou bem assim, que como minha avó também tem, aí meu primo também deve ter, mas só que ele já terminou (Classe 4).

Dessa forma, os resultados apreendidos indicam que, entre os participantes, uns acreditam que a contaminação se deu pelo contato ou convivência (“morar”) com um familiar e/ou conhecido que tinha hanseníase. Outros tiveram dúvida ou não souberam dizer como a doença foi adquirida.

Classe 5 “Como tudo começou”

Esta classe é composta por 89 UCEs e compreende 35,46% do corpus analisado. Foram selecionadas 530 palavras, com uma média de 26,04 palavras analisadas por UCE.

A presente classe discorre sobre a trajetória entre o início dos sinais e sintomas da doença à confirmação do diagnóstico de hanseníase. A análise desvelou que “manchas sem sensibilidade”, “bolinhas”, “caroços”, são apontados como indícios do aparecimento dos sinais da doença. No entanto, prioritariamente, a presença da mancha no corpo é que fez com que iniciassem a busca pela elucidação dessas manifestações clínicas (“vim”, “aqui”), como pode ser observado na UCE a seguir:

Eu fiz o exame, aí descobri que eu estava com hanseníase. Foi o médico. Primeiro saiu uma mancha na bunda, fui até pra São Paulo com a minha avó, aí quando eu voltei essa mancha estava ainda, aí minha mãe pegava uma agulha e colocava assim pra ver se eu sentia, só que eu não sentia nada, aí fez o exame (Classe 5).

Outro dado encontrado nos resultados foi em relação à confirmação do diagnóstico de hanseníase. Para alguns participantes, esse processo envolveu uma longa caminhada, passando por diferentes especialidades médicas e por vezes terminando em achados diagnósticos equivocados, gerando sintomas ansiogênicos para o sujeito, além de retardar o início do tratamento da doença. Nos relatos aparecem informações que revelam a ocorrência do diagnóstico tardio de hanseníase, visto que a suspeição diagnóstica inicial por parte dos profissionais médicos era: lúpus, alergia, reumatismo, anemia forte, impingem. A UCE abaixo ilustra essa situação: “Fez o exame de lúpus falando que era lúpus, mas eu não tinha lúpus, e vim pra cá, aí descobriram que eu estava com hanseníase” (Classe 5).

Discussão

Os dados analisados permitiram conhecer as crenças, imagens e opiniões dos adolescentes sobre a hanseníase. Os participantes representam o remédio como o principal elemento no processo de tratamento da doença, o qual é respaldado pelo conhecimento científico e tomado como verdade absoluta (Lefèvre, 1987). Visto que as RS são geradas por meio das mais variadas formas de mediações sociais (Jovchelovitch, 1995), tais concepções sugerem sofrer influências do enfoque curativista, respaldado pelo modelo biomédico hegemônico em nosso país, o qual reforça a dicotomia saúde/doença, sendo responsável por alimentar o sistema vigente e implicando uma atuação voltada exclusivamente para a doença (Oliveira, 2011). Por conseguinte, temos uma abordagem técnica de saúde reforçando a crença de que sem o arsenal terapêutico oferecido pelo sistema médico-industrial não é possível enfrentar a doença (Clementino, 2009; Vendramini, 2001). Por essa senda, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os médicos em geral conjecturam o mesmo em relação à hanseníase, pois consideram a cura da doença quando ocorre a alta medicamentosa, refletindo a realidade impressa pelo senso comum, na qual o remédio é visto como um símbolo de cura.

O fenômeno das RS diz respeito não só à construção de saberes sociais, que envolve a formação de estruturas cognitivas racionais, mas também à dimensão dos afetos, de modo que o ser humano, ao tentar entender e dar sentido ao mundo, também o faz com sentimento, fantasia e emoção (Arruda, 2009; Guareschi & Jovchelovitch, 1995; Jovchelovitch, 2008). Neste sentido, no que se refere ao momento do desvelamento do diagnóstico de hanseníase, os resultados apontam uma teia variada de afetos entre os participantes do estudo ao serem informados da doença. É importante informar que não foi adotada aqui uma distinção entre afeto, sentimento e emoção, assumindo-as, assim, como categorias de um mesmo fenômeno todas as manifestações que representem as dimensões do sentir (Leite, 1999).

Dessa forma, para alguns entrevistados a confirmação diagnóstica desencadeou sentimentos com conotação negativa; outros, em contrapartida, reagiram com naturalidade frente ao diagnóstico de hanseníase, dados estes corroborados por Marinho, Macedo, Sime, Paschoal, e Nardi (2014), Ponte e Ximenes Neto (2005) e Vieira (2010), que também constataram em seus estudos reações diversas diante da confirmação diagnóstica da doença, em que se identificou tanto sentimento de tristeza, medo, angústia por parte de alguns participantes, quanto compareceu os que se expressaram com naturalidade, configurando não ser um grande problema o diagnóstico de hanseníase. No entanto, vale destacar que pensar a doença como algo corriqueiro, do dia a dia, por um lado poderá favorecer a aceitação e contribuir para o enfrentamento da enfermidade, enquanto, por outro lado, poderá suscitar certa despreocupação quando, de fato, a hanseníase necessita de um cuidado atencioso.

Diante deste contexto, observa-se então que, de modo geral, o significado da doença para os enunciadores ora aparece como uma doença “banal”, que tem cura, ora como merecedora de preocupação e com certo temor. Entretanto, as razões para essa disparidade repousam, em boa medida, na carência de informações, na vivência ou em como os adolescentes foram informados sobre a hanseníase, ou seja, de modo não estigmatizante, como sendo uma doença passível de cura e não outra fatal (Minuzzo, 2008). Portanto, a revelação do diagnóstico apresenta-se como um momento especial no processo de atenção à saúde desses adolescentes, pois, em se tratando dessa doença, repleta de significados socioculturais, esse momento é valorizado pela possibilidade de dialogar, tendo em vista que entender todas as nuances da doença é uma forma de minimizar o sofrimento iminente (Eidt, 2000). Além disso, o profissional poderá intervir para desconstruir falsos conceitos e contribuir para a construção social de um novo conhecimento em relação à doença, visto que as representações sociais não são estáticas, são “estruturas dinâmicas, operando em um conjunto de relações e de comportamento que surgem e desaparecem junto com as representações” (Moscovici, 2012).

A análise desvela que as representações dos adolescentes sobre a hanseníase integram conhecimentos científicos e saberes do senso comum. No que se refere ao contágio, os conteúdos revelados pelos participantes revestem-se de vários sentidos. Para uns corresponde à expressão de uma verdadeira falta de conhecimento, podendo ser apresentada como consequência de uma aprendizagem insuficiente ou de uma incapacidade em assimilar conhecimentos: “olha, ele não me explicou direito, eu não sei” (Classe 2). Pode ser atribuído também a um conhecimento adquirido antes do adoecimento, mas que não está mais disponível, pois já se apagou da memória, ou ainda permanece de forma difusa. Outros, em contrapartida, revelam conteúdos associados ao que Jodelet, em seu estudo sobre as representações do contágio e a Aids, chamou de “falsas crenças” (Jodelet, 1998).

A autora levanta algumas hipóteses para explicar a existência e a manutenção dessas “falsas crenças”, cujas ideias podem se fazer sentir em relação à hanseníase. Jodelet (1998) sugere que: elas são o fruto de sistemas simbólicos de administrar a questão da diferença e da ordem social; são o revérbero dos valores empreendidos no corpo e em seus líquidos; são o produto das indefinições científicas e das informações contraditórias propagadas pela mídia; são resquícios antigos de crenças tradicionais; e, por fim, são resultados da interferência de conhecimentos correntes sobre as doenças contagiosas. Acredita-se que cada um desses pontos elencados comporta uma parte da verdade para explicar as crenças dos adolescentes diante da forma de contágio da hanseníase.

Considerando a última hipótese apresentada, vale destacar que, com respeito aos agentes transmissores, sem limitar-se ao contato, os entrevistados incluem também a transmissão da hanseníase por vírus, assemelhando-a a outros tipos de infecções, em função de representações biológicas subjacentes. Segundo Jodelet (1998), essas distorções estão ligadas a “processos característicos do pensamento natural e a mecanismos cognitivos, tais como vieses (erros sistemáticos) e heurísticas (raciocínios correntes), cujos exemplos são fornecidos pela tendência a generalizar ou a recorrer a modos de indução flexíveis, senão fantasiosos”.

Assim, tais asserções sobre a forma de contágio enunciadas por alguns adolescentes sugerem, de um lado, que são procedentes de argumentações fundadas sobre analogias, tendo como referência alguns tipos de contágio mais comuns, como a gripe, por exemplo, na qual a hanseníase não se inclui; por outro lado, alguns vetores e formas de transmissão que assumem estatuto particular. Dentre estes últimos, foram citados pelos entrevistados: via sanguínea -“se ele encostar em você e o sangue dela passar pra você, pega” (Classe 2); contato direto (toque, aperto de mão) - “mas eu acho que tem que ter o toque, ou sei lá, quando você aperta a mão” (Classe 2); contato com as secreções (suor), indicando que o raciocínio se apoia na representação do contágio pelos líquidos do corpo (Jodelet, 1998), ligado a um modelo médico mais arcaico, e não na tendência à generalização conforme exemplificado anteriormente.

Evidencia-se, portanto, a necessidade de encontrar um meio de comunicação que abra vias de acesso à revelação dessas “falsas crenças”, as quais não são resistentes, e sim, passíveis de correção por meio de uma “didática” adequada (Jodelet, 1998). Porquanto, somados à falta de conhecimentos de alguns participantes, os resultados sugerem a coexistência entre um bom nível de informação (alguns adolescentes fizeram apontamentos coerentes sobre a forma de contágio) - “porque não transmite pra outra pessoa enquanto ela tiver fazendo o tratamento” (Classe 2) - e “falsas crenças”. Observa-se, portanto, que quanto ao último ponto, por um lado, o enraizamento da hanseníase encontra-se “num fundo comum de saberes - exatos ou fantasmagóricos - sobre doenças” (Jodelet, 1998), de forma que esses fenômenos de “empréstimos” de informação sobre o contágio de outras patologias serviram de modelo para pensar a doença, podendo dar a seus modos de transmissão características polimórficas. E, por outro lado, leva em conta a dimensão simbólica presente nas ideias associadas às doenças emblemáticas - como a própria lepra, a tuberculose - em razão de seu peso simbólico e histórico.

Essa conjuntura apontada acima é consoante às ideias dos participantes do estudo relacionadas à aquisição da doença, a qual é percebida por alguns entrevistados como sendo um fenômeno multicausal - prevalecendo o contato com doentes - enquanto para outros, comparece um discurso permeado por dúvidas ou por completa falta de conhecimento. A atribuição a várias causas para o aparecimento da doença, bem como o próprio desconhecimento relacionado ao processo de adoecer, também se faz presente nos resultados dos estudos desenvolvidos por Batista (2014), Santos e Pardo (2006).

Um aspecto que merece ser ressaltado é que não foi surpreendente constatar que a “mancha sem sensibilidade” ocupou posição de destaque entre os sinais e sintomas da doença, visto que entre as informações sobre a hanseníase que circulam no dia a dia e as que são divulgadas em diferentes meios de comunicação, como propagandas televisivas, cartazes informativos em centros de saúde, dentre outros, ela se ressalta como o principal sinal, ratificando a necessidade da elaboração de campanhas mais abrangentes no que se refere a outros aspectos da doença. Além disso, o fato da mancha ter se destacado também pode estar relacionado à experiência vivenciada pelos sujeitos do estudo, de forma que a mancha foi um dos primeiros sinais inicialmente percebidos da doença, fazendo com que iniciassem a busca pela elucidação dessa manifestação clínica.

No entanto, além da mancha, outras manifestações dermatoneurológicas (lesões na pele e nos nervos periféricos) podem surgir, fazendo, muitas vezes, com que a hanseníase seja confundida com outras doenças - em decorrência do seu início oligossintomático -, retardando, assim, seu diagnóstico precoce, conforme os achados neste estudo. Dentro das concepções de Eidt (2000), a falta de informações e conhecimentos científicos acerca da doença por parte de alguns profissionais, somada às irregularidades na busca ativa, a qual se constitui em uma investigação epidemiológica realizada através da vigilância dos contatos intradomiciliares do doente, contribuem para que a hanseníase seja diagnosticada tardiamente, aumentando a probabilidade de contaminação e o surgimento de sequelas.

Assim, os resultados encontrados indicam que a imagem da hanseníase tal como representada pelos participantes do estudo parece englobar não apenas elementos da vivência com a doença, mas, sobretudo, elementos que foram assimilados pelo grupo sob a influência das comunicações entre as pessoas, em diferentes ocasiões e lugares, tais como: família, escola, igreja, bem como através dos meios de comunicação de massa. Segundo Alexandre (2001), os meios de comunicação de massa tornam-se instrumentos fundamentais na difusão de crenças, valores e estereótipos porque “lidam com a fabricação, reprodução e disseminação de representações sociais que fundamentam a própria compreensão que os grupos sociais têm de si mesmos e dos outros, isto é, a visão social e a autoimagem” (p. 116).

Das discussões proporcionadas pela análise dos resultados apresentadas até aqui, é pertinente resgatar que, tomando como referência os campos semânticos das classes sugeridas pelo ALCESTE, observa-se que estas demarcam oposições. As principais oposições realçadas nas classes são respectivamente: (a) remédio - solução vs. problema; (b) dimensão afetiva diante da confirmação diagnóstica - elementos negativos vs. neutros; e (c) significado da doença - grave vs. simples. Os conteúdos de natureza opositiva que animam as classes estão relacionados ao saber/não saber/dúvidas/crenças e hipóteses pessoais sobre a hanseníase enunciadas pelos entrevistados. Nesse contexto, as inflexões no interior das classes confirmam a proposição de que “a representação social é formada a partir de um esquema funcional fundado sobre antinomias, entretidas pela relação dialética de oscilação entre tensão e integração de teses opostas” (Lima, 2007).

Do Processo de Objetivação nas Representações Sociais da Hanseníase

A elaboração da representação social implica a seleção e descontextualização dos elementos que se vão representar: uma vez que não é possível lidar com o conjunto total de informações transmitidas dos objetos sociais, apenas alguns elementos são retidos, ou seja, ocorre uma drenagem do excesso de informação. Esses “cortes” são baseados nos valores culturais ou religiosos, na experiência e nos conhecimentos prévios do sujeito (Arruda, 2002; Santos, 2005). Tratando deste tema, Moscovici (2012) apresenta três etapas para esclarecer como se estrutura o conhecimento do objeto, sendo a construção seletiva a primeira fase do processo de objetivação, a qual sofre a interferência de três efeitos de defasagem, quais sejam a distorção, a suplementação e a subtração. No efeito de (i) distorção estão presentes as características próprias do objeto, porém acentuadas ou diminuídas. Para o objeto hanseníase, por exemplo, os atributos a ele associados favorecem a constituição de um núcleo figurativo cuja imagem se conecta à de um doente com o “corpo com manchas”. Assim, a “mancha” não é só de cor parda e eritematosa - característica da doença -, ela evolui para a imagem metafórica com diferentes colorações - “já tinha ouvido falar, que era uma mancha, ah eu vou falar a cor da mancha também, era vermelha, branca, amarelada e laranja” (Classe 3) - e pode tomar conta de todo o corpo -“eu pensei, aí eu vou ficar igual aquele pessoal com um monte de mancha no corpo” (Classe 2).

Os elementos sugeridos pelo software ALCESTE associados às possíveis consequências da hanseníase - “sequelas” - sugerem também a atuação do efeito de (ii) suplementação, processo que consiste em atribuir ao objeto representado características que não lhe são próprias. Assim, acrescenta-se ao objeto atributos que estão ligados ao envolvimento e imaginário do sujeito (Arruda, 2002; Jodelet, 2001). Na seleção dos elementos que compõem as representações sociais do objeto abordado - hanseníase -, verifica-se a retenção de significados negativos associados à doença. Do trabalho de simbolização empreendido pelos adolescentes, comparece a imagem do doente desfigurado e mutilado, com características que este não possui: “na mão, seus dedos morrem, o sangue para de circular nos seus dedos” (Classe 2). Além disso, pode-se conferir também hipóteses pessoais relacionadas às consequências na pele: “não posso ficar pegando muita praia e nem muita piscina por causa do cloro, pode ir descascando, vai soltando a pele, aí fica feio” (Classe 1). Assim, na construção seletiva do objeto hanseníase, os participantes do estudo configuram “seus mapas mentais a partir de suas perspectivas sociais e afetivas, buscando localizar- se num espaço que é representado e, portanto, fruto também da criatividade” (Cruz & Arruda, 2008).

Por fim, os indícios de que as “sequelas” da doença são decorrentes da própria pessoa -“tem sequelas da pessoa mesmo, tipo assim, se eu tiver sequelas é de mim mesmo, não é por causa de prevenir, é do meu organismo mesmo” (Classe 2) -, desconsiderando-se a possibilidade de prevenção/autocuidado, ou de que tais consequências podem ser resultantes de um diagnóstico tardio, sugerem a possível atuação do efeito de subtração. Segundo Jodelet (2001), esse efeito corresponde “à supressão de atributos pertencentes ao objeto” (pág. 37) que, por sua vez, costuma ocorrer devido aos aspectos normativos e valores da pessoa que representa, tornando-se difícil a inclusão de determinados elementos (Arruda, 2002).

Uma vez feitos os recortes na fase da construção seletiva, deriva-se a segunda fase da objetivação - esquematização estruturante ou o núcleo figurativo, que, a partir da transformação do conceito, tende a apresentar um aspecto imagético (Arruda, 2002; Santos, 2005). Assim, a estrutura figurativa e simbólica do objeto hanseníase foi materializada por meio da imagem do “corpo manchado”, “desfigurado” e “mutilado”, configurando a representação de uma doença “grave” com capacidade de destruição do corpo - perda de membros -, podendo deixar marcas físicas e psicológicas na pessoa acometida pela enfermidade. A imagem construída por alguns participantes do estudo também faz referência a um estado, trazendo, portanto, a imagem de uma pessoa triste e em sofrimento: “É muito ruim, porque você não volta a ser a pessoa que você era antes” (Classe 2). De acordo com Moliner (1996), a imagem desperta os afetos porque está vinculada a valores pré-existentes, a experiências anteriores. Assim, o indivíduo, ao ser afetado pelo objeto, resgata elementos significativos da sua história e do grupo. Tal simbologia apresentada acima corrobora os resultados exibidos em diferentes pesquisas sobre a mesma temática, cuja imagem encontra-se intimamente ligada ao “leproso da história”. No entanto, não permanecem no campo representacional da hanseníase apenas elementos valorados negativamente. A esperança depositada no remédio para alcançar a cura por parte de alguns entrevistados favorece a constituição de uma imagem que comunica a hanseníase a uma doença como outra qualquer, em que a pessoa seguindo o tratamento corretamente poderá se relacionar e viver normalmente -“a pessoa fazendo o tratamento ela pode conviver normalmente com as outras pessoas, pode sair, pode ter contato, pode namorar” (Classe 2) -, com a tranquilidade de que ficará curada e de que a doença não trará nenhuma consequência negativa para a sua vida.

A terceira e última fase é chamada de naturalização, completando-se assim o ciclo da objetivação. Aqui, o objeto, antes considerado misterioso, ao ser reconstruído, passa a parecer natural, ou seja, “torna-se a verdadeira essência da realidade” (Moscovici, 2012). Neste sentido, o esquema figurativo naturalizado torna concreta uma realidade para o sujeito. Dessa forma, como foi possível verificar, a imagem mencionada pelos adolescentes em relação à hanseníase, bem como as manifestações afetivas verbalizadas, retrata a elaboração de uma realidade tida para uns, como naturalmente ameaçadora e assustadora - “o doente com o corpo manchado, desfigurado e mutilado” -vs. como tranquilidade e despreocupação para outros - “o remédio cura e não deixará marcas”.

Por fim, os enunciados contidos nas classes indicam uma pluralidade e variabilidade de saberes envolvidos na construção de representações sobre a hanseníase entre os adolescentes com a doença. Essas racionalidades diversas remetem ao conceito de polifasia cognitiva, proposto por Moscovici, que se refere “a um estado em que diferentes tipos de saber, possuindo diferentes racionalidades, vivem lado a lado no mesmo indivíduo ou coletivo” (Jovchelovitch, 2008), estando sempre vinculado ao contexto psicossocial e cultural de uma comunidade em que eles são produzidos. Assim, segue-se a derivação de que os saberes variam, e que as formas do saber coexistem e podem ser contraditórias, mas bem como afirma Jovchelovitch (2004), “isso não é um problema se nós abandonamos a lógica formal e sua dualidade ao concebê-las como opostas e abraçamos uma perspectiva dialética”.

As reflexões que orientaram o desenvolvimento do estudo focalizaram a investigação e análise das representações sociais da hanseníase para adolescentes com a doença.

Os resultados indicaram que as representações associadas ao tratamento se centraram na utilização do remédio. A concepção diante da terapia medicamentosa foi ambígua, visto que ora foi percebida como solução dos problemas e como possibilidade de cura e ora como causadora de diversos efeitos colaterais negativos, além de ter suscitado mudanças nos hábitos cotidianos dos adolescentes.

A despeito do desvelamento do diagnóstico da hanseníase, foi possível observar diferentes sentimentos e reações no contexto discursivo grupal. Para alguns, o fato de estarem doentes fez emergir uma gama complexa de sentimentos com conotação negativa, enquanto para outros a confirmação diagnóstica foi encarada de maneira positivamente afetiva e esperançosa.

Os resultados encontrados indicaram, ainda, carência de informações sobre a hanseníase, prevalecendo conhecimentos oriundos do senso comum, o que contribuiu para uma construção simbólica da doença alicerçada por crenças e/ou ideias fantasmagóricas por parte de alguns participantes. Assim, no que diz respeito aos sinais e sintomas, estes ficaram limitados, principalmente, à mancha sem sensibilidade. Já em relação à forma de contágio, os conteúdos revelados indicaram características polimórficas aos modos de transmissão da doença. Neste contexto, vale ressaltar que o processo de construção das representações dos adolescentes sobre a hanseníase se mostrou influenciável não só pela experiência vivida, mas também como fruto dos intercâmbios sociais pertencentes à vida coletiva, subsistentes em diversos contextos, em especial neste estudo, do ambiente familiar.

Assim, das discussões proporcionadas pela análise dos resultados, pôde-se destacar que a elaboração do núcleo figurativo do objeto abordado não foi consenso entre os participantes, visto que para uns o objeto hanseníase foi revestido de uma significação negativa, assustadora e ameaçadora marcadamente personificada no “leproso da história”. No entanto, para outros, o conjunto de significados em torno do fenômeno se associou a uma doença como outra qualquer, apoiando-se na ideia de tranquilidade e despreocupação, com esperança na cura sem consequências negativas - sequelas - à pessoa adoecida.

Portanto, diante de uma enfermidade complexa e com profundas raízes sociais, bem como a permanência de uma visão arcaica da doença por parte de alguns adolescentes, faz-se necessário “buscar alternativas que privilegiem o resgate de valores negativados ao longo da história, que determinaram as formas dominantes de construção da vida social, trabalhando no sentido da instauração de novos sistemas de valores” (Oliveira, 2011). Isso implica repensar as práticas em saúde, de forma que os atores sociais responsáveis pela assistência levem em conta a multidimensionalidade humana, além de investirem numa reorganização dos serviços, para que estes sejam lugares efetivos de produção e, ao mesmo tempo, de transformação de representações cristalizadas (Oliveira, 2005).

Por fim, espera-se que o estudo, por ora finalizado, possa contribuir como um instrumento auxiliar para a construção de enfoques pertinentes de promoção à saúde, que consiga trazer subsídios para um redirecionamento de algumas posições políticas e sociais no que diz respeito à hanseníase, bem como ser o ponto de partida para o desenvolvimento de novas pesquisas, frente à escassez de trabalhos focalizando a realidade dos adolescentes com a doença.

 

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Recebido em 24 de Maio de 2017/ Aceite em 07 de Fevereiro de 2019

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