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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.19 no.2 Lisboa ago. 2018

https://doi.org/10.15309/18psd190212 

Significados sobre alta construídos em centros de atenção psicossocial no brasil

Meanings of discharge constructed in psychosocial care centers in brazil

Mônica Lima de Jesus1, Vládia Jamile dos Santos Jucá1, Mônica de Oliveira Nunes2

1Instituto de Psicologia Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia-Brasil. Estrada de São Lázaro, 198, Federação, Salvador, BA. CEP: 40.210-730. Tel.: (71) 3283-6437.

2Instituto de Saúde Coletiva (UFBA), Salvador, Bahia-Brasil. nunes@ufba.br


 

RESUMO:

Neste artigo discutem-se significados atribuídos pelos familiares e profissionais sobre alta de usuários de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da Bahia e de Sergipe, no Brasil. Utilizou-se o modelo teórico-metodológico de Sistema de Signos, Significados e Práticas. Realizaram-se grupos focais com profissionais de diversas áreas e com familiares dos usuários. A análise dos discursos gerou duas categorias: alta como desintensificação do cuidado e o CAPS como ponto de ancoragem após a alta. Concluiu-se que os significados atribuídos à alta entre os entrevistados, independentemente do tipo e do município, evocam as mudanças percebidas nas trajetórias concretas de vida dos usuários a partir da sua inserção no CAPS. Embora haja, entre os entrevistados, o temor de desassistência com a alta, identificaram-se associações promissoras em torno deste processo, em termos dos efeitos do modo psicossocial em substituição ao modo asilar, relativas às novas possibilidades de laços sociais.

Palavras-chave: alta, CAPS, saúde mental, inserção social, reforma psiquiátrica


 

ABSTRACT:

In this article, we discuss signs and meanings assigned by parents and professionals to discharge in users of Psychosocial Care Centers (CAPS) of Bahia and Sergipe, Brazil. We were inspired by the Model of Signs, Meanings and Practices. We have done focal groups with professionals and with user's parents from different areas. We have discussed the results through two categories: discharge as de-intensification of care and the CAPS as an anchor point after discharge. The meanings referred to discharge by the interviewers from all the localities studied have mentioned the fears, but also the perceived changes in the concrete trajectories of life of the users since their entrance in the CAPS, which give support for the concretization of both categories. Although, we can see, among the users, the fear of abandonment after the discharge, we have also found promisors expectations related to the psychosocial mode of operation compared to the asilar one, and reference to new possibilities of developing social ties.

Keywords: discharge, psychosocial care centers, mental health, social inclusion, psychiatric reform


 

A reforma psiquiátrica brasileira (RPB) é sintetiza por Benedetto Saraceno como “el ejemplo donde el pensamiento de Franco Basaglia se ha encarnado no en una realidad-laboratorio sino en el laboratorio de la realidad”, (Alves, 2011, p. 4700). São muitos os argumentos e advertências que fundamentam esta síntese. O qualificador “laboratorio de la realidad” aplica-se: 1) por ter a RFB alcançado o lugar de política pública nacional sistematicamente implantada em todo país; 2) por combinar aspectos idealistas e éticos com os administrativos que culminaram na implantação de serviços comunitários; 3) pela decisão de substituição progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos por equipamentos substitutivos, a exemplo dos centros de atenção psicossocial (CAPS); 4) pela insistente participação de profissionais, usuários e familiares como força motriz do processo. Além disso, este qualificador relaciona-se às seguintes premissas; 1) a RPB precisa articular os serviços substitutivos de saúde mental com a rede pública de saúde, particularmente a atenção básica a saúde; 2) ela precisa manter a avaliação rigorosa e crítica de tais serviços e das práticas assistenciais inovadoras; 3) ela precisa lidar com os conflitos políticos, institucionais, interpessoais e personaliticos que tendem apenas a reforçar aqueles que são contra a RPB (Alves, 2011).

Por se tratar de uma experiência em curso, a RPB demanda olhares com lentes acuradas que possam acompanhá-la, fazendo uma análise crítica para detectar os avanços e os nós críticos. Neste artigo, abordou-se um desses “nós”: a alta, ou seja, o processo de desligamento do sujeito do serviço que, a princípio, deveria ser referenciado para as unidades básicas de saúde, tendo o CAPS como serviço ao qual ele poderia eventualmente recorrer, de acordo com suas necessidades.

A alta não tem sido explorada com maior atenção nas pesquisas que avaliam o funcionamento dos serviços substitutivos. Entre os estudos, mais recentes, que se ocupam ou tangenciam essa temática identificaram-se alguns (Vecchia; Martins, 2006; Mello; Furegato, 2008; Nascimento; Galvanese, 2009; Mielke; Kantorski; Olschowsky; Jardim, 2011; Prebianchi; Falleiros, 2011; Nalli, 2011; Ramos; Guimaraes; Enders, 2011; Severo; Dimenstein, 2011), que fundamentaram as discussões dos resultados e conclusões. Nesta direção, analisaram-se os significados atribuídos à alta pelos profissionais e familiares de usuários de CAPS, identificando os principais desafios na sua efetivação. Partiu-se do pressuposto de que os serviços que atuam na perspectiva da atenção psicossocial (Costa-Rosa, 2000) têm como direção do tratamento propiciar para cada sujeito a autonomia e inserção que lhe é possível, evitando, portanto, transformar os vínculos de cuidado em relações de dependência que se perpetuam indefinidamente.

Este estudo fez parte da pesquisa “Articulando experiências, produzindo sujeitos e incluindo cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e em Sergipe, Brasil” (Nunes, et. al, 2005). Executou-se em duas etapas: 1) a primeira semi-intensiva (2006-2007), que objetivou conhecer o funcionamento dos serviços, as conquistas realizadas e as principais dificuldades vivenciadas pelas equipes, 2) a segunda etnográfica (2007-2008), teve como finalidade aprofundar a compreensão sobre os significados construídos pelos sujeitos envolvidos no processo de cuidado dos usuários sobre várias dimensões e temáticas, a exemplo, da alta, foco do presente artigo.

MÉTODO

Utilizou-se o modelo teórico-metodológico de Sistema de Signos, Significados e Práticas - S/SSP (Almeida-Filho; Coelho & Peres, 1999, Bibeau & Corin, 1995; Bibeau, 1992) para elaboração e execução do presente estudo. O S/SSP foi desenvolvido considerando a perspectiva de uma hermenêutica antropológica que se dispõe a articular os contextos micro e macrossociais, propondo um método de trabalho que parte das experiências subjetivas e trajetórias singulares das pessoas em situações concretas (Bibeau, 1992).

O S/ssp é constituído de três níveis para a abordagem de um problema durante uma investigação: o factual, o narrativo e o interpretativo (Bibeau, 1992). No primeiro nível, factual, parte-se da idéia de que é preciso levantar fatos, eventos e ações concretas significativas para os sujeitos da pesquisa. (Bibeau, 1992). O nível narrativo diz respeito à coleta inicial de relatos espontâneos sobre a problemática e a identificação dos interlocutores-chave. Em um segundo momento, mais sistemático, refere-se à reconstrução propriamente dita das experiências dos interlocutores que lidam cotidianamente com a problemática. Neste particular, é prudente ressaltar que as narrativas são as principais unidades de análise da proposta, e não os casos propriamente ditos, marcando um outro tipo de delineamento de pesquisa, que não o de estudo de caso advindo da clínica médica e psicológica ou da corrente sociológica (Bibeau, 1992). O nível interpretativo implica em considerar as interpretações dos interlocutores enquanto uma interpretação nativa, à qual a pesquisadora não pode se limitar. Considera-se que a hermenêutica antropológica requer a passagem da mera descrição dos fatos e modelos explicativos nativos para a elaboração de uma interpretação, ou seja, um trabalho cooperativo analítico que propicie a emergência dos sentidos os quais podem escapar aos próprios atores sociais (Bibeau, 1992).

Participantes

 Considerando o recorte definido para este artigo, analisamos os dados obtidos com os grupos focais (em média, seis participantes por grupo) que envolveram 60 profissionais de nível superior (psicólogas, enfermeiras, assistentes sociais e psiquiatras) e 68 familiares de usuários de saúde mental (CAPS II, III e ia), nas duas fases do estudo, excluídos os participantes dos CAPSad. Em relação à pesquisa como um todo, além desses interlocutores, participaram do estudo 12 gestores (Secretários de Saúde e coordenadores de saúde mental), 19 Coordenadores e subcoordenadores dos CAPS, 22 usuários, distribuídos em onze (11) CAPS, sendo sete (07) na Bahia e quatro (04) em Sergipe, dos quais dois (2) foram excluídos desta análise, por serem para usuários de substancias psicoativas (CAPS ad). Em Aracaju, foram estudados diferentes CAPS correspondentes a cada uma das seguintes modalidades: tipo I, tipo III, infanto-juvenil (ia) e CAPSad (para dependentes de álcool e de outras drogas). Na Bahia, todas as modalidades foram estudadas, à exceção do CAPS III, por nos ter sido dificultada a investigação nesse serviço tanto por parte da Coordenadora quanto da Secretária de Saúde de um dos municípios escolhidos para estudo. Buscou-se ainda contemplar, na Bahia, representatividade regional, não no sentido epidemiológico do termo, mas na perspectiva de integrarmos, CAPS situados em macrorregiões distintas. Nesta direção, obteve-se com isso alguma diferenciação principalmente em termos culturais e demográficos, tendo sido observadas também distinções sociais e econômicas.

Material

Para o desenvolvimento de toda a pesquisa, utilizamos como instrumentos de coleta de dados: entrevistas narrativas semiestruturadas individuais, grupos focais e observação participante. Nesse artigo, considerando a extensão do banco de dados, focalizaram-se apenas as narrativas coletadas nos grupos focais. Foram realizados 10 grupos focais com os profissionais de nível superior e nove (9) com familiares de usuários, com vínculo em CAPS (ia, II e III), nos dois momentos de coleta de dados, excluindo-se os dados do CAPSad. Particularmente, nos grupos focais exploraram-se as concepções e as experiências concretas de todos os sujeitos envolvidos no CAPS acerca do sofrimento mental, explorando temáticas como alta em saúde mental, entre outras, levando em conta as diretrizes político-clínicas prescritas para este tipo de dispositivo de saúde mental.

 Procedimento

 Este estudo realizou-se em duas fases. A primeira fase desenvolveu-se em três semanas, nas quais, além das entrevistas individuais (EI) e grupos focais (GF), a equipe de pesquisadores realizou um período de observação participante (OP), sobretudo acerca das atividades desenvolvidas nos CAPS. Na segunda etapa do trabalho de campo a investigação foi realizada em três (03) CAPS da Bahia, previamente, selecionados a partir dos seguintes critérios: tempo superior a um ano de funcionamento, presença de uma equipe atuante, disponibilidade do serviço em receber os pesquisadores e ser perto da capital. Nesta fase, o estudo adquiriu uma configuração etnográfica, através da qual os pesquisadores buscaram uma maior imersão nos serviços, acompanhando as atividades através de observação participante e relatando-as em diários de campo, bem como realizando entrevistas narrativas individuais com usuários e seus familiares (17), profissionais (7) e realizando diversas conversas informais com membros das comunidades nas quais os serviços se encontravam localizados.

Apesar de não se ter como finalidade fazer comparações entre os interlocutores como procedimento analítico, optou-se por obter versões dos envolvidos para enriquecer a análise. A exclusão dos dados relativos ao contexto dos CAPSad se deu pela percepção de diferenças importantes entre as abordagens de usuários de substancias psicoativas em relação aos CAPS para pessoas com transtornos mentais sem comorbidades adictas, que precisariam ser expostos com uma profundidade que a junção deles no mesmo artigo não permitiria atingir.

Análise de dados

No plano de análise do estudo, para levar a cabo o nível interpretativo, utilizou-se o seguinte procedimento para interpretação das narrativas: a) a identificação e agrupamento dos termos (signos) utilizados pelos próprios entrevistados; b) a construção de categorias analíticas, considerando os significados que lhes são atribuídos, já que incentivaram-se relatos sobre o processo de tratamento, a partir de situações concretas de cuidado, questionando os interlocutores sobre as estratégias de acompanhamento do usuário, critérios e situações de alta. Além do que foi possível sintetizar aqui em relação aos aspectos metodológicos que orientam o grupo de pesquisa que desenvolveu esta investigação, estão disponíveis em Lima, Nunes, Alves & Santos (2011), outros referenciais epistemológicos e teóricos.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética, processo nº 021-06/CEP-ISC, e financiado a partir de 2005 pelo edital do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) / Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital MCT-CNPq / MS-SCTIE-DECIT/ CT - Saúde - No. 07/2005 (Nunes, et. al, 2005).

RESULTADOS

Os significados atribuídos à alta entre os entrevistados nos CAPS (I, II e III), independente do tipo e do seu Estado de localização evocam as mudanças percebidas nas trajetórias concretas de vida dos usuários a partir da sua inserção no CAPS. Como ponto de partida, percebeu-se que a alta do usuário de CAPS se remete à noção de cura, que no caso da saúde mental é complexa, mas que de modo algum não se resume a esta questão nem é enfatizada recorrentemente nas narrativas dos entrevistados. Há consenso entre os profissionais de saúde em relação à incurabilidade do transtorno mental, dos quais destacou-se pela ênfase narrativa, a resposta de um profissional quando questionado, em um acolhimento, por uma familiar sobre a cura do transtorno mental: “Então eu respondi para ela [familiar] o quê: que a cura não foi uma cura, porque o transtorno mental não tem cura” [GF de profissional CAPS II - SE, 07/11/2006]. Se no plano teórico da Psiquiatria clássica não há cura para o transtorno mental, pois que este é considerado uma doença crônica, no plano prático-existencial, ao menos para alguns familiares, as conquistas cotidianas que sinalizam melhora do parente são suficientes para qualificá-lo como pessoa sã, mesmo que este qualificador não possa ser compreendido em relação ao prognóstico do referido transtorno:

   quando ele veio a primeira vez aqui no CAPS, ele não tomava banho, não cortava cabelo, não fazia nada e hoje ele toma banho que até eu reclamo. . . ele se cuida. . . hoje ele diz ‘mãe, me dá a tesoura que eu vou cortar minhas unhas', ele tem iniciativa mais do que eu . . . não precisa nem eu mandar, ele pega a roupa limpa e se troca, mudou bastante; antes quando meus irmãos chegavam lá em casa, ele não ligava pros meus irmãos, não mandava ninguém entrar, hoje ele diz ‘mãe, tem um café pra meu tio; vem, tio, almoçar', . . . hoje eu não sinto mais ele com aqueles problemas, eu chamo ele de são. [GF de Familiar, CAPS II -BA, 27/02/2006]

Neste sentido, embora a premissa da incurabilidade do transtorno mental seja recorrente, ela não torna o trabalho do CAPS improdutivo e não esvazia a discussão sobre alta, ela serve como um guia que coloca as estratégias de cuidado empregadas nos contextos institucional e familiar em um patamar de valorização de cada uma das sutis mudanças conseguidas nas trajetórias de vida dos usuários. Muitas vezes, essas sutis mudanças, ou apostas de alguns profissionais em relação à melhora do usuário, conduzem à “alta”, que significa assumir que o usuário conseguiu maior autonomia para a organização da sua vida cotidiana. Nessa direção, vem a premissa de que a “alta” implica em ter o CAPS como uma referência, local de apoio, de escuta, que supre necessidades básicas (por exemplo, distribuição de alimentação e de medicamentos), mas que a freqüência dos usuários ao espaço físico ou atividades específicas pode diminuir progressivamente, como é emblemático na seguinte narrativa:

   alta é outro grande desafio, entendeu?! . . . . Têm pacientes que, se você falar em alta, ele entra em crise, entendeu?! Têm pacientes que às vezes, por... por esperar o melhor momento, a gente diz assim: “Nossa! Passou da hora!”. . . .Aí ele chega e ele propõe, né?! A alta, de diminuir os dias, tal... Mas é uma alta nunca... tipo assim... “Adeus, até nunca mais!”... A gente sabe que é uma alta em que ele vai, e que ele não pode perder aquele vínculo, né, com o serviço! Que ele precisa voltar, inicialmente, a cada mês, a cada três meses... Mas que ele não se desvincule, porque, quando ele se afasta de fato, acaba que ele, muitas vezes, se descuida do tratamento, eh... deixa a medicação, se envolve em outros conflitos familiares, tem outras perdas, como todos nós temos, de... de várias questões, e aí ele pode voltar a ter a crise! . . . Ele [paciente] tá no CAPS, ele se sente seguro, sente o apoio, aqui ele é atendido, aqui ele é ouvido, aqui ele tem a medicação, ele tem todo o atendimento, uma equipe multidisciplinar, e... tem alimentação, que é algo fortíssimo, tem o apoio... Então, assim... falar em desligar-se do serviço é algo também muito conflituoso pra eles, muito! Muito! [GF Profissional, em outro CAPS II -BA, 26/02/2007].

Esse trecho permitiu refletir sobre o caráter processual da alta e no fato de que a ela não pode ser entendida como definitiva, posto que, em decorrência do fluxo da vida e das vulnerabilidades de cada um, é possível que haja um retorno para um tratamento mais intensivo no CAPS em algum momento da trajetória de cada sujeito. Por outro lado, cabe pensar se uma relação mais próxima entre a atenção secundária (representada pelo CAPS) e a atenção básica não propiciaria a profissionais e usuários uma tranquilidade maior no momento de desligamento do serviço, evitando, por parte do primeiro grupo, a angústia de estar lançando o outro na desassistência e, por parte dos usuários, o sentimento de desamparo.

Entre os significados construídos sobre a “cura” como algo inatingível e possíveis critérios para a “alta” dos usuários, podemos citar: 1) conseguir organizar a vida cotidiana com menos dependência do CAPS e dos cuidadores-familiares; 2) estar estabilizado, ou seja, não ter tido crise, por algum tempo, embora não haja precisão do marcador tempo, nos relatos dos informantes; 3) ter condições de interação e inserção social, ou seja, de “continuar a vida lá na sociedade”. Esses critérios são balizados pelas mudanças percebidas pelos familiares, profissionais e pelos próprios usuários quando da sua inserção em um CAPS. É interessante comparar tais balizas com o estudo realizado por Jucá (2005), em um ambulatório de saúde mental de Salvador, no qual os significados da cura estavam muito atrelados a não precisar mais da medicação e a estabilização ou compensação do quadro clínico. No referido estudo, apesar da importância da inserção social ter sido tocada por alguns informantes, na pesquisa realizada nos CAPS, encontrou-se um acento maior nesse aspecto, o que representa um ganho na construção da atenção psicossocial.

Entre as mudanças percebidas após o vínculo com o CAPS, pode-se destacar: voltar a freqüentar a faculdade; retornar ao trabalho; passar a fazer as coisas em situações cotidianas, por exemplo, cuidar de si, ir sozinho ao CAPS, melhorar a sua condição de auto-cuidado, inclusive de higiene; buscar interação com membros da família, além do cuidador direto; sair de uma condição de isolamento/retraimento mediado, por exemplo, pelas atividades oferecidas no CAPS; conviver com os familiares e com vizinhos, etc.

A menção de “alta social” é bem ilustrativa da complexidade que envolve o procedimento de dar “alta” que pode adquirir nos CAPS, em relação à sua função de inserção social do usuário, o receio de que ele entre em crise, sem a retaguarda da rede pública de saúde, no caso, o tratamento ambulatorial:

   Porque se falou durante muito tempo da questão da “alta social”. O usuário adquiria uma certa autonomia, não só é... com relação a si mesmo, com relação às questões familiares, sociais. Ah, estabilizou o quadro, se reestruturou. Alta. Que era processual. Ia se reduzindo horário, né? Se conversando com família. Até que ele era colocado pra fazer tratamento em ambulatório. Em ambulatórios mais próximos de sua residência. Hoje em dia e a gente viu, no Fórum, lá, a Dra. [nome suprimido], perguntando: “Existe realmente alta pra quem é de CAPS?”. Pra mim, existe! Tá? Pelo que eu acredito, existe. Porque senão a gente torna a outra clínica psiquiátrica, né? Pra mim, essa questão de o usuário passar pra fazer seu tratamento na sociedade, ser inserido em outras instituições, é o que a gente deve fazer. Mas, hoje, não se fala nisso. O usuário, ele não tem essa alta social. Porque tá, de vez em quando, ele vai estar em crise. Ele retorna pro tratamento em CAPS intensivo, semi-intensivo, não-intensivo, tá? Essa é minha visão pessoal. Eu não acredito. [GF de profissionais- CAPS II -SE, 07/11/2006]

É preciso sinalizar que nem todas as equipes possuem critérios bem definidos sobre em que situações podem-se lançar mão da alta, embora ressaltem que existe alta do CAPS para o referenciamento do usuário para o ambulatório, o que associa ao fato de se considerar o transtorno mental como uma doença crônica, que requer acompanhamento sistemático, como destacado na narrativa acima e que aparece em outros CAPS. Isto sinaliza que o CAPS toma o lugar de referência, mas que traz, no seu modo de funcionamento ideal, a atuação articulada com a dependência de outros dispositivos de saúde para dar conta do cuidado de usuários, que julguem em algum momento poderem estar em situação de alta, ou de menor freqüência ao CAPS.

Percebeu-se que os significados construídos pelos profissionais em relação à alta do usuário também se seguem às preocupações de que ocorra descontinuidade do tratamento medicamentoso ou que ele perca benefícios que atendem a necessidades básicas, por exemplo, não ter como destino a internação hospitalar, ter o que comer ou voltar à condição de cárcere privado, ou seja, perder a liberdade que adquiriu ao se deslocar de casa para outro local que o acolhe, no caso, os CAPS.

Em relação aos significados atribuídos pelos familiares ao vínculo que o seu parente tem com o CAPS, que está associado indiretamente à sua saída (alta) do CAPS, sem garantia de cura ou de que ele permaneça bem, há a preocupação de que a alta inviabilize sua atividade profissional e, consequentemente, a garantia de recursos mínimos para a sobrevivência do cuidador e do próprio usuário. O familiar percebe o CAPS como parte da estratégia de organização do seu cotidiano e do seu parente, um cotidiano marcado de atividades laborais que limitam sua dedicação para o cuidado do parente:

   Ôh! Se não fosse o CAPS! Eu mesmo sinceramente, olha num é puxa-saco não, mas se num fosse o CAPS, eu num sei o que seria da minha vida, porque eu sou, tenho essa mulher trancada dentro de casa, sou doméstica né?! Tenho o horário certo de sair, tenho que trabalhar em casa de família pra sustentar ele, aí ele vem, eu fico tranqüila que eu sei que ele tá aqui o dia todo, tem alimentação, tem o remédio, sei que ele tem horário que ele tá fazendo artesanato, ou tá na horta, sei que ele num tá vadio aí pela rua, né?! Se ele num ficasse, eu num sei o que seria de mim, tinha que ficar dentro de casa tomando conta dele, né?! Ia ser muito difícil pra mim! Quando desse crise, ia ter que botar no Sanatório... E aquilo dói muito pra mim, todo dia eu agradeço a Deus por ter o CAPS, todo dia”. [GF de familiares do CAPS II-BA, 27/11/2006]

Nessa direção, a alta, mesmo quando significa menor frequência do usuário ao CAPS, faz pouco sentido para aqueles familiares que percebem a presença do seu familiar no CAPS como um porto seguro para que ele possa trabalhar com menos preocupação por saber que o parente estará em segurança. Por outro lado, a “alta” poderá ter como conseqüência a redefinição de papéis no núcleo familiar, com revisão das estratégias de cuidado antes assumidas pelo CAPS, que podem voltar para o grupo familiar ou para o incremento do cuidado de si por parte do usuário.

Admite-se, por um lado, a perspectiva de alta para o usuário que obtém melhoras significativas em termos da manifestação de seus sintomas e desenvolvimento de autonomia. Por outro lado, a perspectiva de alta parece provocar inquietações tanto para os profissionais quanto para os usuários, associando a alta ao abandono, ao desprezo, ao rompimento do vínculo construído entre o usuário e a equipe do CAPS:

   A própria equipe tem uma dificuldade em dar alta como proposta, eu estou achando que ele pode passar aqui o tempo que ele tiver a necessidade dele e voltar para a sua vida lá fora e alguns pacientes também, que a gente até consegue dar alta, mas eles não querem sair do serviço, porque, de alguma forma, teve essa questão do vínculo. Tem tudo aqui, eles têm muito medo de dar alta: “eu vou sair, né?”. Principalmente quando tem um vínculo: “Ah! vai me abandonar, né, vou sair do serviço, você está me mandando pra fora” [GF de profissionais CAPS II -BA, 08/03/2007]

Neste momento, o vínculo que o usuário estabelece com o CAPS encontra-se no cerne das justificativas para a dificuldade na concessão da alta. O argumento dos profissionais, entretanto, remete para uma questão talvez pouco compreendida por eles, qual seja uma possível relação de dependência restrita construída entre o usuário e o CAPS.

Uma polêmica relacionada à questão da alta do CAPS refere-se ao vínculo dos usuários com o serviço e às interpretações que o encaminhamento para o ambulatório de saúde mental pode suscitar. Uma possível leitura dos usuários, apresentada pelos profissionais, seria a de abandono, castigo ou punição. Os profissionais ponderam sobre a lógica de funcionamento do ambulatório, que destoa, em certa medida, da proposta do CAPS, sendo realçada particularmente a qualidade do vínculo:

   teoricamente teria um momento de CAPS e teria um momento de que seria apenas pra consulta, manutenção de medicação, tudo que o paciente tocaria sua vida, e fica às vezes parecendo quando a gente encaminha, por exemplo, seria para um ambulatório de psiquiatria como [suprimido o nome do serviço de saúde], fica parecendo castigo, punição, na verdade é isso que passa para o paciente até porque aí envolve uma outra qualidade dos profissionais que atendem... [GF de profissional CAPS II -BA, 13/03/2007].

Diante do receio das repercussões dos encaminhamentos feitos ao ambulatório de saúde mental para o usuário, os profissionais referem que o processo de alta de alguns usuários tem sido trabalhado a partir do próprio serviço:

   A gente fica com medo até que entre em crise. Então, alguns pacientes eu tenho esperado até aqui mesmo para tirar medicação, alguns pacientes neuróticos, deprimidos, não sei o que. A [diz o nome da usuária] é uma que tem encaminhada aqui mesmo, estou tirando a medicação dela e tal para fazer psicoterapia e provavelmente vai parar por aqui. O certo, em minha cabeça, seria ela ir para outro serviço, fazer essa questão da medicação e tocar a vida” [GF de profissional no CAPS II -BA, 15/03/2007]

DISCUSSÃO

Os resultados são discutidos a partir de duas categorias: alta como desintensificação do cuidado e o CAPS como ponto de ancoragem após a alta. Inicialmente, partiu-se de algumas ideais fundamentais do campo da saúde mental que alicerçam a discussão e conclusão.

A densidade que caracteriza a formulação do modo psicossocial em substituição ao modo asilar (Costa-Rosa, 2000) não é possível de ser reproduzido aqui. Com esta limitação, destacaram-se apenas dois pontos fundamentais que qualificam o modo psicossocial. A importância que se atribui ao sujeito é decisiva e o seu reposicionamento é fundamental. Nessa direção, uma equipe, que busque operar nesse modelo, deve receber o usuário-sujeito no CAPS como protagonista do tratamento oferecido. Tal protagonismo deve ser estendido aos familiares e à rede social do usuário. Deve buscar reposicionar o usuário-sujeito em relação aos conflitos e contradições que o atravessam como agente implicado no próprio sofrimento, em vez de apenas vê-lo sofrer os efeitos dos conflitos e contradições. O ponto de partida é a possibilidade de mudança subjetiva possível de lidar em situações concretas do contexto sociocultural vivenciado e não a remissão de sintomas. Quais aproximações podem-se fazer dos significados atribuídos à alta pelos interlocutores e o modo psicossocial que o CAPS almeja atingir como central para a política de saúde mental? Há dificuldades e impasses para o manejo da alta. No entanto, os significados atribuídos à alta entre os entrevistados remetem-se às mudanças percebidas nas trajetórias concretas de vida dos usuários a partir da sua inserção no CAPS. Os signos de mudanças dos usuários após inserção no CAPS são apontadas pelos interlocutores com entusiasmo, englobam, particularmente, a capacidade de lidar com tarefas cotidianas de auto-cuidado, de interagir socialmente, de transitar da casa ao CAPS. No entanto, apesar dos indicadores de mudanças positivas nas trajetórias dos usuários, o receio da alta é notoriamente mais evidente do que os benefícios para mudanças ainda mais positivas para a vida do usuário e da sua família. Pode-se afirmar que tais mudanças demonstram que houve aumento da autonomia do usuário? Em certa medida sim, em certa medida não.

Alta como desintensificação do cuidado

No primeiro momento, essa autonomia pode se traduzir pela mudança de regime (intensivo, semi-intensivo, não intensivo, respectivamente) que implica que o usuário vai cada vez menos ao CAPS, supostamente, porque necessita de cuidado menos intensivo, e depende menos do CAPS. Em artigo anterior, destacou-se que tais interlocutores reconhecem que

   “as pessoas que entram em crise, em alguns momentos/situações, tornam-se “perigosas, violentas, agressivas, brabas, despertam medo, incomodam os outros, quebram e destroem as coisas, gritam” . . . . No entanto, são consideradas como pessoas em alto nível de sofrimento, porque estão angustiadas, ouvem vozes de comando, necessitam de vigilância contínua, estão confusas, colocam-se em risco de morte, desestruturam as famílias” (Lima, Jucá, Nunes & Ottoni, 2012. p. 428)

Neste particular, os usuários precisam, portanto, de intensificação de cuidado. Esta intensificação do cuidado é caracterizada pelo investimento humano:

   em prol das necessidades do sujeito que está em crise, ou deste sujeito psicótico no mundo, e ver o que a gente pode fazer, através deste investimento, para produzir uma mudança em sua qualidade de vida, em sua posição no mundo, em sua liberdade” (Silva & Mota, 2007, p. 17).

Entre algumas participantes, a questão da alta parece não ser abordada ao longo do tratamento do usuário, vindo à tona a partir do momento em que são observadas melhoras em seu quadro de saúde. A indicação de que o usuário está bem, por exemplo, a ponto de não justificar a continuidade de sua participação nas oficinas, não significa que ele já esteja em condições de ter alta do CAPS. Certamente, a alta é compreendida pelos profissionais como um processo de redução da intensificação do cuidado. Assim sendo, o atendimento ao usuário pode gradativamente se aproximar do modelo ambulatorial, o que, para a equipe, apontou para a necessidade de encaminhamento para outro serviço de saúde.

Para análise dos dados, tomou-se como ponto de partida uma definição de autonomia em saúde mental que merece crédito pela riqueza com que trata o conceito. Tikanori (2001, p. 57) adverte que autonomia não pode ser confundida com auto-suficiência e com independência, ela reflete a “capacidade de um indivíduo gerar normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente” e não ter dependência restritiva/restrita com algo ou alguém.

 O CAPS como ponto de ancoragem após a alta

 No segundo momento, essa autonomia possibilitaria que CAPS tornado uma referência fosse acionado pelo usuário (agora em regime livre) sempre que necessário, contando com o apoio da rede pública de saúde. Percebeu-se que a noção de autonomia que aparece nas narrativas dos profissionais, em alguns momentos, tem proximidade com a direção de que desenvolver ações para aumentar a autonomia não implica em que o usuário perca o CAPS como o principal ponto de referência, tanto os familiares (talvez, mais eles do que os profissionais) ressaltaram a dependência que têm do CAPS para organizarem sua própria vida e do seu parente/usuário. Certamente, se o usuário e os próprios familiares dependessem exclusivamente do CAPS para organizarem sua vida cotidiana as chances dos CAPS promoverem autonomia ficaria sensivelmente diminuída. Em estudo, realizado por Severo e Dimenstein (2011), em um ambulatório de saúde mental, a problemática da centralidade da demanda em um único dispositivo também aparece como dificultador da instalação de um modelo de atenção psicossocial, a articulação entre os níveis de assistência e a corresponsabilidade do cuidado do usuário são fundamentais para a superação do modelo hospitalocêntrico em saúde mental.

Nascimento e Galvanese (2009) relatam, no estudo que envolveu 22 CAPS, que em cinco deles os projetos terapêuticos dos usuários não contemplavam procedimentos de alta; em seis CAPS o usuário tinha alta, mas mantinha o CAPS como referência; em seis serviços os usuários recebiam alta e eram encaminhados para unidades básicas de saúde. Os achados da pesquisa relatada divergem do estudo acima citado, particularmente pelo fato de apenas o ambulatório (nível secundário) ter sido mencionado como a principal possibilidade de encaminhamento de usuários em alta, pois, em nenhum momento, houve menção espontânea de articulação com a atenção básica à saúde.

Na Bahia, por exemplo, a fragilidade da rede pública de saúde em termos de articulação entre os níveis de assistência à saúde, particularmente, em relação à saúde mental é notória (Lima, Jucá & Nunes, 2010), considerando a baixa cobertura da estratégia de saúde da família na capital, que não ultrapassa os 20%, até o momento. A rede de Aracaju, por sua vez, é mais articulada do que alguns dos municípios baianos que participaram da pesquisa (Salvador, por exemplo), mas também apresenta fragilidades (Lima, Jucá & Nunes, 2010). Neste sentido, não foi de estranhar que esta possibilidade de encaminhamento do usuário para a atenção básica à saúde não tenha sido sequer mencionada, entre participantes. Além disso, percebeu-se descrédito deles em relação ao tratamento ambulatorial, considerando a ausência de equipamentos na rede pública de saúde. No estudo de Nascimento e Galvanese (2009), a dificuldade de articulação entre serviços de reabilitação psicossocial e outros equipamentos de saúde também foi expressa como uma das principais dificuldades para a alta dos pacientes.

Mielke, Kantorski, Olschowsky & Jardim (2011,) ressaltam que o CAPS deve discutir com os usuários que o tratamento tem início, meio e fim. Embora deva responder as suas necessidades, também deve fazê-lo compreender que a alta faz parte do tratamento. A principal preocupação dos referidos autores é de que, sem essa compreensão de alta, haja risco de cronificação dos usuários dentro do CAPS, uma vez que este pode funcionar não como mais um espaço de suporte terapêutico, e sim como o único espaço de troca social.

Mello e Furegato (2008, p. 460), considerando a constatação de dependência do usuário no CAPS estudado pelos autores citados, “chama atenção para uma possível cronificação dos usuários, principalmente quando se reflete que 33,3% dos usuários do referido CAPS estão em atendimento há mais de dois anos e 72,7% estão no CAPS há mais de quatro anos”. Ainda que a cronificação do usuário no CAPS, no sentido atribuído pelos referidos autores, seja uma possibilidade que distanciaria este equipamento do modo psicossocial de funcionar, não é sem ressalva que devemos compreendê-la. De acordo com o modo psicossocial, o que deveria está em jogo não é o tempo, mas a qualidade do uso do tempo de vínculo usuário-CAPS e as aberturas territoriais provenientes desse vínculo. O reposicionamento e o protagonismo do sujeito no lidar cotidiano com as situações e conflitos são pontos de partida, contínuos, persistentes, diários. De certo, que ele precisa da equipe do CAPS e de uma rede pública de saúde e de assistência social articuladas, em todos os níveis de assistência.

Considera-se que as ações terapêuticas do CAPS que vão gerar alta como mudanças nas trajetórias dos usuários visem aumentar seu poder contratual, ou seja, redimensionar a troca de bens, a troca de mensagens e a troca de afetos dos usuários (Kinoshita, 2001). Nesse caso, manter o CAPS como referência e não como o único espaço social pode ser uma boa premissa para o funcionamento em modo psicossocial.

As mudanças percebidas com a inserção dos usuários nos CAPS, ainda que sutis, parecerem aumentar o poder contratual dos usuários. De acordo com Kinoshita (2001, p. 57), a contratualidade do usuário vai estar determinada pela relação estabelecida pelos próprios profissionais, ou seja, “se estes podem usar o seu poder para aumentar o poder do usuário ou não”. O empréstimo de poder contratual via a relação profissional-usuário dependerá da capacidade de elaboração de projetos, ou seja, a elaboração de “ações práticas que modifiquem as condições de vida, de modo que a subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim como para que as abordagens terapêuticas específicas possam contextualizar-se” (Kinoshita, 2001, p. 57).

No entanto, pode-se sugerir que, apesar das mudanças operadas na vida dos usuários, não é possível dizer que houve um aumento de autonomia significativa por parte da maioria, porque, não podendo contar com a rede pública de saúde (extra-CAPS), o usuário mantém-se em dependência restrita/restritiva com o único equipamento que lhe acolhe e que lhe reconhece, em certa medida, como sujeito. Esse parece ser um dos fatores que dificulta o processo de alta.

Considerou-se, contudo, estar em um processo de construção contínuo de um novo modelo assistencial no campo da saúde mental, no qual disputas políticas e de concepções de gestão, além da formação dos profissionais, interferiram diretamente no cotidiano dessa clínica. No atual cenário, refletir sobre a alta foi imprescindível, pensando-a dentro de uma teia de conceitos ou noções como afirma Bezerra Jr (2001):

   Vou afirmar, sem discutir muito, as seguintes idéias: a de que qualquer proposta de transformação da assistência como um todo tem suposta, pressuposta, debatida ou não, algumas noções básicas sobre o que é o sujeito, o que é a interação humana, sobre o que é um sintoma ou se não quiserem sintoma, sobre o que é o sofrimento, sobre o que é terapêutico, sobre o que é a cura, enfim, várias dessas noções, sem falar dos jargões profissionais como transferência, recalque, inconsciente coletivo etc., isto é, há algumas idéias básicas que são utilizadas. Uma idéia mais básica ainda, o normal e o patológico, ainda é utilizada, por mais que se critique, essas fronteiras, essas situações estão operando na nossa mente, quando se distingue o campo de intervenção, quando se hierarquiza níveis de assistência (p. 139).

Percebeu-se, no presente estudo, um temor que rondava profissionais, familiares e usuários em torno da alta. Temor que se associava a vários fatores e que tem como pano de fundo, como abordou-se anteriormente, a crença na cronicidade da doença mental, como se esta sempre tivesse um curso inexorável, independente do tratamento ofertado. Por outro lado, não se pode negar que associações promissoras, em termos da atenção psicossocial, surgiram em torno da alta, em especial, quando se associava a alta a novas possibilidades existenciais e de fortalecimento, ampliação ou mesmo construção de laços sociais.

Em contextos onde se conta com a estratégia de saúde da família como viabilizadora do cuidado em saúde mental na atenção básica, porque pautada em uma ação territorial, com acolhimento e acompanhamento continuado de famílias, a aposta tem sido o apoio matricial como ferramenta que articula os CAPS com a atenção básica à saúde, representando “um artifício que produz resistência à captura manicomial, em favor da desinstitucionalização e do modo psicossocial” (Lima & Dimenstein, 2016, p. 632). Nesta direção, pode-se apostar que compartilhar a tarefa do cuidado em saúde mental nos níveis de atenção à saúde, considerando a noção de alta como momentos de desintensificação de cuidado, ampliaria a autonomia do usuário, que não dependeria exclusivamente do CAPS, mas o teria também como ponto de ancoragem.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 24 de Abril de 2015/ Aceite em 05 de Abril 2018

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