SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número2Stress e burnout em professores: importância dos processos de avaliação cognitivaEficácia do neurofeedback no tratamento da ansiedade patológica e transtornos ansiosos: revisão sistemática da literatura índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.19 no.2 Lisboa ago. 2018

https://doi.org/10.15309/18psd190205 

Relação entre violência familiar e transtorno de estresse pós-traumático

Relationship between family violence and post-traumatic stress disorder

Célia Mendes de Souza1, Marília Martins Vizzotto1,Miria Benincasa Gomes1

1Universidade Metodista de São Paulo, Escola de Ciências Médicas e da Saúde, São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil


 

RESUMO

Neste artigo, apresentamos uma revisão de literatura sobre o tema violência familiar como fator de risco para o desenvolvimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Realizamos uma pesquisa bibliográfica consultando as bases de dados Medline e Lilacs, com a utilização dos seguintes descritores: família, violência e transtorno de estresse pós-traumático, considerando o período de 2010 a 2015. Algumas referências encontradas, tratavam de violência não familiar, aspectos fisiológicos e outras desordens; o estudo direcionou o olhar apenas para a categoria “fatores de risco”. Verificamos que a população prevalente nas pesquisas foi de crianças e evidenciou-se muito o TEPT nas que foram vítimas de maus-tratos. Foi possível perceber que a violência cometida na infância pode ser mais prejudicial do que os abusos que ocorrem em outras fases da vida, devido às consequências do transtorno no desenvolvimento psicológico infantil. Os resultados apontam que os indivíduos que tenham sido expostos a eventos potencialmente traumáticos, especialmente violência familiar e maus-tratos na infância, são mais propensos a desenvolver TEPT. Notou-se que na maioria dos casos de violência, há uma co-ocorrência de eventos traumáticos. Outro dado imporatnte foi o papel crucial das relações familiares nos sintomas de TEPT e demais desordens psíquicas; as relações familiares são apontadas como fator crítico nesta relação violência-TEPT, podendo apresentar uma função protecionista e/ou atenuante, ou como agravante quando se trata de uma família disfuncional.

Palavras-chave: família, violência familiar, trauma, transtorno de estresse pós-traumático


 

ABSTRACT

This article presents a literature review on family violence as a risk factor for stress disorder Posttraumatic stress disorder (PTSD). We conducted a literature search consulting electronic databases, considering the period from 2010 to 2015. The prevalent population in the research were children and showed up in PTSD who were victims of abuse. It could be observed that violence committed in childhood is more harmful than the abuses in other stages of life, due to the disorder of the consequences on children's psychological development. The results show that individuals exposed to traumatic events, especially family violence and abuse in childhood are more prone to PTSD. Another fact important was the role of family relationships in the symptoms of PTSD and other mental disorders; family relationships are seen as the critical factor in this relationship violence-PTSD, which have a protective function and / or mitigating or aggravating as when it comes to a dysfunctional family.

Keywords: family, family violence, trauma, post-traumatic stress


 

O sentimento da família, desconhecido durante a Idade Média, está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa. Esse “encanto” é o que vemos a partir do século XIV, onde podemos assistir ao desenvolvimento da família moderna. Ela torna-se a célula social, o fundamento do poder, e esse sentimento faz a família concentrar-se em torno da criança e em torno de si. Isso muda o caráter familiar de distanciamento da criança e seus pais, com o clima sentimental bem próximo ao da nossa família moderna (Ariès, 1981).

Família pode ter um significado diferente em diversas épocas e lugares. A família nuclear é uma unidade econômica e doméstica que compreende laços de parentesco envolvendo duas gerações e que consiste em um ou dois genitores e seus filhos biológicos, adotados ou enteados. As influências mais importantes do ambiente familiar no desenvolvimento da criança vêm da atmosfera dentro do lar. Daí a importância de saber se é um lar que dá apoio e amor ou é dominado pelo conflito e violência (Minayo, 1994).

A Organização Mundial da Saúde define violência como sendo o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si mesmo, outra pessoa ou um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação (World Health Organization [WHO], 2002).

A respeito da relação história-natureza, é possível compreender a natureza humana como uma formação essencialmente histórica. Desta forma, é possível entender o processo por meio do qual “a violência presente nas condições sociais e históricas de cada época infiltra-se nas profundezas da psique humana”, compondo uma estrutura relativamente fixa e constante que, pela repetição ao longo do tempo, cristaliza-se como conteúdo natural (Silva, 2009).

Minayo (1994) trata da violência não como parte da natureza humana, mas como um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, no qual a vida em sociedade é o espaço de sua criação e desenvolvimento. Desta forma, a violência também não pode ser vista como um problema restrito à área da saúde. Para ela, na configuração da violência se cruzam problemas da política, economia, moral, Direito, Psicologia, das relações humanas e institucionais e do plano individual.

Até hoje, mesmo nas mais avançadas civilizações ainda não se conseguiu modificar as condições brutais que, historicamente, oprimem as pessoas por elas constituídas. Mantiveram-se similares quanto à fragilidade e à força humanas. “...a gama de frustrações e sofrimentos socialmente produzidos encontra nas disposições psíquicas degradadas os canais apropriados para sua conversão em destrutividade. As frustrações produzidas pela vida, objetivamente tolhida, facilmente se convertem em agressividade indiscriminada (Silva, 2009).

Diversos estudos analisaram os efeitos a longo prazo da violência física e psicológica na saúde mental dos indivíduos, postulando que as experiências de longa duração de violência podem prejudicar mais profundamente o desenvolvimento saudável da criança, gerando graves problemas em vários estágios de desenvolvimento (Johnson et al, 2010).

Frente a uma ameaça extrema, uma pessoa pode ser incapaz de integrar na memória todos os elementos sensoriais e emocionais do acontecimento, permanecendo isolados da consciência. Não sendo possível ser integrada na consciência, a experiência é dividida, sem integração numa narrativa pessoal; essa fragmentação da realidade trata-se do fenômeno chamado dissociação (Maia, Moreira & Hernandes, 2009).

Alguns autores relatam o sintoma dissociativo como presente na maioria das pessoas que desenvolvem o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Essas pessoas ficam “ligadas” (para Freud, o termo seria "fixado") ao trauma, incapazes de integrar memórias traumáticas, como se tivessem perdido a capacidade de assimilar novas experiências e sua personalidade parasse em certo ponto e não pudesse ampliar assimilação de novos elementos (Vander Kolk, Van der Hart & Burbridge, s.d.).

O conceito do termo trauma oscila da caracterização de eventos apenas desagradáveis aos verdadeiramente catastróficos; também está ligado a significados de situações distintas e ao mesmo tempo complementares (Câmara, 1999).

As pessoas podem, por vezes, após um evento traumático, continuarem com um nível funcional adequado durante a fase pós-impacto, mas podem permanecer cicatrizes emocionais que venham alterar o seu nível de funcionamento ou a sua qualidade de vida, inclusive por muitos anos depois de vivida a situação. Em algumas circunstâncias essas recordações parecerão normais, mas em outras, as pessoas poderão desenvolver condutas evitativas e, até mesmo, transtornos sérios.

No século XIX já se reconheciam os sintomas característicos do atual transtorno por estresse pós-traumático, incluindo o quadro dentro da neurose histérica ou de conversão. Em 1920, Freud definiu o conceito de Trauma Psíquico sofrido pelos ex-combatentes como uma espécie de “ruptura da barreira aos estímulos”. De uma perspectiva histórica, a mudança significativa trazida pelo conceito do transtorno do estresse pós-traumático foi estipular que o agente etiológico estivesse fora do próprio indivíduo (o evento traumático) e não fosse uma fraqueza individual inerente (neurose traumática). A chave para compreender a base científica e a expressão clínica do transtorno do estresse pós-traumático é o conceito de "trauma" (Ballone, 2005).

A exposição a eventos traumáticos pode produzir um maior nível de tensão e ansiedade nas pessoas e a memória do que aconteceu pode permanecer e tornar-se parte da vida das vítimas, não podendo ser apagada da sua mente (Cohen, 1989).

Mas tem sido mostrado, segundo a Organização Panamericana de Saúde, que se houver uma intervenção rápida e adequada, essas reações podem ser reduzidas e o sujeito retornar à situação normal. É preciso que o evento seja percebido pelo indivíduo como traumático, não bastando que seja reconhecido com tal. A influência sociocultural permeia toda a noção e percepção do trauma pelo indivíduo. O que para determinada pessoa em determinada cultura pode ser visto como algo potencialmente traumático, para outras não o é necessariamente (Briggs-Gowan et al, 2010).

A natureza e duração da experiência influem no desenvolvimento ou não dos sintomas e em sua prevalência. Fatores preexistentes parecem produzir uma vulnerabilidade ao desenvolvimento do TEPT, como por exemplo, depressão ou ansiedade, exposição anterior a outras situações traumáticas, histórico de abusos físicos e graves psicopatologias em membros da família do indivíduo (Vieira e Vieira, 2005).

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (American Psychiatric Association [APA], 2014) define de forma clara o transtorno, caracterizando-se, essencialmente, pelo desenvolvimento de sintomas característicos após a exposição a um extremo estressor traumático, envolvendo a experiência pessoal direta de um evento real ou ameaçador que envolve morte, sério ferimento ou outra ameaça à própria integridade física. Ainda, envolve a pessoa ter testemunhado um evento que envolve morte, ferimentos ou ameaça à integridade física de outra pessoa ou o conhecimento sobre morte violenta ou inesperada, ferimento sério ou ameaça de morte ou ferimento experimentados por um membro da família ou outra pessoa em estreita associação com o indivíduo. Sendo que a resposta ao evento deve envolver intenso medo, impotência ou horror.

Os sintomas característicos do TEPT incluem uma revivência persistente do evento traumático (recordações recorrentes e intrusivas do evento ou sonhos aflitivos recorrentes, durante os quais o evento é reencenado), esquiva persistente de estímulos associados com o trauma, embotamento da responsividade geral e sintomas persistentes de excitação aumentada, devendo estar presente por mais de 1 mês e a perturbação deve causar sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, ocupacional ou outras áreas importantes da vida do indivíduo. Na revivescência, além de recordar as imagens, a pessoa sente como se estivesse vivendo novamente a tragédia com todo o sofrimento que ela causou originalmente (APA, 2014).

À base dos conceitos apresentados e na revisão da literatura, este estudo tem por objetivo investigar a produção científica a respeito do tema violência familiar como fator de risco para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático.

Método

 Tratou-se de uma pesquisa bibliográfica realizada nas bases de dados Medline e Lilacs. A busca foi realizada a partir dos descritores “família”, “violência” e “transtorno de estresse pós-traumático”, resultando em 91 referências. Aplicou-se o filtro “ano de publicação” (2010-2015), atingindo-se um total de 24 referências que foram categorizadas segundo os textos completos.

 Resultados

 Foram encontradas 24 referências a partir dos descritores “família”, “violência” e “transtorno de estresse pós-traumático”. Destas, três abordavam a relação da violência não familiar com o TEPT; quatro traziam a violência de guerras e desastres naturais. Outras cinco, os aspectos da violência familiar, mas não havia relação com o transtorno e duas tratavam de aspectos fisiológicos do TEPT. Por fim, dez discutiam a violência familiar como fator de risco para o TEPT.

As categorias “violência não familiar”, “aspectos fisiológicos” e “outras desordens” foram excluídas deste estudo. O estudo direcionou o olhar apenas para a categoria “fatores de risco”.

Abaixo (Quadro 1) serão apresentadas as referências que tratam do objeto deste estudo.

 

 

Apresentação dos Resultados

Ao examinar o material da pesquisa, foi possível descrever o delineamento dos estudos realizados sobre o tema, que utilizaram tanto a abordagem qualitativa como quantitativa de pesquisa. Os métodos utilizados são bastante diversificados, utilizando de diferentes técnicas para coleta de dados, incluindo uso de formulários demográficos, questionários, escalas, entrevistas estruturadas e semi-estruturadas e avaliação clínica e psiquiátrica. Ainda, alguns estudos utilizaram dados de pesquisas realizadas anteriormente. Em alguns estudos também foram realizadas visitas nas residências das famílias estudadas.

As populações foram recrutadas em locais específicos que desenham muito bem o perfil de cada estudo. Clínicas de cuidados primários e agências de serviços de atendimento a vítimas de violência foram os locais onde mulheres vítimas de violência foram recrutadas. Os estudos desenvolvidos com crianças e adolescentes selecionaram as amostras em escolas, abrigos, clínicas psiquiátricas, serviços de avaliação/ tratamento em saúde mental e atrasos no desenvolvimento.

A seleção das técnicas permitiu a classificação da população estudada, bem como avaliação para alguns transtornos. Nota-se que a população prevalente nas pesquisas foi de crianças e evidenciou-se muito o TEPT nas que foram vítimas de maus-tratos. Esse dado é bastante significativo ao considerar que a violência cometida na infância pode ser mais prejudicial do que os abusos que ocorrem em outras fases da vida, devido às consequências do transtorno no desenvolvimento psicológico infantil (Ximenes, 2011).

Os indivíduos que tenham sido expostos a eventos potencialmente traumáticos, especialmente violência familiar e maus-tratos na infância, são mais propensos a desenvolver TEPT (Briggs-Gowan et al, 2010; McLaughlin, Conron, Koenen & Gilman, 2010). O impacto negativo de múltiplas experiências de violência familiar na infância se dá tanto a nível psicológico como neurobiológicos e aumenta a probabilidade de desenvolver transtornos psiquiátricos (Cohen, 1989; WHO, 2002).

Exemplo disso são as crianças-soldados, uma das populações mais complexas traumatizadas. São crianças e adolescentes que entram para as forças armadas em uma idade jovem (raptadas ou que nascem em cativeiro) (Klasen, Oettingen, Daniel & Adam, 2010).

Violência familiar e TEPT

 Exposição à violência durante os diferentes períodos da vida foi amplamente associada a problemas de saúde mental, incluindo, além do TEPT, áreas de problemas de conduta, depressãoe ansiedade de separação. Exposição repetida a eventos traumáticos e adversidades incluiu, em todos os estudos, abuso físico, psicológico e sexual, ameaças, seqüestro ou cativeiro, práticas coercitivas, abandono, testemunho de violência, dentre outros, sendo causa ou com potencial risco de morte ou ferimento11,15.

A maioria das pesquisas sobre os efeitos da violência familiar na saúde mental se concentram em estados negativos de bem-estar emocional na idade adulta, como sintomas depressivos, ansiedade e sintomas de estresse pós-traumático (Briggs-Gowan et al, 2010; Cyr, Michel & Dumais, 2013; Klasen et al, 2010; McLaughlin et al, 2010; Panter-Brick, Goodman, Tol & Eggerman, 2011; Ximenes, 2011). O evento com maior capacidade preditora para o transtorno é a violência severa da mãe, seguida da agressão verbal da mãe sobre o filho e a violência severa do pai sobre a mãe (Ximenes, 2011).

Os resultados também apontam e confirmam a relação abuso sexual na infância-TEPT. O estupro também foi bastante prevalente (Kelly, 2010; Klasen et al, 2010; Zlotnick, Capezza & Parker, 2011). Não raro, uma história de abuso sexual na infância está associada com sintomas de TEPT no contexto cumulativo de outro trauma adulto (Kelly, 2010; Klasen et al, 2010; Panter-Brick et al, 2011; Ximenes, 2011; Zlotnick et al, 2011).

Na maioria dos casos de violência, há uma co-ocorrência de eventos traumáticos. Dentre as vítimas de violência por parceiro íntimo, em mais da metade foi verificada a ocorrência de pelo menos outros dois eventos traumáticos e outra parte sgnificativa relatou mais de três. A pesquisa confirmou que, no geral, a consequência de saúde mental mais frequentemente associada a esse tipo de violência é o transtorno de estresse pós-traumático. Além disso, a gravidade do abuso está relacionada a um maior comprometimento (Kelly, 2010; Zlotnick et al, 2011).

Em crianças mais velhas, a exposição à violência familiar tem sido associada a problemas de internalização (por exemplo, depressão, suicídio, ansiedade, estresse pós-traumático) (McLaughlin et al, 2010). A violência familiar parece aumentar e se manter quando há a presença de alguns fatores recorrentes, como pobres recursos sociais e econômicos, abuso de substâncias, violência de guerra e da comunidade (Klasen et al, 2010; McLaughlin et al, 2010; Panter-Brick et al, 2011; Ximenes, 2011).

A influência da cultura

 Numa descrição do Centro Regional de Informação das Nações Unidas encontramos o relato de uma moça que estabelece amizades com rapazes e é enterrada viva pelo pai e pelo avô. Um homem que é julgado por um tribunal do Arizona acusado de atropelar e matar a filha que, ao que parece, considerava demasiado "ocidentalizada". Em culturas em que a mulher é vista como símbolo de honra da família torna-se, comumente, alvo vulnerável de ataques que envolvem violência física, sexual, mutilações e até a morte. Cometidas para “sanar” uma violação das normas familiares ou comunitárias, as agressões em defesa da honra são outro tipo de violência familiar e que está diretamente ligada à cultura e valores (Klasen et al, 2010; Organização Panamericana de Saúde, 2002).

Alguns estudos chamam a atenção para a forma como os valores e crenças culturais podem influenciar a percepção dos eventos estressantes da vida e a adaptação psicológica subsequente (Cyr et al, 2013). Não foram relatadas diferenças significativas no que diz respeito à ocorrência e/ou intensidade de violência entre populações de diferentes raças, renda, etc. O que foi encontrado é que a violência familiar afeta as vidas de milhões de crianças, adolescentes e adultos em todo o mundo. Este resultado é notável porque, mesmo em uma cultura que endossa a disciplina física, como a cultura queniana ou em países em que crianças servem como soldados em conflitos armados em todo o mundo, forçados a testemunhar e, muitas vezes, também a cometer atrocidades, incluindo estupro e assassinato, o abuso físico na infância foi vivido como um evento traumático (cyr et al, 2013; Klasen et al, 2010). Porém, quando diz respeito à negligência, estudantes holandeses poderiam ter percebido negligência como um trauma, estudantes quenianos não perceberam comportamentos parentais negligentes como indutor de estresse traumático (Cyr et al, 2013).

Muitas vezes, espancamentos são entendidos e aceitos como “violência disciplinar”. É comum, inclusive que, na ausência do pai, um tio, por exemplo, assumir a responsabilidade de bater nos mais jovens e nas mulheres. Pode ainda, haver uma violência psicológica na cobrança excessiva com os meninos sob a crescente pressão para trabalhar em tempo integral e as meninas se casarem (Panter-Brick et al, 2011).

Relações familiares

A violência vista como um ciclo traz a ideia de que o comportamento violento pode ser transmitido intergeracionalmente e se sustentar por incontáveis períodos (Klasen et al, 2010).

Nas populações com uma estrutura familiar onde há a presença de apenas um dos pais há um risco maior para sintomas de TEPT, quando comparados aos que vivem com ambos os pais (Ximenes, 2011). Da mesma forma, o apego nas relações entre pais e filhos pode ser considerado um fator protetor importante no desenvolvimento de crianças vítimas de maus-tratos (Cohen, 1989), tendo em vista que as crianças que recebem cuidados parentais tendem a apresentar um melhor desenvolvimento psicoemocional e receber os efeitos de adversidades com menores impactos negativos. Assim, examinando os efeitos dos diferentes tipos de abuso, de relacionamentos disfuncionais e das comunicações familiares pobres, fica evidente o papel crucial das relações familiares nos sintomas de TEPT e demais desordens psíquicas (Klasen et al, 2010; Lopez, 2014; Thompson, Cochran & Barczyk, 2012).

É possível afirmar, ainda, que as crianças com relacionamento familiar regular ou ruim com todos os familiares e aquelas que têm bom relacionamento com apenas um desses familiares possuem mais chances de apresentarem sintomas de TEPT do que aquelas com bom relacionamento familiar com todos os membros da família (Ximenes, 2011). A agressão verbal entre os membros da família também se torna um agravante dos sentimentos de insegurança e desconfiança (Thompson et al, 2012).

As mães com TEPT têm mais dificuldade no fornecimento de ligação, proteção e apoio a uma criança em desenvolvimento (Zlotnick et al, 2011). A consequência, certamente, será de uma família “mal-adaptada”, prevendo, a longo prazo, uma adversidade à saúde mental de seu membros (Panter-Brick et al, 2011).

Comorbidade na ocorrência do TEPT em função da violência familiar

 Ficou evidenciado que a violência familiar é um preditor de resultados negativos de saúde mental (Panter-Brick et al, 2011).

O que se pode notar, também, é que adversidades na infância (aqui, incluindo violência familiar, negligência e outros), estão associadas ao desenvolvimento de desordens psiquiátricas, além do TEPT. Essas consequências podem, inclusive, persistir na adolescência e na idade adulta (McLaughlin et al, 2010).

Os resultados sugerem que a violência familiar pode "sensibilizar" os indivíduos a alguma psicopatologia, diminuindo sua tolerância a fatores estressantes relativamente menores subsequentes (McLaughlin et al, 2010).

Exposição à violência familiar também foi associada a alguns problemas de externalização (por exemplo, de oposição e desafio; conduta e problemas de uso de substâncias) (McLaughlin et al, 2010).

Depressão, ansiedade e dissociação foram verificados em alguns estudos (Thompson et al, 2012). Os principais resultados foram, além do TEPT, depressão, problemas comportamentais, disfunções emocionais, queixas somáticas e problemas sociais. A prevalência foi a comorbidade TEPT e transtornos depressivos (Klasen et al, 2010; McLaughlin et al, 2010; Thompson et al, 2012).

Alguns estudos apontam para a necessidade de políticas e práticas que sustentem as famílias para satisfazer as necessidades de saúde mental de todos os seus membros, considerando que as famílias são o recurso mais importante para promover indivíduos mentalmente saudáveis. Ainda, destacam a precariedade de possibilidades de encaminhamento para atendimento público dessa demanda. Além disso, há outro agravante: a dificuldade de acesso a cuidados básicos de saúde entre os grupos chamados minoritários (Kelly, 2010; Panter-Brick et al, 2011; Ximenes, 2011).

Discussão

 Os achados da pesquisa a respeito da violência são confirmados por dados da OMS, nos quais a violência é a principal causa de morte no mundo para pessoas entre 15 e 44 anos de idade. Em todo o mundo, mais de um milhão de pessoas perdem a vida, por ano, como resultado de algum tipo de violência. Em relação aos custos da violência, são gastos bilhões de dólares em cuidados de saúde. Porém, o custo da dor e do sofrimento são incalculáveis (WHO, 2002).

A violência familiar, foco deste estudo, é um fator crítico e de impactos imensuráveis. A crise é um período crucial e decisivo na vida de uma pessoa, que tem consequências físicas e emocionais. Especificamente, é um período limitado de desequilíbrio psicológico precipitado por uma mudança súbita e significativa da situação de vida do indivíduo. Essa mudança cria necessidade de ajustes internos e a utilização de mecanismos de adaptação externa, que podem exceder a capacidade do indivíduo. A maneira com que o indivíduo enfrenta o problema durante um período de estresse emocional, pode influenciar tanto a saída da crise, com muito mais probabilidades de obter uma melhor capacidade de resolução de crises como o aumento da susceptibilidade a doenças mentais (Cohen, 1989).

Algumas pesquisas apontam para algumas características comuns das famílias onde a violência se faz presente: pai/mãe abusados ou negligenciados em suas famílias de origem, violência doméstica, alcoolismo, pai excessivamente autoritário, mãe passiva demais, cônjuges com relacionamentos sexuais inadequados como incesto, promiscuidade, adultério. É a representação clara de relações caóticas, propícias a respostas desagregadoras.

Um ambiente disruptivo possui a qualidade de produzir como efeito um trauma psíquico, possui uma característica relacional: fenômeno que atua produzindo algo em alguém. Evento disruptivo é aquele que quando ocorre desorganiza, desestrutura ou provoca descontinuidade (trauma) (Benyakar, 2012).

As respostas psíquicas ao trauma são confirmadas e discutidas no estudo de Van der Kolk et al (s.d.), que mostra que as pessoas que aprendem a dissociar em resposta ao trauma são suscetíveis de continuar a utilizar esse tipo de defesa quando expostas a novas tensões, desenvolvendo amnésia para algumas dessas experiências. A longo prazo, isso pode dar origem ao transtorno dissociativo de identidade, que reflete um fracasso em integrar vários aspectos da identidade, memória e consciência, com uma incapacidade de recordar informações pessoais importantes, cuja extensão é demasiadamente abrangente para ser explicada pelo esquecimento normal. A característica do transtorno é a presença de duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos, que recorrentemente assumem o controle do comportamento (Van der Kolk et al ,s.d.).

A exposição ao trauma é a condição sine qua non para o desenvolvimento do TEPT. O transtorno constitui uma resposta retardada ou protraída a uma situação ou evento estressante, de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica e que seria capaz de provocar perturbação emocional na maioria das pessoas. Alguns fatores tais como certos traços de personalidade ou antecedentes emocionais podem diminuir a tolerância individual para a ocorrência da síndrome ou agravar sua evolução, mas esses antecedentes não são suficientes para explicar a ocorrência do transtorno (Ballone, 2005).

A natureza e duração da experiência influem no desenvolvimento ou não dos sintomas e em sua prevalência. Fatores preexistentes parecem produzir uma vulnerabilidade ao desenvolvimento do TEPT, como por exemplo, depressão ou ansiedade, exposição anterior a outras situações traumáticas, histórico de abusos físicos e graves psicopatologias em membros da família do indivíduo (Vieira & Vieira, 2005).

A violência pode diferir em tipo e intensidade, mas é certo afirmar que o impacto é sempre danoso, seja o sujeito alguém com suas capacidades físicas e intelectuais ainda em desenvolvimento, seja um homem ou mulher já maduros, experientes. Independente dessa caracterização, ele é sempre vítima. Aqui, também, pouco conta o gênero, embora possamos destacar que as mulheres são, em número, mais agredidas do que homens.

a violência deve sempre ser entendida como fator de risco para problemas de saúde, especialmente da saúde mental, em especial o abuso sexual, que é uma situação que ultrapassa os limites do permitido, que viola os direitos do indivíduo.

A literatura mostra que a dinâmica familiar é uma das principais influências sobre a saúde mental e os resultados deste estudo enfatizam o papel crítico das relações familiares nos sintomas de desordens psíquicas.

As pesquisas utilizadas neste estudo apontam para um acúmulo de evidências de que a exposição a todas as variáveis envolvidas num padrão de violência aumenta a probabilidade de desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático.

Como padrão consistente de resultado, as relações familiares são apontadas como fator crítico nesta relação violência-TEPT, podendo apresentar uma função protecionista e/ou atenuante, ou como agravante quando se trata de uma família disfuncional.

Assim, a partir da constatação da existência de padrões familiares que apontam para a ocorrência da violência, é possível (e necessário) que estes sejam identificados para a mudança dessa trajetória. Programas de proteção à família com caráter de prevenção e promoção de saúde podem exercer papel fundamental nesse quadro, contribuindo, por exemplo, na prevenção de situações de risco e fortalecimento dos vínculos familiares. O acompanhamento psicossocial tem potencial influência na melhoria da qualidade de vida dessas famílias.

Os resultados descritos nesta pesquisa são importantes no que diz respeito aos trabalhos de prevenção e promoção de saúde. A partir dos apontamentos a respeito das desordens psicológicas como produto de ambientes familiares caóticos, apresenta-se a necessidade de um olhar bem cuidadoso para essas pessoas que sofrem e sofreram algum tipo de violência, com vistas a proporcionar um bem estar e qualidade de vida não somente a elas, mas a todos os membros da família, para que esse padrão familiar violento seja quebrado. Ainda, os dados obtidos destacam a importância do diagnóstico e tratamento de crianças expostas a eventos traumáticos a fim de tratar, o quanto antes, as (inevitáveis) sequelas.

 

REFERÊNCIAS

American Psychiatric Association (2014). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5 ed.). American Psychiatric Association: Arlington.         [ Links ]

Ariés, P. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC.         [ Links ]

Ballone, G. J. (2005). Transtorno por Estresse Pós-Traumático. In: PsiqWeb, Internet [periódico na Internet] disponível em http://psiqweb.net/index.php/estresse-2/estresse-pos-traumatico-e-violencia-urbana/, recuperado em 13 abril, 2015.         [ Links ]

Benyakar, M. (2012). Los Disruptivo y lo Traumático: vivencias e experencias. In: Imago agenda, Internet [periódico na Internet] disponível em http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?idarticulo=1716., recuperado em 13 abril, 2015.         [ Links ]

Briggs-Gowan, M. J., Carter, A. S., Clark, R., Augustyn, M., McCarthy, K. J., & Ford, J. D. (2010). Exposure to potentially traumatic events in early childhood: differential links to emergent psychopathology. Journal of Child Psychology and Psychiatry.  51(10), 1132-1140. doi 10.1111/j.1469-7610.2010.02256.x        [ Links ]

Câmara, J. W. S, & Filho. (1999). Transtorno de Estresse Pós-Traumático em Policiais Militares e suas Famílias: Características Clínicas e Sociodemográficas de Pacientes Atendidos no Ambulatório de Psiquiatria da Polícia Militar de Pernambuco. Dissertação de Mestrado.         [ Links ]

Cyr, C., & Michel, G., & Dumais, M., (2013). Child maltreatment as a global phenomenon: from trauma to prevention. International Journal of Psychology. 48(2),141-148. doi: 10.1080/00207594.2012.705435.         [ Links ]

Cohen, R. (1989). Programas de educação e de intervenção de consultoria após desastres. In: Consecuencias Psicosociales de los Desastres : La Experiencia Latinoamericana. 265p.         [ Links ]

Johnson, K., Scott, J., Rughita, B., Kisielewski, M., Asher, J., Ong, R., & Lawry, L. (2010). Association of Sexual Violence and Human Rights Violations With Physical and Mental Health in Territories of the Eastern Democratic Republic of the Congo.JAMA. 304(5), 553-562. doi:10.1001/jama.2010.1086         [ Links ]

Kelly, U.A. (2010). Symptoms of PTSD and major depression in Latinas who have experienced intimate partner violence. Issues in Mental Health Nursing. 31(2), 119-127. doi: 10.3109/01612840903312020.         [ Links ]

Klasen F., Oettingen G., Daniels J., & Adam H. (2010). Multiple trauma and mental health in former Ugandan child soldiers. Journal of Traumatic Stress. 23(5), 573-581. doi: 10.1002/jts.20557.         [ Links ]

Lopez, G. (2014). Conséquences psychologiques et prise en charge des femmes victimes de violences. Revue De L'Infirmière. 63(205), 28-30. Doi : 10.1016/j.revinf.2014.09.010          [ Links ]

Maia, A. C., Moreira, S. H., & Fernandes, E. (2009). Adaptação para a língua portuguesa do Questionário de Experiências Dissociativas Peritraumáticas (QEDP) numa amostra de bombeiros. Revista de psiquiatria clínica. 36(1), 1-9. São Paulo. doi.org/10.1590/S0101-60832009000100001          [ Links ]

McLaughlin K.A., Conron K.J., Koenen K.C., & Gilman S.E. (2010). Childhood adversity, adult stressful life events, and risk of past-year psychiatric disorder: a test of the stress sensitization hypothesis in a population-based sample of adults. Psychological Medicine. 40(10), 1647-1658. doi:  10.1017/S0033291709992121        [ Links ]

Minayo, M.C.S. (1994). Violência social sob a perspectiva da saúde pública. Caderno Saúde Pública. 10(1), 7-18. Rio de Janeiro. doi.org/10.1590/S0102-311X1994000500002          [ Links ]

Organização Panamericana de Saúde. (2002). Protección de la Salud Mental em Situaciones de Desastres y Emergencias (Pan American Health Organization (PAHO) /OrganizaciónPanamericana de laSalud (OPS) - WHO - OMS). 108p.         [ Links ]

Panter-Brick, C., Goodman A., Tol W., & Eggerman, M. (2011). Mental health and childhood adversities: a longitudinal study in Kabul, Afghanistan. Journal of American Academy Child & Adolescent Psychiatry. 50(4), 349-363. doi:  10.1016/j.jaac.2010.12.001         [ Links ]

Silva, P. F. (2009). Violência, natureza e cultura: considerações acerca da sedimentação psíquica da violência difusa. Temas em Psicologia, V. 17, no 2, 417 - 431 Dossiê "Psicologia, Violência e o Debate entre Saberes". Universidade de São Paulo - Brasil.         [ Links ]

Thompson, S.J., Cochran, G., & Barczyk, A.N. (2012). Family functioning and mental health in runaway youth: association with posttraumatic stress symptoms. Journal of Traumatic Stress. 25(5), 598-601. doi: 10.1002/jts.21744         [ Links ]

Van der Kolk, B. A., van der Hart, O., & Burbridge, J. (s/d). Approaches to the Treatment of PTSD.  In S. Hobfoll & M. de Vries (Eds.), Extreme stress and communities: Impact and intervention (NATO Asi Series. Series D, Behavioural and Social Sciences, Vol 80). Norwell, MA: Kluwer Academic. Disponível em: http://www.trauma-pages.com

Vieira, C. M. S.; Vieira, O, Neto. (2005). Transtorno de estresse pós-traumático: uma neurose de guerra em tempos de paz. São Paulo: Vetor.

World Health Organization. (2002). World report on violence and health. Geneva. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/42495/1/9241545615_eng.pdf        [ Links ]

Ximenes, L. F. (2011). Transtorno de estresse pós-traumático em crianças e adolescentes. O impacto da violência e de outros eventos adversos sobre escolares de um município do estado do Rio de Janeiro. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca.         [ Links ]

Zlotnick, C., Capezza, N.M., Parker, D. (2011). An interpersonally based intervention for low-income pregnant women with intimate partner violence: a pilot study. Archives of Womens Mental Health. 14(1), 55-65. doi:  10.1007/s00737-010-0195-x         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons