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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.19 no.1 Lisboa abr. 2018

https://doi.org/10.15309/18psd190110 

Práticas e crenças de saúde na comunidade Hindu em Portugal

Practices and health beliefs in the Hindu community in Portugal

Ivete Monteiro 1,2,*, & Natália Ramos 2

 

1Hospital D. Estefânia, CHLC; ivete.monteiro@gmail.com

2CEMRI, Universidade Aberta. nataliapramos@gmail.com

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

O conhecimento do conceito de saúde individual e das crenças e práticas relacionadas, é fundamental para uma convergência de saberes e para um entendimento comum que visa melhorar a saúde do indivíduo e consequentemente, potenciar a saúde e bem-estar da comunidade. Este estudo tem como objetivos identificar crenças e práticas de saúde desenvolvidas na Comunidade Hindu residente em Portugal e analisar como essas crenças e práticas são transmitidas aos elementos mais jovens. Foi utilizada uma metodologia qualitativa, realizando 60 entrevistas semiestruturadas e observação fílmica e fotográfica das práticas realizadas nos templos e nas casas de pais e avós hindus pertencentes a esta comunidade e que falam português. Os dados recolhidos nas entrevistas foram sujeitos a análise do discurso e nas imagens obtidas foram analisadas as práticas e gestos relacionados com a saúde. Os resultados revelam que em Portugal, os hindus recorrem inicialmente às práticas de saúde herdadas dos antepassados e fundamentadas na medicina ayurvédica, as quais são complementadas com as recomendações dadas pela medicina ocidental. Existe uma preocupação em transmitir aos elementos mais novos estas práticas, através da repetição de gestos e da participação nas cerimónias e rituais, para que as mesmas não desapareçam e continuem a fazer parte da sua identidade cultural e familiar.

Palavras-chave: crenças de saúde, práticas de saúde, famílias hindus em Portugal, migração, saúde e educação, transmissão cultural e saúde

 

ABSTRACT

The knowledge of the concept of individual health and related beliefs and practices is fundamental for a convergence of knowledge and for a common understanding aimed at improving the health of the individual and consequently enhancing the health and well-being of the community. This study aims to identify beliefs and health practices developed in the Hindu community living in Portugal and to analyze how these beliefs and practices are transmitted to the younger members. A qualitative methodology was used, performing 60 semi-structured interviews and photographic and photographic observation of the practices performed in the temples and houses of Hindu parents and grandparents belonging to this Portuguese-speaking community. The data collected in the interviews were subjected to discourse analysis and the images obtained were analyzed the practices and gestures related to health. The results reveal that in Portugal, Hindus initially resort to health practices inherited from their ancestors and based on ayurvedic medicine, which are complemented by the recommendations given by Western medicine. There is a concern to transmit these practices to the younger members through the repetition of gestures and participation in ceremonies and rituals, so that they do not disappear and continue to be part of their cultural and family identity.

Key-words: health beliefs, health practices, Hindu families in Portugal, migration, health and education, cultural transmission and health

 

O hinduísmo assume-se como uma das principais e mais antigas religiões do mundo. É difícil definir com precisão a data do seu nascimento, mas crê-se que remonta a mais de quatro mil anos (Conio, 1986). Ao longo deste tempo, e apesar das várias influências sofridas, os valores e princípios do hinduísmo mantiveram-se na sua essência inalterados, estendendo-se a práticas religiosas, culturais e sociais. Nos dias de hoje, o hinduísmo assume-se como uma filosofia de vida, sendo uma das suas características a dinâmica entre o corpo, o espírito e a mente. Estes três elementos orientam e permitem a cada indivíduo um autoconhecimento constante, mas também uma ligação mais íntima com a natureza, com o meio que o rodeia, proporcionando no seu conjunto, uma satisfação e plenitude, que conduzem ao despojamento material e à ascendência espiritual.

O conhecimento do conceito de saúde individual e das crenças e práticas relacionadas, é fundamental para uma convergência de saberes e para um entendimento comum que visa melhorar a saúde do indivíduo e consequentemente, potenciar a saúde e bem-estar da comunidade. Este estudo tem como objetivos identificar crenças e práticas de saúde desenvolvidas na Comunidade Hindu residente em Portugal e analisar como essas crenças e práticas são transmitidas aos elementos mais jovens.

A saúde resulta da harmonia contínua entre o corpo, o espírito e a mente. Em oposição, a doença é compreendida como um estado de desarmonia entre as diferentes partes pelo que a cura resulta do restabelecimento do equilíbrio entre elas (Lopes, 2014). A restauração desse equilíbrio é conseguida através de práticas como a medicina ayurvédica, a meditação, as orações e os rituais, numa simbiose que se pretende que seja duradoura. Sendo a saúde um dos aspetos que mais se ressente em contexto migratório, o recurso à medicina popular adquiriu particular expressividade na comunidade hindu, conjugando o religioso com o profano, o passado com o presente, enriquecendo e valorizando cada momento e contribuindo para a afirmação da identidade individual e consolidação da cultura desta comunidade.

Na filosofia hindu o sagrado encontra-se intimamente ligado ao profano, coexistindo e complementando-se mutuamente. Esta constatação é particularmente evidente em situações de adversidade, de vulnerabilidade e de doença, onde se recorre a orações e rituais para pedir a ajuda dos deuses e atrair as suas benesses. Quer seja na privacidade das suas casas, através dos pujas diários, quer seja nos templos através dos atos de adoração e de contemplação, os hindus procuram persuadir os deuses a derramar sobre o indivíduo e a sua família, bênçãos e a libertá-los da doença, da pobreza, do mau-olhado e de todas as formas de sofrimento (Fuller, 1992). A relação entre os deuses e as pessoas torna-se mais familiar e mais próxima quando os membros de uma família adotam uma deitie protetora, à qual recorrem sempre que precisam. Esta relação que se caracteriza por um desequilíbrio de poder, tacitamente aceite, é alimentada pelas ofertas diárias de alimentos, flores e orações e permite que a ordem moral, dharma, se mantenha. Sempre que existe um desvio desta ordem moral, causada por comportamentos erróneos, por atitudes provocatórias ou mesmo por esquecimentos, que ofendem as deities, estas lembram as pessoas que devem regressar ao caminho da pureza e da humildade através de rituais de meditação, oração e ofertas que vão apaziguar a ira dos deuses que pode recair sobre o indivíduo em falta, mas também sobre os seus filhos ou sobre a sua família.

A doença não é considerada como um mal absoluto pois faz parte do ciclo de vida e permite, através do sofrimento, um contacto mais próximo com as divindades. Borges (2012) aprofunda esta ideia ao dizer que para os hindus o sofrimento e a dor são consequências de ações realizadas em outras vidas, pelo que são entendidas como necessárias para purificar o indivíduo, aproximando-o de Deus. A doença é vista como uma consequência inevitável de um karma pesado ou como uma punição pelo desrespeito e pela negligência na adoração da deitie. Os sintomas e sinais das doenças são entendidos como uma tradução direta da presença dos deuses, sendo um exemplo deste facto, a febre que é entendida, por muitos, como a presença da fúria de uma deusa quente, e cujo tratamento seria colocar panos frios aos pés da sua imagem no sentido de a acalmar e arrefecer. Paralelamente, são utilizados medicamentos e plantas que auxiliam na descida de temperatura e permitem uma recuperação mais rápida.

O carácter individual da doença, que atinge um indivíduo, pode facilmente transformar-se um mal que atinge toda a comunidade, se o comportamento desta não seguir os preceitos da humildade, da obediência e da adoração aos deuses. Deste modo, os grandes rituais e festividades devem ser sempre celebrados em comunidade, por todos os membros, de forma coletiva, exuberante e visível, com vista a uma devoção mais forte e consistente que proteja todos os indivíduos. O respeito e o seguimento das leis e preceitos permitem uma harmonia que precisa de ser constantemente trabalhada, quer no país de origem, quer no país de acolhimento. A maioria dos hindus que reside atualmente em Portugal encontra-se perfeitamente estabelecida no nosso país, assumindo uma participação ativa a nível económico, social e cultural.

Com a revolução dos cravos em 25 de abril de 1974, assistiu-se a uma vinda para Portugal de um grande número de elementos desta comunidade. Inicialmente os elementos masculinos vieram à procura de trabalho e de um local para residirem, trazendo depois as suas famílias. Os anos iniciais foram anos de muitas dificuldades, o que tornou a adaptação complicada, e por vezes, até dolorosa. Muitos autores abordam esta problemática atribuindo às diferenças linguísticas, culturais, sociais e até climáticas, esta adaptação difícil a um novo país (Bastos & Bastos, 2001; Gonçalves, Dias, Luck, Fernandes, & Cabral, 2003; Monteiro, 2007; Ramos, 1993, 2004, 2006, 2008, 2012). Esta mudança de país imposta e forçada tem, inevitavelmente, tradução a nível da saúde, sendo relatados casos de depressão, insegurança, cefaleias, doenças gástricas e problemas respiratórios. Inicialmente, e por falta de informação sobre o acesso aos cuidados de saúde e dificuldades a nível da língua, os hindus recorriam a curandeiros da comunidade e a práticas caseiras e tradicionais para resolverem as questões de saúde, adiando sempre que possível a ida ao médico, ou seja aos serviços oficiais de saúde.

Com o passar dos anos, o espírito de corporativismo e solidariedade entre os elementos desta comunidade, permitiu que as famílias hindus conquistassem o seu lugar e afirmassem a sua identidade num país com costumes e tradições diferentes. A forte coesão familiar e social, bem como a existência de práticas religiosas e culturais específicas, permitiu suplantar as adversidades e isolamento e visionar um futuro em Portugal (Malheiros, 1996). Se inicialmente, a comunidade hindu era vista com curiosidade, estranheza e até desconfiança, atualmente ela é entendida como parte da sociedade portuguesa com uma cultura única, que enriquece o nosso país. A abertura progressiva dos hindus ao exterior, partilhando as suas práticas gastronómicas, meditativas e culturais permitiu uma troca de ideias e de experiências, que trouxe benefícios inegáveis para todos. Esta reciprocidade proporcionou aos hindus, entre outros aspetos, o contacto com a medicina convencional praticada no país de acolhimento à qual recorrem e confiam, em simultâneo, com as práticas que foram interiorizadas e transmitidas pelos seus antepassados de geração em geração.

Os hindus trouxeram do seu país de origem práticas relacionadas com a saúde que foram transmitidas pelos seus pais e avós. Esta transmissão, feita através da observação de comportamentos e das lembranças e memórias que cada indivíduo tem da sua própria infância, foi sendo reproduzida, recriada e modificada mantendo viva a cultura desta comunidade. É frequente observarmos nas casas hindus, mulheres a preparem chás e tisanas que auxiliam na digestão ou utilizarem a curcuma diluída em água ou leite com mel para ajudar nas infeções respiratórias. As práticas domésticas de saúde fazem parte do quotidiano dos hindus e complementam um estilo de vida que se pretende que valorize a existência humana como uma dádiva de Deus.

As práticas relacionadas com a saúde assumem duas vertentes distintas, uma preventiva e outra curativa. A vertente preventiva é muito valorizada, recorrendo com frequência a uma alimentação cuidada, especiarias, chás e ervas que contribuem para a manutenção do bem-estar físico e que restabelecem o equilíbrio dos cinco elementos que fazem parte de toda a matéria do universo – éter, ar, fogo, água e terra. Associada a esta vertente os hindus desenvolvem práticas como a meditação, a prática de ioga e a oração, as quais permitem recentrar outros elementos que também fazem parte do corpo humano, a mente (manas), ego (ahamkara) e discernimento (buddhi). É da harmonia e equilíbrio destes elementos que resulta a saúde, a qual é entendida como uma bênção.

A maioria dos hindus segue uma alimentação predominantemente vegetariana abstendo-se do consumo de carne. Esta opção, baseada em crenças orientadoras, é justificada pelo ato de não infligir dor e sofrimento a um animal, evitando a acumulação de karmas que tornam a existência terrena mais pesada, atraindo a doença. A alimentação vegetariana permite manter um nível elevado de pureza (Borges, 2012), o que facilita o desprendimento da vida terrena e a evolução no plano espiritual. Na preparação dos alimentos são utilizados, em doses generosas, a manteiga clarificada (ghi) e o açúcar. Estes dois ingredientes consumidos em excesso e ao longo da vida, conduzem com frequência a problemas relacionados com o colesterol e a diabetes. Estas patologias são tratadas e controladas com ajuda de medicamentos receitados pelos médicos, mas também com ajuda de plantas como a gurmar, cujas folhas verdes são mastigadas em jejum para ajudar a reduzir os níveis de açúcar ou o gengibre que em chá pode ajudar no controle do colesterol. A complementaridade destas duas práticas, muitas vezes ocultada, é vista pelos hindus como um ganho pois permite acelerar o processo de cura ou de estabilização da doença. O receio de que os profissionais de saúde não concordem com estas práticas ou os critiquem pelas suas escolhas faz com que muitos hindus utilizem estas receitas domésticas apenas em casa ou na presença de outros hindus, permanecendo esta sabedoria popular dentro da comunidade. Os chás e especiarias, muito comuns na Índia, são desde tempos antigos utilizados na gastronomia mas também valorizados pelas suas propriedades curativas. São vários os chás utilizados com diversas finalidades terapêuticas, quer seja a nível gástrico, respiratório, imunológico ou até cardíaco. O uso correto de especiarias e ervas decorre dos ensinamentos que os membros mais velhos de cada família e que alguns elementos da comunidade transmitem. Também os comerciantes destes produtos, dão recomendações nas suas lojas, e aconselham qual o produto mais adequado às queixas e doenças de cada pessoa.

A prática diária de ioga, da meditação e das orações contribui para a manutenção da simbiose entre o corpo, a mente e o espírito. Apesar da prática do ioga estar muito difundida é na intimidade das suas casas que os hindus executam os seus exercícios aprendidos maioritariamente através da observação dos seus familiares e também através de exercícios que são transmitidos pelos canais de televisão indianos. Atualmente existem aulas de ioga em alguns templos hindus nas quais todos podem participar alargando a prática desta atividade tanto a hindus, como a outras pessoas da sociedade portuguesa. Este estudo tem como objetivos identificar crenças e práticas de saúde desenvolvidas na Comunidade Hindu residente em Portugal e analisar como essas crenças e práticas são transmitidas aos elementos mais jovens.

 

MÉTODO

O conhecimento das práticas e dos cuidados de saúde de uma comunidade pressupõe a análise das suas crenças, a justificação das suas práticas e a observação das mesmas, pelo que se optou por uma metodologia qualitativa que procurasse apreender as práticas diárias, relacionadas com a saúde, executadas na intimidade dos lares das famílias hindus e compreender como esses ensinamentos são transmitidos entre gerações.

Participantes

Foram realizadas 60 entrevistas semiestruturadas e observação fílmica e fotográfica das práticas realizadas nos templos e nas casas de pais e avós hindus pertencentes a esta comunidade e que falam português. Os entrevistados são na sua maioria mulheres, indo ao encontro das práticas domésticas relacionadas com a prevenção de doenças e com a melhoria da sintomatologia e correspondendo à importância que as mulheres têm na gestão da casa e no cuidado da saúde da sua família.

Procedimento

Após uma análise documental dirigida a diversos aspetos da comunidade hindu, os quais incluíram a história, a religião e a gastronomia, entre outros, foi sentida a necessidade de participar em palestras e em workshops que abordassem a cultura hindu, no sentido de compreender na prática, os gestos, os ingredientes e os significados atribuídos pelos membros da comunidade hindu às práticas interiorizadas. Após uma abordagem inicial efectuada a alguns peritos desta comunidade, iniciou-se a realização de entrevistas. A amostragem foi através da bola de neve, indo os entrevistados sugerindo outras pessoas da comunidade hindu para serem entrevistadas. Os dados recolhidos foram sujeitos a análise do discurso. Posteriormente, e após se terem estabelecido relações mais profundas com alguns elementos desta comunidade, foram iniciadas as observações fílmicas e fotográficas. As imagens obtidas foram analisadas, dando particular atenção às práticas e gestos relacionados com a saúde, bem como a transmissão dessas práticas aos elementos mais jovens era efetuada.

 

RESULTADOS

A mulher como Guardiã da Saúde da Família

O papel tradicional da mulher hindu, vista como gestora doméstica e mãe, tem vindo a ser alterado. Fruto de várias influências (necessidade económica, adaptação ao país de acolhimento, nível de escolaridade, mudanças no mundo laboral) a mulher hindu tem saído do seu espaço doméstico, afirmando uma nova identidade e tornando mais visível a sua atividade no exterior. Esta transformação, evidente a nível laboral, não impede que o seu contributo a nível da harmonia doméstica seja prejudicado. A organização de uma casa hindu assenta nas orientações dadas pela mulher, a qual é responsável pelas refeições, pela limpeza, pelas orações e pela saúde de todos os membros da família. Sant'ana (2008) refere a importância que as mulheres têm a nível da saúde ao afirmar que as mulheres indianas têm obrigações muito específicas a nível da saúde preventiva do seu agregado familiar. Também Monteiro (2007) aborda esta vertente ao estudar os cuidados que as mulheres indianas têm com as suas crianças, não só a nível alimentar, mas também utilizando elementos protetores.

As mulheres dominam a sabedoria e a medicina popular. Os conhecimentos sobre os benefícios das especiarias, das plantas aromáticas, da massagem, das mezinhas familiares são transmitidos fundamentalmente através da linhagem feminina, permitindo que as mulheres construíssem um corpo de conhecimentos próprios que foram adaptando às variantes locais e espaciais que encontram (Sant'ana, 2008). Estas práticas, relacionadas com a saúde, são dirigidas primordialmente à medicina preventiva e aos primeiros socorros, no sentido de potenciar a saúde de toda a família e contribuir para a resolução rápida e eficaz de qualquer situação. O papel feminino também adquire particular importância em questões relacionadas com a maternidade e com os cuidados à criança. Esta área da saúde, sensível do ponto de vista da temática sobre o género, é tradicionalmente atribuída à mulher a qual desenvolve as suas competências como parteira e curandeira, elevando-se por vezes ao plano místico, estabelecendo uma ligação direta com as deusas femininas que lhes atribuem qualidades curativas e de diagnóstico. Estas qualidades dignificam as mulheres e fortalecem o seu papel na comunidade hindu. Elas tornam-se mulheres sábias a quem todos recorrem quando têm um problema de saúde, esperando que lhes sejam dados óleos para passar a dor, que lhes sejam recomendados emplastros para torcicolos ou ainda oferecidas raízes para passar uma constipação. Apenas se os sintomas se agravarem ou persistirem é que os hindus recorrem ao médico. No entanto, atualmente as mulheres mais novas recorrem a produtos manipulados que mandam vir da Índia e a medicamentos indo a pouco e pouco, esquecendo a medicina popular que exige tempo para a sua aprendizagem e elaboração (Sant'ana, 2008).

As Crianças e a Saúde

Os hindus encaram o nascimento de uma criança como uma bênção de Deus, sendo entendido como um sinal de favorecimento e de merecimento para os pais e para toda a família. A criança representa o indivíduo no seu estado mais puro, com uma ligação direta a Deus, pelo que é fonte de alegria e de benefícios. Ela atrai o que de bom existe no mundo. No entanto, a sua pureza e ingenuidade ficam sujeitas à admiração e aos olhares dos que a rodeiam pelo que frequentemente são vítimas de mau-olhado. Monteiro (2007) reforça esta ideia ao afirmar que as crianças pela sua fragilidade e inocência são consideradas as pessoas mais vulneráveis ao mau-olhado. A forma de evitar estes olhares carregados de inveja e ciúme, protegendo as crianças da doença, consiste no uso de cajal (tinta preta) ou de fios e pulseiras colocados nas mãos e nos tornozelos, que desviam a atenção e por isso não centralizam toda a má energia na criança. Também os talismãs benzidos, preferencialmente por sacerdotes da Índia, são utilizados como elementos protetores, visto simbolizarem a presença permanente de Deus. Outras práticas menos visíveis na comunidade consistem em rezas que são efetuadas em dias específicos e que permitem através do sal, malagueta e mostarda em grão retirar o mau-olhado e restabelecer a harmonia da criança.

Várias crenças relacionadas com a saúde das crianças são efetuadas nas casas hindus e variam de família para família, não sendo generalizadas, por exemplo: evitar que o bebé olhe para o espelho para os dentes não crescerem tortos; não pentear o bebé com escova antes dos seis meses para não afastar a inteligência; não sentar precocemente o bebé porque pode fazer mal à coluna. Também a alimentação é vista como uma forma de proteger o corpo e de evitar a doença, pelo que desde muito cedo existem cuidados redobrados, por forma a darem às crianças uma alimentação mais saudável. Se o leite materno continua a ser o leite preferencial para alimentar o bebé logo que este nasce, com o seu crescimento e introdução de alimentos mais sólidos, as mães e as avós utilizam lentilhas e produtos indianos para que as crianças se habituem à comida indiana. As mães mais jovens recorrem com frequência a produtos comprados cuja preparação é mais rápida, poupando-lhes tempo e facilitando a gestão da casa, enquanto que as mães que coabitam com pessoas mais velhas, ainda preparam a comida das crianças da forma mais tradicional, secando os grãos ao sol para que estes absorvam a energia, triturando os grãos em farinha e depois cozinhando lentamente todos os ingredientes. Esta ligação entre a natureza e o indivíduo é muito valorizada, sendo incutida, mesmo que de forma inconsciente, às crianças e aos elementos mais jovens da família. Também o jejum como forma de purificação do corpo é iniciado nas crianças, ainda que de forma parcial. Todas estas práticas, interligadas com a oração e a meditação, permitem uma valorização do corpo, do espírito e da mente, e consequentemente, uma valorização da saúde individual, potenciando a saúde e bem-estar da comunidade.

 

DISCUSSÃO

As mulheres hindus que vivem em Portugal, detentoras de uma sabedoria popular, que herdaram e interiorizaram dos seus antepassados, procuram resolver situações de doença e de mau estar através do uso de plantas e especiarias que utilizam diariamente na intimidade dos seus lares e às quais são reconhecidas propriedades medicinais e terapêuticas fundamentadas na medicina ayurvédica. Este conhecimento empírico, enfatizado pelas crenças, saberes e memórias das pessoas mais velhas, reforça a identidade cultural desta comunidade. Existe uma preocupação em transmitir aos elementos mais novos estas práticas, através da repetição de gestos e da participação nas cerimónias e rituais, para que as mesmas não desapareçam e continuem a fazer parte da sua identidade cultural e familiar.

As mulheres hindus mais jovens aliam estes dois mundos, recorrendo às tradições populares, simultaneamente com as práticas modernas da sociedade de acolhimento. Esta tentativa de racionalizar o tradicional e de modernizá-lo, poderá conduzir a algum esquecimento e a um certo afastamento de uma sabedoria que deveria ser mantida, escrita e preservada.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para Correspondência

Rua da Escola Politécnica 141-147, 1269-001 Lisboa. e-mail: ivete.monteiro@gmail.com.

 

Recebido em 06 de Outubro de 2017/ Aceite em 31 de Dezembro de 2017

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