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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.18 no.2 Lisboa Aug. 2017

https://doi.org/10.15309/17psd180213 

O efeito do álcool na percepção visuoespacial e na cognição do espaço

The effect of alcohol in visuospatial perception and spatial cognition

Lívia da Silva Bachetti1,3,*, Sergio Sheiji Fukusima1,4, & Maria Amélia Cesari Quaglia2,5

 

1Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP; Brasil.

2Universidade Federal de São João del-Rei; São João del-Rei, MG; Brasil.

3e-mail: livbachetti@yahoo.com.br.

4e-mail: fukusima@usp.br .

5e-mail: melinha@ufsj.edu.br.

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

O uso excessivo de bebidas alcólicas é uma prática comum em todo o mundo, apesar de seus efeitos deletérios. O presente artigo visa identificar alguns dos principais danos gerados pelo consumo do álcool na percepção e na cognição espacial mediante uma revisão de literatura das pesquisas realizadas sobre o tema. Dentre os principais prejuízos provocados pelo uso do álcool destacam-se as alterações na percepção de profundidade dos objetos, no processamento de informações visuoespaciais, na percepção de contrastes dos objetos, na construção e na utilização e manipulação da informação a partir de imagens visuais, na memória explícita para estímulos espaciais e na navegação espacial. Para situar melhor o tema neste campo de investigação, primeiramente, foram apresentados os conceitos de cognição espacial e percepção do espaço tridimensional, assim como as principais vias cerebrais fundamentais neste processo. Em seguida, foram descritos os resultados de pesquisas que associam estes prejuízos às respectivas áreas cerebrais afetadas pelo uso do álcool, em especial os lóbulos parietal, o lobo occipital e o hipocampo.

Palavras-chave: álcool, percepção, cognição.

 

ABSTRACT

The excessive use of alcoholic beverages is a common practice around the world, despite its deleterious effects. The present paper aims to identify some of the major damages caused by the consumption of alcohol on perception and spatial cognition through a literature review of studies conducted on the topic. Among the main damages caused by alcohol, we highlight the difficulties in depth perception of objects; processing visuospatial information; perception of contrasts objects; construction, use and manipulation of information from visual images; explicit memories formation of spatial stimuli; and spatial navigation. To better situate the topic in this field of research, we present first the concepts of spatial cognition and perception of three-dimensional space, as well as major brain pathways in this process. Then, we describe the results of studies linking these losses to the respective brain areas affected by alcohol, especially to the parietal lobe, the occipital lobe and the hippocampus.

Keywords: alcohol, perception, cognition.

 

O consumo de bebidas alcoólicas pelo homem ocorre há milhares de anos nas mais diferentes culturas e religiões. Contudo, no decorrer do tempo, o seu caráter nocivo têm recebido maior destaque, principalmente no que se refere à dependência da substância, classificada como doença crônica, e aos problemas físicos e sociais acarretados pelo uso indevido (Sakellari, Psychogiou, Sapountzi-Krepia, 2003). Atualmente, o álcool encontra-se dentre as principais causas de doença e mortalidade na população mundial, tanto pelos impactos que acarreta à saúde quanto pelas consequências relacionadas ao comportamento inadequado de pessoas intoxicadas como acidentes de trânsito e violência (WHO, 2011).

O álcool, enquanto substância neurotóxica, é capaz de provocar várias alterações no processamento das informações pelo cérebro, prejudicando as funções visuoespaciais e executivas, o desempenho visual e motor, a velocidade psicomotora, a memória e a tomada de decisões (Anthony & Andrade, 2009; Cunha & Novaes, 2004). A grande maioria dos estudos desenvolvidos para avaliar os efeitos do consumo de bebidas alcoólicas na percepção e cognição tem apontado para os prejuízos desta substância à percepção e à cognição espacial de humanos e animais.

Essa revisão narrativa tem por objetivo caracterizar os principais efeitos do álcool à percepção e à cognição do espaço, primeiramente, com a descrição de conceitos de percepção e cognição espacial, seguidos pela descrição dos estudos que encontraram prejuízos desencadeados pela ingestão do álcool à percepção e cognição do espaço. Por último, serão descritas pesquisas sobre as principais regiões cerebrais afetadas pelo consumo deletério de bebidas alcoólicas.

Percepção e cognição do espaço

A percepção é um processo complexo no qual as informações sensoriais provenientes do meio-ambiente integram-se à cognição, à memória e ao comportamento (Lent, 2001). Ela é essencial para o desempenho comportamental e é parte estruturante do pensamento, das emoções e demais processos psicológicos básicos (Galdino, 2010). Os seres humanos utilizam cotidianamente sua capacidade de perceber, representar, compreender e agir no espaço tridimensional em que se encontram, das mais simples às mais complexas tarefas que realizam (Pinheiro-Chagas & Haase, 2010). A percepção do mundo tridimensional é essencial para que possamos reconhecer os ambientes e os objetos, navegar no espaço e planejar as ações. Para isso, é necessária a integração de informações provenientes dos diversos sentidos corporais, em especial o da visão. As várias informações visuais de profundidade precisam ser combinadas pelo cérebro, tanto as provenientes das pistas binoculares, como a disparidade binocular, quanto as derivadas das pistas monoculares, como a perspectiva aérea, a textura, a sombra, o contorno, o brilho, o tamanho relativo, a paralaxe de movimento, a oclusão e a densidade relativa dos objetos (Bicas, 2004; Cutting & Vishton; 1995; Welchman et al., 2005). Indicadores relacionados à percepção da forma dos objetos, como a sensibilidade ao contraste, também são considerados neste processo (Cruz, 2010).

Assim como alguns outros animais, os seres humanos possuem a capacidade de perceber o mundo ao seu redor com os dois olhos, a binocularidade. Esta característica proporciona ao indivíduo a geração de duas imagens visuais ligeiramente distintas provenientes de cada um deles. Ao serem superpostas, estas imagens fornecem as informações de profundidade dos objetos e a percepção da tridimensionalidade, assim como as informações de localização espacial egocêntrica dos mesmos (Bicas, 2004; Mattei & Mattei, 2005).

Além das informações binoculares, as pistas monoculares também são importantes para a percepção de profundidades e distâncias. A disposição dos vários objetos no espaço nos proporciona informações importantes para essa finalidade perceptiva. Os objetos mais próximos são percebidos como maiores – pista de tamanho relativo – e com contornos e brilhos mais acentuados em relação aos objetos mais distantes. Os objetos mais próximos também podem cobrir parcial ou totalmente os contornos e as áreas dos mais distantes, oclusão, proporcionando informações da ordem dos mesmos. Considerando os indícios de movimento, os objetos mais próximos parecem deslocar-se mais rapidamente do que os objetos mais distantes – paralaxe de movimento. A observação dos objetos pela perspectiva aérea proporciona a percepção dos mais distantes como mais azulados e com contraste reduzido em relação aos objetos em primeiro plano. Além disto, relevos e concavidades também podem ser inferidos a partir de informações de iluminação e de indícios pictóricos a partir de sombras e sombreamento (Bicas, 2004; Cutting & Vishton; 1995; Fukusima, 1997; Welchman et al., 2005).

Intimamente relacionada à percepção espacial está a cognição do espaço, que diz respeito à capacidade de perceber as relações espaciais entre os objetos, levando em conta as noções de profundidade, distância e solidez. Os estímulos sensoriais são organizados e integrados para a formação de um cenário amplo e fiel do meio em que o indivíduo se encontra (Mattei & Mattei, 2005). Envolve o conhecimento das características espaciais dos objetos e eventos, da aquisição até o armazenamento e a recuperação destas informações durante a interação do indivíduo com o mundo. Desta forma, é importante considerar as diversas propriedades espaciais fundamentais de objetos e cenas na percepção, como as características de forma, tamanho e localização, a distância, a direção, a separação, a conexão, os padrões e o movimento (Montello, 2001). Nesse processo, as diversas vias sensoriais do organismo são fundamentais para a obtenção de informações para a cognição do espaço. Dentre elas, podemos destacar, além do sistema visual, o sistema tátil, o sistema auditivo, o sistema proprioceptivo (Mattei & Mattei, 2005).

A integração de todos estes aspectos, motores, sensoriais e cognitivos, é fundamental para que o indivíduo seja capaz de determinar e manter o curso de uma trajetória no espaço, de navegar, deslocando-se em seu entorno a fim de alcançar um alvo. A navegação espacial pode ser realizada em pequena escala, com o indivíduo deslocando-se em seu ambiente imediato, ou em grande escala, para destinos mais distantes. Durante a navegação, os inputs visuais são utilizados para que o indivíduo ajuste sua trajetória com êxito diante dos obstáculos que possam surgir no percurso. Entretanto, a navegação também pode ser executada na ausência de visão, como nos deslocamentos no escuro ou com baixa acuidade visual (Paquet et al., 2007).

A percepção e as principais vias neurais visuais

As informações sensoriais dos objetos são captadas na retina, transformadas em sinais neurais e enviadas ao córtex visual, que corresponde a todo o córtex occipital e às grandes áreas do córtex parietal e temporal. Para tanto, as imagens são fragmentadas e seguem até o córtex visual primário, no lobo occipital, por meio de duas vias distintas, a parvocelular e a magnocelular. O processamento iniciado com a estimulação dos cones na retina segue pela via parvocelular até o córtex visual primário. Essa via caracteriza-se pela presença de células com campo receptivo menor, pelo processamento mais lento das informações e pela sensibilidade à cor, ao preto e branco de alto contraste e a detalhes do objeto. A via magnocelular é responsável pelos estímulos provenientes dos bastonetes. Essa via apresenta campos receptivos maiores e frequências de respostas mais rápidas. A via magnocelular também se caracteriza pela alta sensibilidade à luz e pela especificidade para estímulos de localização espacial, movimento e preto e branco de baixo contraste. No córtex visual primário, as vias magnocelular e parvocelular se bifurcam , respectivamente, nas duas principais vias de processamento da informação visual, a via dorsal e a via ventral (Lent, 2001).

A via dorsal responde pelos aspectos espaciais da visão. Ela codifica as localizações dos objetos no espaço em relação ao observador e identifica as relações espaciais, a direção e a coordenação dos movimentos dos objetos (Burgess, 2008; Lent, 2001). A via dorsal exerce o controle visual do comportamento motor, guiando a ação. Tem como principal função permitir o comportamento guiado visualmente ao objeto e ao ambiente (Norman, 2002). Em contrapartida, a via ventral opera na identificação dos objetos e de suas características de cor, textura, tamanho e forma. Ele transforma as informações visuais sensoriais em um quadro de referência exocêntrico, centrado no objeto (Burgess, 2008; Lent, 2001; Norman, 2002).

Todas essas informações visuais precisam ser integradas para que o indivíduo seja capaz de organizar o ambiente em um referencial coerente, no intuito de determinar as localizações espaciais e manipular o meio em que se encontra. Para tanto, existem duas formas de se representar o espaço, ou, dois sistemas de referência espacial, frame of reference, o egocêntrico e o alocêntrico. O sistema de referência egocêntrico diz respeito à definição das localizações espaciais tendo como referência o observador. As representações espaciais egocêntricas são mantidas no cérebro e atualizadas automaticamente enquanto nos movemos, intencionamos nos mover ou nos imaginamos executando o movimento. Estudos recentes têm encontrado a atuação da via dorsal nas representações egocêntricas, especialmente do córtex parietal posterior. Por outro lado, o sistema de referência alocêntrico têm como foco principal o objeto e suas características. Este sistema adota como referência as pistas do ambiente durante a localização espacial. Este processo é mediado, principalmente, pelo sistema visual ventral, em especial o hipocampo, e requer a participação direta da memória de longo prazo. Estudos com animais revelaram a presença de neurônios de posição ou de lugar, place cells, localizados no hipocampo, que disparam potenciais de ação quando um animal explora um lugar familiar. Essas células disparam quando o indivíduo encontra-se em um local específico, sendo assim, fundamentais nas respostas comportamentais durante a navegação em ampla escala (Burgess, 2008; Silvers et al., 2003).

Os efeitos prejudiciais do álcool na percepção visuoespacial

Os efeitos neurotóxicos do álcool nas funções neurovisuais e na percepção têm sido verificados pela grande maioria dos estudos realizados na área (Galdino et al., 2010). Khan e Timney (2007) avaliaram participantes saudáveis na realização de três tarefas, antes e depois o consumo de álcool, e encontraram uma redução no processamento neural desses indivíduos, mesmo para níveis de alcoolemia moderados – concentração de álcool no sangue entre 0,06% e 0,08%. A presença de álcool no sangue provocou uma redução no tempo de reação dos participantes durante a tarefa de detecção de um alvo em quatro posições diferentes. Também foi responsável pela redução do processamento neural, caracterizado por um aumento da magnitude do efeito flash-lag devido, possivelmente, a um retardo provocado no sistema de transmissão de informações. O efeito flash-lag é uma expressão de latência neuronal. Segundo os autores, o álcool causou um aumento nesta latência durante o processamento das informações visuais.

A interferência provocada pelo álcool na percepção visual de contraste de indivíduos saudáveis sob o efeito da substância (Cavalcanti & Santos, 2008; Galdino, 2011; Warten & Lie, 1996) e em alcoolistas em remissão (Cruz, 2010), também têm sido constatada. A função de sensibilidade ao contraste (FSC) é uma das técnicas utilizadas para avaliar a percepção visual, mais especificamente, o funcionamento dos mecanismos sensoriais básicos do processamento visual da forma dos objetos (Cavalcanti & Santos, 2008; Cruz, 2010; Galdino, 2011). O contraste provocado pela diferença de luminância nas dimensões espaciais do objeto em relação ao ambiente faz com que o indivíduo seja capaz de percebê-lo (Da Silva Souza et al., 2013). A avaliação psicofísica da percepção de contraste é importante para avaliar os prejuízos na percepção visual em testes neuropsicológicos (Brenner et al., 2002), por trata-se de um dos diversos indicadores da forma e de detalhes dos objetos (Cruz, 2010). Desta maneira, a percepção de contraste tem sido utilizada também para avaliar os possíveis danos à visão relacionados aos transtornos psicopatológicos e ao uso de substâncias (Cavalcanti & Santos, 2008; Cruz, 2010; Galdino, 2011; Warten & Lie, 1996).

Cruz (2010) investigou oito indivíduos diagnosticados com a Síndrome de Depêndencia do Álcool, durante a realização de tarefas de escolha forçada, e encontrou um prejuízo na percepção visual de contraste nos alcoolistas, principalmente para frequências espaciais médias, mesmo em indivíduos que se mantiveram abstêmios por um período de tempo superior um ano. Resultados semelhantes também foram observados em indivíduos saudáveis, antes e depois a ingestão de etanol por Galdino (2011). A autora investigou a percepção de contraste em mulheres adultas antes e após a ingestão moderada de álcool – alcoolemia de 0,09%. Foi utilizado o método psicofísico de escolhas forçadas. Os resultados revelaram uma diminuição da sensibilidade para as frequências altas. Houve alterações na Função de Sensibilidade ao Contraste (FSC) decorrentes da ingestão moderada de álcool. As frequências espaciais mais altas dizem respeito aos detalhes finos dos objetos. Alterações na sensibilidade ao contraste para altas frequências espaciais também foram encontradas por Cavalcanti e Santos (2008). Os autores avaliaram 4 mulheres adultas, antes e depois da ingestão moderada de álcool – alcoolemia de 0,06% – durante uma tarefa de escolha forçada. Estes resultados corroboram os anteriormente encontrados por Warten e Lie (1996) quanto à diminuição da sensibilidade ao contraste nas frequências mais altas devido à ingestão moderada de álcool. Os autores verificaram um prejuízo na sensibilidade ao contraste para as frequências espaciais altas em 22 homens saudáveis com concentração de álcool no hálito de 0,00, 0,05 e 0,1%. A percepção das variações de contraste, ou brilho, dos objetos permite a identificação de seus detalhes assim como o de sinas visuais em relação ao espaço que ocupam (Schwartz, 2004).

Danos relacionados à percepção visual de profundidade também têm sido relatados em indivíduos saudáveis antes e após o consumo de etanol (Wegner & Fahle, 1999). Treze participantes saudáveis foram reavaliados antes e após atingirem um nível de álcool no sangue de 0,08% a 0,13%. Os resultados apontaram para um prejuízo significativo na memória de curto prazo e na percepção de profundidade, avaliadas na tarefa de discriminação de Vernier. Em um estudo anterior, Warten e Lie (1996) encontraram uma redução da estereoacuidade, importante para a percepção de profundidade, dentre os danos provocados pelo álcool à percepção visual de indivíduos com níveis baixos de concentração de álcool no hálito, 0,05%. Além disto, este prejuízo mostrou-se maior com o aumento da intoxicação alcóolica.

A intoxicação alcoólica também prejudicou a percepção de profundidade na paralaxe de movimento em um estudo realizado por Nawrot (2001). Esse fenômeno influencia diretamente a capacidade de dirigir. Os participantes foram avaliados antes e depois o consumo do álcool. Durante a realização das tarefas, os limiares da paralaxe de movimento foram significativamente maiores devido à intoxicação alcoólica aguda – alcoolemia de 0,1%. Os autores sugerem que essa falha na paralaxe de movimento poderia interferir na tomada de decisões e nos julgamentos rápidos feitos por motoristas embriagados, dada a imprecisão ou a ausência da informação perceptual da localização dos obstáculos. Esses resultados são consistentes com os encontrados em um estudo posterior realizado por Nawrot, Nordenstrom e Olson (2004). Nesse estudo, 15 observadores foram avaliados antes e depois do consumo de etanol, atingindo uma concentração de álcool no sangue de 0,1%. A intoxicação alcoólica prejudicou a percepção de profundidade na paralaxe de movimento durante a tarefa. Foi observado um aumento significativo no limiar da percepção de profundidade na paralaxe de movimento. Os autores sugeriram que uma falha na paralaxe de movimento pode estar relacionada à ocorrência de acidentes de trânsito em indivíduos alcoolizados. As alterações nos movimentos dos olhos podem prejudicar os julgamentos do motorista, uma vez que as informações de profundidade provenientes do meio na paralaxe de movimento tornam-se pouco acuradas e imprecisas durante a intoxicação alcoólica.

Em estudo posterior, Joyce e Nawrot (2007) investigaram os efeitos do etanol na profundidade percebida e nos movimentos oculares de rastreio durante a paralaxe de movimento. Os participantes foram avaliados em dois momentos, antes e depois da ingestão de álcool. Foram observadas alterações decorrentes do etanol nas tarefas de percepção de profundidade na paralaxe de movimento e nas tarefas de movimentos oculares de rastreio, pursuit gain. Os movimentos oculares de perseguição lenta dizem respeito à capacidade de se manter a estabilidade da imagem de um alvo em movimento na fóvea, sendo que, alterações na velocidade deste movimento são indicadoras de possíveis disfunções do tronco encefálico. Por outro lado, os movimentos sacádicos dos olhos possibilitam que as imagens dos objetos sejam posicionadas sobre a fóvea e sua avaliação permite verificar a eficiência do SNC no controle dos movimentos rápidos dos olhos (Tuma et al., 2006). Observou-se uma diminuição no ganho de perseguição lenta, smooth pursuit gain, e um aumento no movimento sacádico dos olhos, à medida que se aumentava a concentração de álcool no sangue. Os participantes apresentaram uma mudança significativa no desempenho da tarefa de paralaxe de movimento com um nível de alcoolemia médio entre 0,04% e 0,06%. Vorstius et al. (2008) também investigaram o efeito do álcool no processamento visual por meio da avaliação dos movimentos sacádicos dos olhos, em 24 indivíduos saudáveis, antes e depois o consumo de etanol. Foram encontrados efeitos significativos do etanol na latência e na amplitude sacádica durante duas tarefas oculomotoras, indicando um prejuízo provocado pela intoxicação alcoólica. Este comprometimento na amplitude sacádica sugere a atuação de processos cognitivos de alta ordem na execução da tarefa de remapeamento espacial de posição do alvo na ausência de um objetivo sacádico visualmente específico.

Outra característica investigada em indivíduos alcoolizados é a capacidade de juntar as características dos objetos, binding, e a percepção-ação. Assim, as informações sensoriais armazenadas nas várias regiões do cérebro são integradas para a formação das representações neurais que se unificam na percepção do estímulo. Indivíduos sob o efeito do álcool, com concentrações sanguíneas moderadas, 0,04%, apresentaram um prejuízo perceptivo na capacidade de integrar as características de cor e forma e de localização e forma dos objetos (Colzato, Erasmus & Hommel, 2004). Entretanto, os autores não encontraram prejuízos na capacidade na capacidade de integrar a percepção e a ação. Os dados dos 70 indivíduos saudáveis foram coletados em dois momentos, antes e após o consumo moderado de álcool (0,034% de alcoolemia).

Os efeitos do álcool na cognição do espaço

O uso do álcool também tem sido relacionado a danos na cognição espacial, tanto em indivíduos saudáveis quanto em alcoolistas (Beatty et al., 1996; Beatty et al., 1997; Fama et al., 2004; Fama et al., 2006; Sullivan, Rosenbloom & Pfefferbaum, 2000). Beatty et al. (1996) investigaram a cognição espacial de alcoolistas que passaram por um processo de desintoxicação recentemente – após 21 a 45 dias de tratamento – sob 3 aspectos do processamento de informação espacial: orientação alocêntrica e exocêntrica; análise de características e análise configuracional; e julgamento espacial categórico e por coordenadas. Vinte e oito alcoolistas crônicos realizaram tarefas de escaneamento visuoespacial, scanning, construção, imagem mental, mental imagery, e memória espacial anterógrada e retrógrada. Os resultados revelaram que os alcoolistas tiveram prejuízos na capacidade de realizar o escaneamento espacial, na construção e na utilização e manipulação da informação a partir de imagens visuais. Também foram encontrados prejuízos nas medidas de orientação alocêntrica, na análise de característica e configuração e em três tarefas de memória espacial anterógrada. Contudo, não houveram alterações significativas na memória espacial remota, orientação egocêntrica e nos julgamentos espaciais de coordenada. Os autores supuseram que estes déficits não estão relacionados à uma disfunção cerebral localizada. Os prejuízos encontrados na população de alcoolistas em remissão apontam para os danos potencialmente importantes provocados pelo álcool em aspectos fundamentais do processamento de informações espaciais, mesmo depois de um curto período de desintoxicação.

Em estudo posterior, Beatty et al. (1997) reavaliaram a percepção espacial em alcoolistas, levando também em consideração o uso do álcool em conjunto com outras drogas como a maconha, dentre outras. Fizeram parte do experimento 94 alcoolistas divididos em três grupos: abuso de álcool (n=45), abuso de álcool e maconha (n=20) e abuso de álcool e outras drogas ilícitas (n=29). Os dados também foram coletados após 3 semanas de início do tratamento. Os grupos foram avaliados quanto à percepção e à construção visuoespacial, à memória espacial e ao conhecimento geográfico. Os alcoolistas que não faziam uso de outras drogas, assim como os demais indivíduos dos grupos experimentais, apresentaram prejuízos significativos em todas as medidas de percepção e construção visuoespacial, além de prejuízos na aprendizagem e memória. O mesmo não foi observado durante a avaliação de conhecimento geográfico, que necessitou do conhecimento de relações espaciais. Nessa tarefa, apenas o grupo de alcoolistas que também faziam uso de outras drogas apresentaram prejuízos.

Fama et al. (2004) estudaram 51 alcoolistas do sexo masculino desintoxicados e 63 homens saudáveis para avaliar a percepção visual, a aprendizagem perceptiva e a memória, com o objetivo de verificar um possível prejuízo na percepção visuoespacial dos mesmos. Como resultado, os alcoolistas apresentaram danos na percepção visuoespacial, nas funções executivas e de memória explícita para estímulos espaciais. Apesar de desempenharem as tarefas de aprendizagem visuoespacial e de evocação episódica de estímulos espaciais de forma semelhante às dos indivíduos saudáveis, os alcoolistas tiveram uma maior demanda cognitiva e evocaram processos cognitivos de alta ordem para desempenhar tarefas fáceis. Por outro lado, o grupo controle evocou processos visuoespacias básicos na mesma tarefa. Em estudo subsequente, Fama et al (2006) também encontraram um prejuízo na capacidade visuoperceptual de 13 homens alcoolistas durante a realização do Teste de Figuras Incompletas de Gollin. Do total de participantes, 4 manifestaram a síndrome de Korsakoff induzida pelo álcool.

O álcool também pode prejudicar a capacidade do indivíduo de processar a informação espacial e, desta forma, o desempenho em tarefas de navegação espacial. Segundo Matthtews et al. (1996), o etanol provoca uma degradação no processamento da cognição espacial devido aos seus efeitos seletivos no hipocampo, principal área cerebral que medeia o processamento cognitivo espacial. Estes prejuízos ocorreriam principalmente em tarefas de memória e aprendizagem espacial. Os resultados encontrados em estudos com animais apontam essas tendências. Esse efeito foi observado nos descendentes de ratas que usaram a substância na gestação. Durante a realização de tarefas no labirinto com água de Morris, os ratos jovens cujas mães consumiam uma dieta com 35% das calorias derivadas do álcool tiveram um prejuízo na realização da tarefa de alcançar a plataforma sob a água. Esse resultado apontou para a interferência da exposição pré-natal do álcool na capacidade de processar informações espaciais (Blanchard, Riley & Hannigan, 1987). Resultados semelhantes também foram encontrados por Gianoulakis (1990). Os ratos expostos ao álcool durante o período gestacional apresentaram déficit nos processos de memória espacial na tarefa do labirinto de Morris. A prole exposta ao álcool demorou mais tempo para executar a tarefa e nadou distâncias maiores antes de localizar e subir na plataforma. Entretanto, em um estudo recente de Novier et al. (2012) os resultados apontam que pequenas doses de álcool não prejudicaram a memória espacial de ratos jovens e adultos durante a tarefa de navegação no labirinto de Morris, e sim aumentaram seu desempenho motor durante a realização da tarefa. As tarefas foram realizadas após 30m da administração de pequenas doses de etanol (0,5 g/kg, 0,75 g/kg, ou de 1,0 g/kg).

Alterações perceptivas relacionadas à fisiologia cerebral em humanos e animais

Os resultados encontrados por Sullivan, Rosenbloom e Pfefferbaum (2000) já apontavam para o prejuízo das funções visuoespaciais de 71 alcoolistas, recentemente desintoxicados, durante a realização de uma bateria de testes neuropsicológicos. Foram avaliadas, além das habilidades visuospaciais, as funções executivas, a memória de curto prazo, a capacidade motora dos membros superiores, a memória declarativa, a marcha e equilíbrio. Foi encontrado um prejuízo significativo na habilidade visuoespacial dos participantes. Segundo os autores, as alterações visuoespaciais fazem alusão ao sistema cortico-cortical, entre o córtex pré-frontal e parietal. De acordo com Mattei e Mattei (2005), as áreas 7, 39 e 40 de Brodmann, no córtex parietal posterior direito, são responsáveis por grande parte das interações necessárias à percepção do espaço, dentre elas, o direcionamento espacial da atenção e a integração percepção e ação. Estudos com Imagens de Ressonância Magnética Funcional mostraram lesões na área intraparietal que estão associadas a prejuízos na capacidade de integrar as informações do espaço extrapessoal para a formação de representações coerentes e interativas. Essa capacidade é fundamental para o desenvolvimento adaptativo da cognição do espaço. Nesta região do cérebro, também estão presentes grupos neuronais importantes na representação do espaço extracorpóreo visando a ação. As informações visuais, auditivas, táteis e proprioceptivas também são consideradas para a formação deste panorama espacial.

Estudos desenvolvidos com gatos demostraram que a exposição aguda ao álcool prejudicou a resposta dos neurônios da área 17 do córtex visual primário (Chen et al., 2010). O álcool reduziu a atividade espontânea dos neurônios e a integração das respostas visuais evocadas, fornecendo correlatos fisiológicos para alguns dos danos na percepção visual observados em estudos comportamentais. Os animais foram submetidos a uma intoxicação alcoólica moderada – alcoolemia média de 0,055%. Foram avaliados enquanto observavam de grades senoidais geradas por computador pelo programa MATLAB. A redução da atividade cortical induzida pelo álcool aponta para mudanças significativas provocadas pelo uso desta substância nas funções visuais.

Uma revisão de literatura realizada por Silvers et al. (2003) compilou alguns dos resultados que demostram a interferência provocada pelo álcool no desempenho de tarefas dependentes do funcionamento do hipocampo, como as de cognição espacial. Os danos observados, em especial durante experimentos com ratos e camundongos, demonstram a degradação da capacidade destes animais em utilizar a informação espacial nas tarefas de navegação espacial. O álcool também danificou o funcionamento das células place do hipocampo, reduzindo a especificidade espacial. O papel do hipocampo na cognição espacial é fundamental e os resultados de várias pesquisas têm demonstram esta atuação crítica no uso da informação espacial para a orientação do comportamento. Segundo o autor, os efeitos deletérios do etanol no processamento das informações espaciais ainda é um tema que tem gerado um grande interesse no meio científico.

Alterações provocadas pelo uso do etanol em tarefas de integração visuomotora também foram observadas por Luchtmann et al. (2013) em estudo recente. Os autores utilizaram o método de interação psicofisiológica (PPI) para avaliar os efeitos do álcool na conectividade efetiva neural. Esta integração neuronal das áreas cerebrais do sistema visuomotor foi avaliada por meio de ressonância magnética funcional (fMRI). Os 14 participantes bebedores sociais saudáveis foram avaliados antes e depois do consumo de álcool, sendo que na segunda avaliação o índice de álcool no sangue foi de 0,08%. Os resultados revelaram prejuízos significativos na conectividade efetiva entre diferentes áreas cerebrais relacionados ao consumo de álcool. O álcool prejudicou a atividade do córtex motor primário, esquerdo e direito, assim como em partes do córtex visual primário, no lobo occipital, revelando um declínio significativo na conectividade efetiva entre a área motora suplementar, o córtex motor primário, bilateral, e o córtex visual primário, também nos dois lados. A principal interferência do álcool está relacionada com o severo prejuízo na conexão entre o córtex visual primário e córtex parietal posterior. Foi encontrado um decréscimo significativo na conectividade do sistema visuomotor sob a influência do álcool, com uma redução seletiva no controle de movimentos voluntários. Sugerem que, mesmo níveis moderados desta substância, podem interferir na realização de tarefas complexas que requerem a integração ou sincronização entre as várias áreas cerebrais.

Diversos estudos têm investigado o efeito do álcool na percepção e cognição espacial, principalmente, devido às implicações da substância no ato de dirigir. Foram descritas várias pesquisas que revelaram a presença de prejuízos provocados pela substância no desempenho de diversas tarefas destinadas a avaliar estes processos cognitivos. As principais deficiências encontradas são relacionadas à percepção visual de contraste, na estereoacuidade, percepção de profundidade na paralaxe de movimento. Os danos observados na percepção visuoespacial, na navegação e na memória espacial são condizentes com os resultados dos estudos que apontam as áreas cerebrais afetadas pelo etanol, em especial o hipocampo. Entretanto, investigações envolvendo indivíduos humanos utilizando-se as tecnologias de mapeamento cerebral durante a realização das tarefas de percepção e cognição espacial ainda precisam ser ampliadas.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 11 de Novembro de 2015

Aceite em 04 de Abril de 2017

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