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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.17 no.3 Lisboa dez. 2016

https://doi.org/10.15309/16psd170308 

Adolescência, hiv e desenho da figura humana: projetando experiências

Adolescence, hiv and human figure drawing: projecting experiences

 

Adriane Roso1,2, Vanessa Limana Berni1,3, Nathiele Berger Almeida, & 1,4, Maria EduardaFreitas Moraes1,5

1Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), CEP 97015070,Rio Grande do Sul, Brasil;

2e-mail: adrianeroso@gmail.com;

3e-mail: vanessa.berni@yahoo.com.br;

4e-mail: nathielebalmeida@gmail.com;

5e-mail: mariaefmoraes@gmail.com 

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Objetivo: Explorar o universo de experiências que envolve o adolescer com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Métodos: Participaram seis adolescentes que conhecem seu diagnóstico positivo para o HIV, idades entre 11 e 14 anos, e que realizam tratamento em um hospital do sul do Brasil. As informações foram coletadas mediante a utilização do Desenho da Figura Humana e posterior inquérito. A análise foi realizada segundo critérios da Análise de Conteúdo Clássica. Resultados: Observam-se projeções de/sobre figuras humanas com idade e características bem próximas das suas. As preocupaçõesestão relacionadasa incertezas profissionais e possibilidade de ficarem órfãos.O grupo familiar e amigos assumem um papel importante na consolidação de vínculos e suporte social, sendo expressos, na maioria das vezes, como aspectos positivos. Conclusão: Aliar o Desenho da Figura Humana com posterior inquérito mostrou-se importante na construção do rapporte como ummeio de estabelecimento de vínculos.

Palavras chaves: Psicologia Social; Saúde; Adolescência; HIV/Aids; Desenho da Figura Humana

 

ABSTRACT

Objective: Exploring the universe of experiences that involves the process of becoming adolescent with the Human Immunodeficiency Virus (HIV). Methods: The participants were six teenagers with knowledge of their positive HIV diagnosis, with ages between 11 to 14 years old, and were treated in a hospital in southern Brazil. The information was collected through the use of the Human Figure Drawing and further survey. The analysis was performed according to the criteria of Classical Content Analysis. Results: Projections were observed of/about human figures with age and characteristics similar to theirs. The concerns are related to professional uncertainties and the possibility of becoming orphans. The family group and friends play an important role in the consolidation of ties and social support, being expressed, in most cases, as positive aspects. Conclusion: Combining the Human Figure Drawing with subsequent investigation proved to be important in building rapport and as a means of establishing ties.

Keywords: Social Psychology; Health; Adolescence; HIV/Aids; Human Figure Drawing.

 

Os desenhos comunicam mensagens (Di Leo, 1985). De fato, os seres humanos sempre encontraram diversas formas de se comunicarem. O desenho, mostrado já nas pinturas rupestres, sinalizava para a importância da iconografia no cotidiano das pessoas. Na história da humanidade verifica-se que o desenho é uma das formas de comunicação mais utilizadas e antecedeu à escrita, indicando assim que a comunicação por meio de desenhos é uma forma de linguagem básica e quase universal (Wechsler, 2003).

A utilização do desenho no campo da psicologia, há muito, tem sido estudada por especialistas (Di Leo, 1985; Machover, 1967; Van Kolck, 1984), destacando-se como um instrumento de alta capacidade de expressão e representação de sentimentos, desejos e emoções, além de ser “uma das formas de se estabelecer um rapport rápido, fácil e agradável” (Di Leo, 1985, p. 12) e uma ferramenta de avaliação de cunho emocional (Bandeira, Costa & Arteche, 2008).

No que toca à população adolescente, faz-se necessário encontrar meios de acessá-los e compreendê-los. Muitas vezes, o diálogo, melhor estratégia empregada junto a pacientes adultos nem sempre possibilita a construção de informações necessárias à compreensão das práticas de cuidado em saúde dos adolescentes.

O Desenho da Figura Humana (DFH) acompanhado por um inquérito posterior poderá ser um instrumento que potencializa o estabelecimento do rapport. O DFH, criado por Machover (1967), e posteriormente desenvolvido por Van Kolck (1984), consiste basicamente em pedir ao participante no estudo que desenhe uma pessoa como quiser, desde que inteira e não um desenho pedagógico (em forma de palitos); pede-se, depois, que desenhe uma pessoa de sexo diferente da primeira e, então, responda a um inquérito sobre a figura que representa o próprio sexo. Entende-se que a partir do desenho, e durante o inquérito produzido sobre o mesmo, a pessoa pode projetar imagens idealizadas, emoções momentâneas, atitudes frente aos outros, à vida, à sociedade, ou seja, projetar representações do eu, do mundo. O desenho significa, portanto, a expressão do eu no ambiente. Para compor a “sua pessoa”, o indivíduo busca a imagem que faz de si, mas também das outras pessoas, imagens que habitam o seu campo representacional. A figura retratada é, frequentemente, uma combinação dessas imagens, produto das experiências, das identificações, projeções e introjeções, que constituem a organização do eu. Trata-se, assim, de um recurso que pode consistir em um meio de comunicação e estabelecimento de vínculos.

O conceito adolescência, assim como o de infância, vem sendo modificado na história, como muito bem desenvolveu Ariès(1981), assim como recebe influências sociais, econômicas e culturais. A emergência de um período intermediário, com características próprias, entre a infância e o adulto, érecente e, de acordo com Villela e Doreto (2006), “estárelacionada às transformações ocorridas no último século e seus impactos na organização do trabalho e nos comportamentos reprodutivos” (p. 2468).

Seguindo Wiese e Saldanha (2011),“não se trata de uma única adolescência, porém de uma pluralidade desta, identificando-se formas de ser, de estar e de pensar” (p. 116). Ou seja, não se é adolescente da mesma forma em todos os lugares do mundo, nem na mesma cidade, pois perpassam diversos fatores históricos, sociais e econômicos que influenciam nesse sentido.

Neste artigo, pensamos a adolescência não no sentido evolucionista que a palavra pode trazer, mas enquanto “uma fabricação social dotada de interpretações e significações produzidas em sociedade” (Berni & Roso, 2014, p. 132), ou enquanto “devir” – termo que traz a possibilidade de vir-a-ser, tornar-se, transformar-se, metamorfosear-se (Bove, 2010). Nesse sentido, não pensamos os desenhos da Figura Humana como fotografias estáticas, mas como imagens que se movimentam através do ato comunicacional.

 Nossa proposta neste artigo é aprofundar a discussão sobre o universo de experiências que envolve o adolescer com HIV, a partir de suas projeções ao DFH e posterior inquérito, especialmente no que se refere às relações sociais, seus projetos de vida e às preocupações que permeiam as experiências da adolescência. Partimos do pressuposto que as experiências desses adolescentes são marcadas por um ambiente social que mescla influências familiar, escolar, midiática, entre outras, e que conhecer suas experiências nos permitirá repensar estratégias de intervenção, visando a saúde e o bem viver dos mesmos.

A hipótese que se coloca é de que o Desenho da Figura Humana (DFH) poderá possibilitar o acesso com maior espontaneidade a conteúdos inconscientes ou latentes, ou sentimentos e emoções que os adolescentes queiramexpressar, mas não consegam facilmente. O Desenho da Figura Humana (DFH) como estratégia de aproximação poderá favorecer aos adolescentes a expressão de suas representações do self, do mundo através do mecanismo da projeção sem o receio de se sentirem julgados.

 

MÉTODO

Participaram deste estudo seis adolescentes que conhecem seu diagnóstico positivo para o HIV (viatransmissão vertical), com idades entre 11 a 14 anos, e que realizam seu tratamento em um hospital do sul do Brasil. Todos fazem uso da terapêutica antirretroviral e dois já estiveram internados anteriormente. Quanto à situação familiar, dois moram com a mãe biológica (separada do pai), dois moram com pais adotivos (em um caso, os pais adotivos são tios do adolescente), um com os avós e um mora com o pai (separado da mãe).

Os participantes foram contatados no ambulatório do próprio hospital em que vêm realizando suas consultas e exames para tratamento do HIV. O contato foi feito inicialmente com os familiares dos participantes, a fim de saber se o adolescente conhecia seu diagnóstico e se o familiar autorizava o mesmo a participar. Em caso afirmativo, convidávamos o adolescente, a ele explicando todos os procedimentos e objetivos da pesquisa. O aceite era confirmado com a assinatura do termo de assentimento pelos adolescentes e do termo de consentimento livre e esclarecido pelos responsáveis. Após o aceite, a pesquisadora ficava a sós com o adolescente e, após ligar o gravador de voz, que também era autorizado pelo mesmo, explicava sobre como proceder para realizar o Desenho da Figura Humana (DFH).

Para o DFH foi dada ao participante uma folha de ofício tamanho A4 na posição vertical, lápis preto nº2 e borracha, e as seguintes instruções: “Gostaria que você desenhasse uma pessoa inteira. Pode fazer como você quiser, só não pode ser desenho de palitinhos”. Nas omissões, pode-se insistir para que o adolescente termine o desenho, mas deve-se anotar o fato, bem como a forma de execução do desenho. Após ser completado o desenho, este é numerado e é dada outra folha de ofício tamanho A4, também na posição vertical com as instruções: “Agora desenhe uma figura humana de outro sexo”; “um homem” (se o 1ºdesenho foi do sexo feminino); “uma mulher” (no caso contrário). Após a execução dos dois desenhos, é feito um inquérito a respeito da figura que representa o próprio sexo. Pede-se que o adolescente conte uma estória sobre a figura desenhada como se ela fosse a personagem de uma novela, de um filme, um amigo imaginário. Após cada desenho, faz-se perguntas, esclarecendo que estas visam ajudá-lo a construir sua estória (e.g., O que ela está fazendo?; Que trabalho ela faz?; Tem boa saúde?; O que a preocupa?; O que as pessoas dizem dela?; Como ela se diverte?; Quais são seus três maiores desejos?; O que quer ser no futuro?; É feliz? Como se sente com relação à família?). Apesar de termos construído um roteiro a priori, levando em conta os objetivos da pesquisa, as perguntas variavam conforme a narrativa do adolescente.

As informações aqui analisadas foram coletadas no ano de 2012. A análise dessas informações, produzidas através do desenho e posterior inquérito, foi realizada segundo critérios da Análise de Conteúdo Clássica, uma abordagem de procedimentos explícitos de análise textual para fins de pesquisa social, em que, neste estudo, são priorizados os tipos, qualidades e distinções das características presentes no corpus do material em análise (Bauer, 2002).

Os resultados são apresentados conforme alguns temas significativos que emergiram a partir da leitura e análise dos inquéritos e que expressam as experiências dos adolescentes. São eles: idade; projetos de vida; suas preocupações; e relações socioafetivas: família, amigos e escola.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE número 0139.0.243.000-10) e segue as exigências e procedimentos das resoluções 196/96 e 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos. Também o projeto foi, previamente, aprovado pela Direção de Ensino, Pesquisa e Extensão (DEPE) do Hospital cenário da pesquisa.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir do material produzido por seis adolescentes (Bela, Luís, Davi, Max, Rosa e Lara)1, foi possível observar manifestações de/sobre figuras humanas com idade e características bem próximas das suas. Iremos apresentar as personagens desenhadas pelos participantes e tentar traçar algumas relações entre o que foi projetado e a vivência deles com o HIV/aids. 

Os personagens desenhados têm idades que variam de 12 a 20 anos, idades que já anunciam uma proximidade com os próprios participantes. Como muitos outros jovens, as personagens planejam seus futuros e imaginam-se atuando em diversas profissões, especialmente as que exigem graduação.

Apesar dos adolescentes entrevistados não trabalharem, todos projetaram profissões em seus personagens. Percebemos, dessa forma, que a formação profissional representa um elemento importante na produção da subjetividade para os entrevistados, ou, como referem Oliveira, Della Negra e Nogueira-Martins (2012), o quanto “o fato de ser trabalhador, para alguns jovens portadores de HIV, demonstra possibilidade de afirmar sua capacidade de realizações e conquistas” (p. 934).

Ao perguntar-se sobre os projetos futuros, observou-se que os planos narrados sempre vêm acompanhados de desejos, que podem ser simples e de satisfação material (vídeo-game, computador, etc.) ou desejos maiores, de longo prazo, onde percebemos anseios pessoais misturarem-se aos profissionais, como ser alguém na vida, passar nos estudos, estudar bastante e se formar e constituir família. Assim como foi evidenciado em estudos anteriores (Barreto, 2011; Seidl, Rossi, Viana, Meneses & Meireles, 2005), percebemos, entre os adolescentes entrevistados, uma inclinação para a construção de um horizonte futuro positivo, otimista e comum a outros adolescentes. Por outro lado, é preciso atentar que os projetos de vida dos adolescentes reafirmam o que é transmitido pela sociedade atual, onde o esperado seria se graduar na universidade, casar, constituir uma família. Nenhum trouxe a possibilidade de tentar outra configuração de vida; a experiência com a infecção pelo HIV parece interferir na produção de novos desejos de configuração, o que ratifica o trazido por Bonin (2011), quando diz que o ser humano é moldado pela atividade cultural de outros com quem ele se relaciona.

Os enunciados também convergem com o que foi referenciado por Ayres et al. (2004), em que mesmo que possam existir preocupações em relação à vida sexual e reprodutiva de adolescentesvivendo com HIV/aids (por parte de profissionais de saúde, família e da própria pessoa que está infectada), eles almejam constituir família e ter filhos.

Em meio às expectativas, aparecem preocupações, como o futuro e a possibilidade de morte dos pais. Uma possibilidade vivenciada já por alguns dos participantes no nosso estudo, o que não difere da realidade de outros adolescentes infectados a partir da transmissão vertical e que ficaram órfãos, os quais, muitas vezes, de acordo com Oliveira, Della Negra e Nogueira-Martins (2012), precisam ainda conviver com o preconceito da família extensa.

Além da preocupação com a perda, duas preocupações parecem ser centrais nas narrativas dos adolescentes: relacionadas à escola (notas e repetência) e à restrição de atividades (proibição de atividades físicas ou de visita à casa de colegas). Elementos esses que evidenciam experiências em um universo social marcadas por incertezas e possibilidades, e que aos poucos permitem aos adolescentes descobrirem(-se) e testarem(-se), junto a pessoas de suas convivências, normas e limites, o que podem e o que não podem fazer. Talvez, as preocupações quanto à escola sejam comuns entre adolescentes (Jacomini, 2010), mas as restrições às atividades podem ser uma particularidade da experiência de adolescentes vivendo com HIV, o que pode refletir no próprio contexto escolar, como já foi observado em outros estudos quanto a restrições às aulas de educação física para pessoas com necessidades especiais (Marques et al., 2006; Seidlet al., 2005)

Quanto ao participar da vida social e comunitária, percebemos, geralmente, entre os adolescentes, experiências positivas em suas relações, com destaque para vivências familiares, com amigos e na escola. Expressam que os personagens por eles imaginados têm uma família da qual gostam “um monte”(Rosa), “(...) muito. Ela gosta bastante da família dela”(Bela), “ele gosta muito da família (...) [se] sente bem..., sente acolhido”(Luís).

Independente do modelo familiar, mas conscientes de que há um modelo esperado padrão –o da família nuclear burguesa –podemos dizer que a família constitui-se como um espaço social que parece oferecer referências às pessoas para perceber e se situar no mundo. A família torna-se, assim, a mediadora entre o indivíduo e a sociedade, possibilitando a construção da identidade social (Reis, 1989). Nesse processo de construir a si mesmos, os adolescentes projetam vivenciar um contexto familiar onde a relação com os pais parece bastante satisfatória, como se pode deduzir na projeção de Davi: “é boa, ele interage, fala..., ele fala o que ele sente, ele... gosta de jogá vídeo-game com o irmão, ajudá o irmão dele a fazer coisas e ajudá os pais dele a fazer as coisas”.Contudo, ainda há sinalizações de que na relação familiar também pode haver divergências e conflitos, quando expressam personagens que não gostam muito de estar com a família, não se sentem muito bem, por que os pais incomodam ou os xingam.

As relações familiares expressas por esses adolescentes ilustram o já referenciado por Braidotti (2009) quando sinaliza ser a família o espaço onde se qualificam os vínculos construídos histórica e socialmente entre os sujeitos, possibilitando múltiplas produções de sentido e determinando impactos positivos ou negativos deles decorrentes. Os relatos de um dos adolescentes entrevistados, Max, expressam sentidos e sentimentos ambíguos entre sua personagem e a família deste, levando-nos a pensar em uma possível projeção do seu vínculo com sua família, talvez bastante fragilizado. Algo a ser observado e não a ser tomado como certo ou como uma verdade. Ou seja, as interpretações das projeções são sinalizadores que merecem investigação sensível por parte dos profissionais da saúde.

Para além do espaço familiar, circulam nas falas dos adolescentes experiências bastante significativas de amizades em outros ambientes sociais. Na escola, por exemplo, evidenciamos amizades e relacionamentos comuns a jovens em idade escolar, com relacionamentos positivos. Todavia, manifestam não gostar de apelidos dados pelos colegas e de serem comparados com outros. Sobre isso, enunciam que suas personagens irritam-se ao “falarem mal dele..., e compararem ele com outras pessoas (...). isso deixa irritado” (Davi), ou quando ficam “atirando coisas nele e a professora não vê. E ele fala pra professora e a professora não vê..., daí ela não dá bola” (Max).

Entre as projeções, os adolescentes reclamam por serem vistos a partir de comparações, ao mesmo tempo que reclamam por não serem vistos, como parece ser a experiência de Max que passa despercebido na sala de aula. Da mesma forma, são elencadas características peculiares às meninas que revelam incômodos e irritação quando toca a intimidade e características físicas. Por exemplo, quando Rosa expressa que sua figura ficaria perturbada “porque ela acha que ela se sente insegura, ela não gosta muito que fiquem olhando... Olhando assim pra ela” (Rosa). Ou quando Bela expressa que sua personagem se irritaria “quando começam a irritar ela demais, provocar ela (...). Às vezes chamam ela de baixinha..., ou fazem outros comentários chatos e ela se irrita” (Bela). Já Lara acredita que o que deixa sua personagem irritada “Acho que é botá apelido nela. (...). É. Se colocarem apelido nela..., inventá apelido..., daí fica braba” (Lara).

Aqui as falas das meninas nos provocam mais questionamentos. Podemos nos perguntar de que insegurança refere-se Rosa? Por que é tão difícil suportar que alguém lhe olhe? Ou no caso de Bela, por que ser baixinha não a agrada? Arriscando algumas suposições, podemos pensar que esse desconforto produzido nas meninas pode estar associado a questões culturais e sociais, inclusive relacionadas às diferenças de gênero, onde o corpo das mulheres deve obedecer a determinado padrão. Preocupações essas que também são observadas em adolescentes que não estão em tratamento para o HIV. A cobrança do social sobre o “corpo feminino ideal” gera muitas inseguranças e incertezas para as meninas. Outra hipótese relaciona-se à influência da medicação antirretroviral no desenvolvimento corporal das adolescentes, pois estudos, como o de Verweel e colegas (2002), mostram que a introdução da terapia antirretroviral tem resultado no aumento significativo do peso e da estatura das crianças infectadas. Também Fausto (2005) traz que a alteração no peso e na estatura não tem sido observada ao nascimento, porém a partir dos primeiros meses de vida a diferença na velocidade de crescimento já pode ser observada, deixando-nos margem para pensarmos que as disparidades vão se refletir no desenvolvimento das adolescentes.

Acerca desses aspectos, podemos pensar na grande influência que o grupo de pares exerce na aceitação de certas características, na construção de representações ligadas à estética e à autoestima dos adolescentes. Mas esses jovens não transmitem ideias sem sentido/significado. O que é dito e veiculado entre os adolescentes circula em uma esfera maior, circula no universo social.

Ainda com relação à escola, observamos que a mesma também é representada como um espaço em que recebem apoio. Davi, por exemplo, na sua projeção revela que “quando precisa de alguma coisa, quando ele precisa de ajuda, conversa com os professores pra pedi ajuda” (Davi).

Como percebemos, relações familiares e amizades entrelaçam-se formando uma rede de contatos e apoio muito importante aos adolescentes. O cotidiano deles segue a rotina comum a outros adolescentes, ainda que sempre haja peculiaridades.

 

CONCLUSÃO

Neste estudo, abordamos as experiências que envolvem o processo de adolescer com HIV, especialmente as referentes aos seus projetos de vida, preocupações e relações com a família, amigos e na escola através do Desenho da Figura Humana e posterior inquérito.

De imediato, concluímos, então, que aliar o DFH com posterior inquérito pode servir como um instrumento importante na construção do rapport em contextos de pesquisa, pois os entrevistados projetam ao contar a estória do desenho, sendo este uma forma de comunicação dos adolescentes sobre sentimentos e vivências do cotidiano. A ideia de nos utilizarmos do DFH como uma estratégia para promover a comunicação e diálogo com os adolescentes teve efeito: eles conseguiram produzir em cima dos desenhos, indicando-nos experiências bastante semelhantes a outros adolescentes que não vivem com HIV. Acreditamos, assim, que compartilhar resultados alcançados mediante o uso do DFH poderá incentivar outros pesquisadores a utilizar esse instrumento como um mediador do diálogo com participantes de pesquisas.

As preocupações dos adolescentes aparecem relacionadas a incertezas profissionais e com o futuro de seus familiares, principalmente daqueles órfãos de pai e mãe e que hoje vivem com avós. Essa preocupação nos indica a necessidade de ações que pensem em crianças e adolescentes que estejam nesta situação, possibilitando, ao menos, um espaço de escuta para que possam dialogar sobre a angústia que os cercam.

Ainda, percebemos que nas suas relações sociais, o grupo familiar e os amigos assumem um papel importante na consolidação de vínculos e suporte social, sendo expressos, na maioria das vezes, como positivos. Logo, uma estratégia possível para promover a saúde dos adolescentes pode estar em envolver o círculo familiar e amigos em seu tratamento.

Enfim, podemos dizer que, atentar para a saúde e o bem viver de adolescentes convivendo com HIV exige olhar para além da doença, pois como os adolescentes nos trazem em seus discursos, esta não é motivo principal de preocupações para eles. Mesmo com particularidades, os participantes dessa pesquisa nos revelam vivências de suas personagens –as quais acreditamos estarem relacionadas às suas –que muito se aproximam das de adolescentes que não vivem com HIV.

Com isso, reforça-se a ideia de que incentivá-los a participar de programas e atividades de cunho social e coletivo faz-se necessário e imprescindível para o seu bem viver, para a construção de suas identidades e projetos de vida. Estas atividades serão efetivas à medida que se difundir a ideia de que não basta falar sobre estes adolescentes, mas que precisamos ouvi-los e deixá-los mostrar o que eles mesmos veem como necessidades em suas vidas. E o uso do DFH como um recurso de comunicação e criação de vínculos em pesquisa nos parece extremamente enriquecedor e vivificador de sensibilidades nos estudos no campo da saúde dos adolescentes.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 15 de Dezembro de 2014/ Aceite em 22 de Novembro de 2016

 

Endereço para Correspondência

Rua Barão do Triunfo,1675, apto 401. Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, CEP 97015070. Telefone: (55)33079633 Fax:(55)32209233. Endereço eletrônico: adrianeroso@gmail.com

 

NOTAS

1 Os nomes são fictícios, empregados com o intuito de proteger a identidade dos participantes.

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