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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.17 no.2 Lisboa set. 2016

https://doi.org/10.15309/16psd170202 

Inventário de crenças centrais: estrutura fatorial e propriedades psicométricas na população portuguesa

Core beliefs inventory: factor structure and psychometric properties on a portuguese sample

 

Catarina Ramos1, Lisete Figueiras2, Marcelo Lopes2, Isabel Leal1, & Richard G. Tedeschi3

1WJCR - William James Research Center, ISPA – Instituto Universitário, Lisboa, Portugal;

2 ISPA – Instituto Universitário, Lisboa, Portugal;

3University of North Carolina at Charlotte, Charlotte, NC, USA.

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Um acontecimento traumático pode causar uma diversidade de reações negativas, como ansiedade, depressão ou perturbação pós-stresse traumático. O confronto com o trauma conduz à disrupção de crenças centrais sobre si próprio, os outros, e o mundo. A reconstrução de crenças centrais é um elemento fundamental para o desenvolvimento de crescimento pós-traumático. O objetivo do presente estudo é a validação do Inventário de Crenças Centrais (Core Beliefs Inventory) para a população normativa portuguesa. A amostra é constituída por 456 participantes com uma média de idades de 34,87 (DP = 12,52), que experienciaram um acontecimento traumático nos últimos 5 anos. O Inventário de Crenças Centrais apresenta boas propriedades psicométricas (alpha de Cronbach = 0,85). Os resultados da análise fatorial exploratória sugerem uma estrutura fatorial de dois fatores que explica 62,58 % da variância dos itens. A análise fatorial confirmatória indica que comparativamente com a estrutura de dois fatores, o modelo unifatorial apresenta melhor ajustamento (c2(22) = 37,60; NFI = 0,98; CFI = 0,99; GFI = 0,98; RMSEA [90% IC] = 0,04 [0.02; 0,06]). Em conclusão, a estrutura unifatorial, proposta pelo artigo original, apresenta bom ajustamento aos dados da população normativa portuguesa.

Palavras-chave: Estrutura fatorial, propriedades psicométricas, crenças centrais, crescimento pós-traumático

 

ABSTRACT

A traumatic event may cause a variety of negative reactions such as anxiety, depression, or posttraumatic stress disorder. The confrontation with the trauma leads to the challenge of core beliefs about oneself, others, and the world. The challenge of core beliefs is an important predictor of posttraumatic growth. The aim of this study is the validation of the Core Beliefs Inventory for the Portuguese non-clinical population. The sample consisted of 456 participants with an average age of 34.87 (SD = 12.52), who have experienced a traumatic event in the last five years. The Core Beliefs Inventory has good psychometric properties (Cronbach's alpha = .85). Results of exploratory factor analysis suggested a model of two factors explaining 62.58% of the variance of the items. A confirmatory factor analysis shows that the one-factor model presents better adjustment to the data (c2(22) = 37.60, NFI = .98, CFI = .99, GFI = .98, RMSEA [90% IC] = .04 [.02, .06]), when comparing with the structure of two factors. In conclusion, the factor structure proposed by the original article, presents a good fit to the data of the Portuguese normative population.

Keywords: Factor structure, psychometric properties, core beliefs, posttraumatic growth

 

Ao longo da vida, cada sujeito deverá confrontar-se com pelo menos um acontecimento traumático (Wilson, Morris, & Chambers, 2014). Enfrentar um acontecimento de vida traumático ou stressante, como um acidente rodoviário ou o diagnóstico de uma doença grave, torna evidente a iminência do perigo ou a percepção de ausência de controlo sobre os acontecimentos (Calhoun & Tedeschi, 2013). No período subsequente à experiência traumática, o indivíduo poderá manifestar um conjunto de reações psíquicas e fisiológicas (Linley, Joseph, & Goodfellow, 2008). Entre as mesmas, podem verificar-se respostas negativas como a experiência de stresse psicológico e o desenvolvimento de perturbações psiquiátricas como a depressão ou a perturbação pós-stresse traumática (PPST) (Bostock, Sheikh, & Barton, 2009). Contudo, encontram-se também documentados na literatura benefícios percebidos após o acontecimento traumático, denominando-se por crescimento pós-traumático (CPT; Tedeschi & Calhoun, 1996). O CPT pode ser definido como a percepção de mudanças positivas resultantes dos esforços cognitivos realizados ao enfrentar o acontecimento de vida traumático e a nova realidade posterior ao mesmo (Tedeschi & Calhoun, 1996; 2004). Assim, o CPT ocorre quando o impacto de um acontecimento gera um nível de stresse disruptivo, uma sensação de maior vulnerabilidade ou de incerteza quanto ao futuro, fatores que se traduzem em um abalo no seu “mundo assumptivo” e no questionamento dos seus princípios orientadores de vida (Calhoun & Tedeschi, 2006). O “mundo assumptivo” corresponde ao conjunto de crenças utilizadas pelo sujeito para compreender e organizar a realidade, o seu funcionamento, e a forma como nela se insere (Janoff-Bulman, 2006).

De acordo com o modelo teórico de CPT (Calhoun & Tedeschi, 2006; Tedeschi & Calhoun, 2004), a disrupção destas crenças centrais pode iniciar todo um processo de reestruturação cognitiva, como tentativa de reinterpretar e compreender a experiência traumática, e conduzir a novas perspetivas e à perceção de benefícios após o trauma (Calhoun & Tedeschi, 2006, 2013; Cann et al., 2010). Assim, o esforço realizado para lidar com o acontecimento leva ao subsequente processo de reconstrução cognitiva, em que novas crenças emergem, permitindo que a realidade permaneça compreensível e que a experiência traumática seja acomodada nos novos esquemas cognitivos (Calhoun & Tedeschi, 2013; Janoff-Bulman, 2006).

Em consonância com o modelo teórico (Calhoun & Tedeschi, 2006; Tedeschi & Calhoun, 2004), um número significativo de estudos empíricos tem vindo a demonstrar que o grau de disrupção das crenças centrais é um elemento chave no processo de CPT. Vários estudos verificaram uma relação direta entre o grau de disrupção das crenças e a emergência de CPT (Cann et al., 2010; Lindstrom, Cann, Calhoun, & Tedeschi, 2013; Su & Chen, 2014; Taku, Cann, Tedeschi, & Calhoun, 2015). Três estudos verificaram que a disrupção de crenças centrais é o principal catalisador de CPT (Triplett, Tedeschi, Cann, Calhoun, & Reeve, 2012; Wilson et al., 2014; Zhou, Wu, Fu, & An, 2015). Um estudo longitudinal verificou a relação entre as variáveis também a longo prazo (Danhauer et al., 2013).

O Inventário de Crenças Centrais (ICC) (Core Beliefs Inventory - CBI; Cann et al., 2010) é um instrumento frequentemente utilizado para avaliar o grau de disrupção das crenças centrais no período subsequente ao trauma, sendo também um elemento essencial em estudos que se dedicam à investigação das variáveis intervenientes no processo de CPT. O instrumento permite quantificar o grau de disrupção causado sobre o mundo assumptivo por um acontecimento traumático, possibilitando assim uma melhor compreensão dos fenómenos que precedem o crescimento pessoal e das condições sob as quais ocorre o CPT (Calhoun & Tedeschi, 2013). Uma vez que o ICC não se encontra validado para a população portuguesa, o objetivo do presente estudo consiste na análise da estrutura fatorial e das propriedades psicométricas do instrumento para a sua validação.

 

MÉTODO

Participantes

A amostra do presente estudo é constituída por 456 participantes que vivenciaram um acontecimento traumático nos últimos cinco anos, sendo que um dos critérios de inclusão do presente estudo é a ocorrência do acontecimento traumático no período entre 2009 e 2014. A idade superior a 18 anos e a ausência de perturbações físicas ou mentais que comprometam a participação do estudo, são outros critérios de inclusão. Quanto às características sócio-demográficas, a amostra é constituída maioritariamente por mulheres (370, 81%) de nacionalidade portuguesa (452, 99%) e com uma média de idades de 34,87 (DP = 12,52). No quadro 1 estão presentes informações adicionais relativas às características sócio-demográficas. No âmbito das características do acontecimento traumático experienciado pelos participantes, a média de tempo desde o acontecimento é de 28,24 meses (DP = 19,77). A experiência traumática mais frequente é a morte de um familiar ou amigo (158, 36%), seguindo-se por doença grave de familiar ou amigo (57, 13%), doença grave do próprio (48, 11%) e divórcio (41, 9%).

 

 

Material

Questionário sócio-demográfico, para a obtenção de informações relativas às características sócio-demográficas (e.g. idade, estado civil, habilitações literárias, situação económica e profissional actual), do trauma (e.g. tipo de acontecimento traumático; data do acontecimento traumático) e questões para avaliação do nível de PPST.

O Inventário de Crenças Centrais (ICC) (Core Beliefs Inventory – CBI; Cann et al., 2010) é um instrumento de auto-preenchimento para avaliar a disrupção de crenças centrais (e.g. crenças religiosas, os relacionamentos com os outros, o sentido da vida). Este inventário é composto por 9 itens (e.g. “por causa do acontecimento, examinei seriamente as minhas crenças espirituais ou religiosas”; “por causa do acontecimento, examinei seriamente as minhas crenças acerca do significado da minha vida”). A avaliação é efectuada numa escala de tipo Likert de 6 pontos (0- Nada; 1- Muito Pouco; 2- Pouco; 3- Moderadamente; 4- Muito; 5- Bastante). A pontuação que pode variar entre 0 e 45, sendo que uma pontuação elevada indica uma tendência para a mudança de crenças centrais após o acontecimento traumático.

O Inventário de Crescimento Pós-Traumático (ICPT) (Posttraumatic Growth Inventory – PTGI; Tedeschi & Calhoun, 1996) avalia o grau de mudanças positivas percebidas após um acontecimento adverso. O ICPT é um questionário de auto-preenchimento, com 21 itens distribuídos em cinco dimensões: Relações Interpessoais; Novas Possibilidades; Competências Pessoais; Desenvolvimento Espiritual; e Valorização da Vida. O somatório dos itens corresponde ao grau de CPT percebido. Este questionário apresenta uma escala de resposta do tipo Likert de 6 pontos, sendo que “0” corresponde a Eu não experienciei esta mudança como resultado da minha doença e “5” corresponde a Eu experienciei completamente esta mudança como resultado da minha doença. No presente estudo, foi utilizada a adaptação do instrumento para a população portuguesa, na qual o CPT está representado por 4 dimensões, nomeadamente: Percepção de Recursos e Competências Pessoais; Novas Possibilidades e Valorização de Vida; Fortalecimento das Relações Interpessoais; Desenvolvimento Espiritual (Silva, Moreira, Pinto, & Canavarro, 2009).

Procedimento

O presente estudo, transversal, descritivo e correlacional, pretende analisar a estrutura fatorial e as características psicométricas do ICC, na população portuguesa. O recrutamento da população normativa portuguesa foi desenvolvido através de dois métodos distintos. O primeiro, consistiu na amostragem por conveniência, em que os participantes foram contactados pessoalmente pelo investigador. Após a explicação dos objetivos e procedimentos do estudo, foi entregue aos participantes o consentimento informado e o protocolo de avaliação. Depois de preenchido, o mesmo foi entregue pessoalmente ao investigador, ou em caso de impossibilidade, via correio. O segundo, consiste em um survey online, em que questionário foi colocado online na plataforma GoogleDocs.

Inicialmente e para a validação dos instrumentos foi efetuada a tradução para a Língua Portuguesa por três investigadores independentes formados na área de psicologia. Depois de atingido o acordo entre tradutores, foi elaborada uma versão final que por sua vez, foi traduzida para Inglês por uma tradutora de Português-Inglês. A comparação entre as duas versões foi efetuada novamente pelos três investigadores e, após concordância entre as partes foi construída a versão portuguesa de ICC.

Quanto à análise estatística, primeiramente, procedeu-se à análise dos dados no que diz respeito aos dados em falta, outliers e normalidade multivariada (Marôco, 2010a). De seguida, procedeu-se à análise descritiva e psicométrica preliminar, avaliando, a média, o desvio-padrão, a assimetria, e a curtose, do ICC e do ICPT. Foram avaliadas as correlações entre os valores de ICC e de ICPT, de modo a avaliar a relação entre as crenças centrais e o CPT, em consonância com a literatura (Cann et al., 2010; Tedeschi & Calhoun, 2004). A análise estatística desenvolveu-se com recurso ao software estatístico – IBM SPSS e AMOS versão 22.0.

A avaliação da estrutura fatorial do ICC na amostra normativa portuguesa, foi desenvolvida mediante uma análise fatorial exploratória (AFE). Para a estimação dos pesos dos fatores comuns e específicos, foi aceite o valor do teste de esfericidade de Bartlett com p-value ≤ 0,05. Para verificar a adequação dos itens à AFE foi utilizado como referência o valor de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) ≥ 0,60. Após a confirmação da adequabilidade dos itens à realização de AFE, procedeu-se com esta análise estatística, através do método dos componentes principais para a extração de dados e do método equamax para a rotação de fatores. Para a escolha do número mínimo de fatores necessários para explicar a variância total dos itens, recorreu-se ao critério de Kaiser (Marôco, 2010a), o qual determina que devem ser extraídos os fatores com eigenvalue superior a 1.

De seguida procedeu-se à análise fatorial confirmatória (AFC), com a finalidade de comparar o ajustamento do modelo obtido na AFE com a estrutura fatorial apresentada pelos autores (Cann et al., 2010). Para a estimação do modelo utilizou-se o método de máxima verosimilhança, como o método tradicional e mais utilizado (Marôco, 2010b). O ajustamento do modelo é avaliado de acordo com determinados índices de ajustamento. O c2 é utilizado para avaliar as diferenças entre os modelos, através do teste de razão de verosimilhança (Likelihood Ratio Test). O Compared Fit Index (CFI), o Non-Normed Fit Index (NFI) e o Goodness of Fit Index (GFI) indicam um bom ajustamento para valores superiores a 0,90 e o Root Mean Square of Approximation (RMSEA) indica bom ajustamento do modelo para valores inferiores a 0,05 (Marôco, 2010b).

Com os valores obtidos na AFC e após a seleção do modelo com o melhor ajustamento, procedeu-se com o cálculo das propriedades psicométricas do ICC. A validade de constructo é avaliada através da validade fatorial e convergente. A validade fatorial é determinada quando os pesos fatoriais dos itens são superiores a 0,5. Para a validade convergente, valores da variância extraída da média (VEM) superiores ou iguais a 0,5 são indicativos de uma boa convergência entre os itens de cada escala ou sub-escala. Para a avaliação da fiabilidade do ICC calculou-se o coeficiente de fiabilidade interna de alpha de Cronbach, uma vez que este indicador é o mais utilizado em escalas unifatoriais (Marôco, 2010b).

 

RESULTADOS

Análise Descritiva

A análise descritiva do ICPT e do ICC está descrita no quadro 2. Quanto à variável em estudo, os valores do total do ICC apresentam uma média de 25,58 (DP = 9,36), com o valor mínimo de 0 e máximo de 45. O CPT apresenta um valor médio de 52,52 (DP = 24,42) para a escala total. Quanto às sub-escalas, a dimensão de Relações Interpessoais apresenta o valor mais elevado (M = 16,71; DP = 8,98) e a dimensão Desenvolvimento Espiritual apresenta o valor mais baixo (M = 3,64; DP = 3,18). Acrescenta-se que as sub-escalas apresentam VIF (Variance Inflation Factor) inferior a 5 (VIF = 1,56 - 3,05), indicando ausência de multicolinearidade (Marôco, 2010a).

 

 

As crenças centrais encontram-se correlacionadas positivamente com o CPT (r = 0,55; p ≤ 0,001) e com as respetivas sub-escalas, como demonstra o quadro 2.

Análise Fatorial Exploratória

Com o objetivo de avaliar a estrutura fatorial do ICC na população normativa portuguesa, foi efetuada a AFE. Os pressupostos, indicam que KMO é de 0,86 e que o teste de Bartlet apresenta os seguintes valores (c2 = 1762,91; df = 36); p < 0,001), sugerindo a adequabilidade da AFE para a avaliação da estrutura fatorial do ICC. Os resultados evidenciam uma estrutura fatorial de 2 fatores que explica 62,58 % da variância dos itens. Através do método de rotação equamax, os pesos fatoriais foram distribuídos em 2 fatores: Fator 1, constituído pelos itens 1 e 2; Fator 2, constituído pelos itens 3,4,5,6,7,8,9. Esta estrutura fatorial é distinta do modelo fatorial apresentado no artigo de validação original (Cann et al., 2010), sugerindo que o primeiro fator é relativo especificamente crenças sobre a previsibilidade e o controlo que o sujeito tem sobre os acontecimentos. O segundo fator engloba as restantes crenças centrais sobre si próprio, os outros, e o futuro.

Análise Fatorial Confirmatória

A AFC foi realizada com o objetivo de confirmar qual a estrutura fatorial que apresenta um melhor ajustamento aos dados reportados pela população portuguesa. A estrutura fatorial obtida através da AFE foi comparada com a estrutura unifatorial (9 itens) proposta por Cann et al. (2010). Os resultados das duas AFCs estão descritos no quadro 3.

 

 

A estrutura unifatorial apresenta excelentes índices de ajustamento. Em comparação com a estrutura fatorial de duas dimensões evidenciada na AFE, o modelo unifatorial apresenta indicadores de ajustamento mais satisfatórios (quadro 3). Com efeito, conclui-se que a estrutura unifatorial de ICC é a que apresenta melhor ajustamento aos dados da população normativa portuguesa (figura 1). O modelo teórico (Cann et al., 2010; Janoff-Bulman, 2006) reforça a escolha da estrutura unifatorial, uma vez que o ICC foi construído como um conjunto de 9 itens que representam determinadas crenças centrais do mundo “assumptivo” distintas entre si: crenças espirituais ou religiosas, natureza humana, relacionamentos com os outros, sentido da vida, e forças e fraquezas individuais (Cann et al., 2010).

 

 

Propriedades Psicométricas

As propriedades psicométricas do ICC foram também analisadas para a estrutura unifatorial do ICC. Primeiramente, a validade fatorial está garantida com pesos fatoriais superiores a 0,5 em todos os fatores. Procedeu-se ao cálculo da validade convergente, a qual indica que a escala apresenta validade convergente superior a 0,5 (VEM = 0,52), o que significa que todos os itens da escala convergem bem entre si, para formar um só fator. A escala total apresenta uma boa fiabilidade, com o alpha de Cronbach de 0,85, indicando que apresenta características de replicabilidade. Comparativamente com os valores de fiabilidade do artigo de validação original, este valor é próximo, mas ligeiramente superior ao reportado por Cann et al. (2010). O cálculo da validade divergente não foi efetuado, uma vez que a escala contém apenas uma dimensão.

 

DISCUSSÃO

O CPT é desenvolvido em um processo dinâmico e complexo de interação de múltiplos fatores, de acordo com o modelo teórico de CPT, como as características do sujeito anteriores ao trauma, do acontecimento, e sócio-culturais (Calhoun & Tedeschi, 2013). As competências que o sujeito adquire ou desenvolve após o trauma são igualmente determinantes para o ajustamento psicossocial à experiência traumática, como, a gestão de stresse, as estratégias de coping, e o processo cognitivo sobre o impacto do acontecimento (Taku et al., 2015). No âmbito do processamento cognitivo, a disrupção de crenças centrais tem sido considerado um fator crucial para o início do processo de CPT. Assim, o CPT não ocorre automaticamente como resposta ao stresse percebido, mas como um resultado dos esforços psicológicos individuais iniciados pela disrupção de crenças centrais (Cann et al., 2010).

O presente estudo teve como objetivo a avaliação do grau de disrupção de crenças centrais após um acontecimento traumático na população normativa portuguesa. Os valores obtidos na presente amostra são superiores aos valores reportados no artigo original de validação do instrumento (M = 2,82; DP = 1,04) (Cann et al., 2010) e, igualmente superiores aos reportados em outros estudos (Cann et al., 2011; Groleau, Calhoun, Cann, & Tedeschi, 2013; Taku et al., 2015; Wilson et al., 2014), mas inferiores aos resultados reportados por Cann, Calhoun, Tedeschi, e Solomon (2010), e Triplett et al. (2012).

Quanto à fiabilidade interna, os resultados do presente estudo reportam valores próximos mas ligeiramente superiores aos indicados no artigo original de validação do ICC (α = 0,82) ( Cann et al., 2010). De acordo com o esperado, a disrupção de crenças centrais está fortemente correlacionada com o CPT, no presente estudo, como sugerem estudos anteriores (Cann et al., 2010; Danhauer et al., 2013; Lindstrom et al., 2013). O estudo recente de Taku et al. (2015), confirma que a disrupção de crenças centrais é o fator com maior impacto no desenvolvimento de CPT, contrariando alguns estudos que sugeriam o stresse percebido do acontecimento como componente igualmente importante no processo de CPT (Cadell, Regehr, & Hemsworth, 2003; Lancaster, Kloep, Rodriguez, & Weston, 2013; Wild & Paivio, 2003). No presente estudo, o stresse percebido não foi avaliado em conjunto com as restantes variáveis, o que pode ser considerado uma limitação, uma vez que não conseguimos excluir o impacto que esta variável pode ter no processo de CPT, na população normativa portuguesa.

No que concerne à estrutura fatorial de ICC, os resultados da AFE sugeriram uma estrutura fatorial composta por dois fatores e, por isso, distinta da estrutura unifatorial proposta pelos autores do artigo original de validação (Cann et al., 2010). Concetualmente, os dois primeiros itens da escala saturaram em um só fator, separando-se dos restantes itens do inventário. Os valores de ajustamento do modelo de dois fatores ligeiramente inferiores à estrutura unifatorial suportaram a relevância desta estrutura na nossa amostra. No entanto, analisando todos os índices de ajustamento, confirma-se a validade da estrutura unifatorial, também na amostra de população normativa portuguesa. O modelo teórico suporta igualmente a estrutura de um fator, definindo que o constructo de crenças centrais é um conceito unifatorial definido pela conjunção destes nove itens (Cann et al., 2010).

Quanto às propriedades psicométricas, em consonância com o artigo original (Cann et al., 2010), o ICC apresenta bons índices de fiabilidade e de validade, o que sugere que o ICC é um instrumento válido para a população normativa portuguesa. Algumas limitações devem ser consideradas aquando da análise dos resultados do presente estudo. Estão presentes algumas características da amostra que restringem a compreensão dos estilos de ruminação e do CPT a uma amostra predominantemente feminina, jovem, urbana e com elevada escolaridade, limitando, assim, a generalização dos dados para a população portuguesa. Assim, a amostra apresenta-se pouco heterogénea nas seguintes características sócio-demográficas: a) média de idades baixa; b) género maioritariamente feminino; c) escolaridade elevada, sendo a licenciatura o grau mais frequente; d) pouca diversidade geográfica, uma vez que a maioria da população é residente na Grande Lisboa, região marcadamente urbana. Em consonância, diversos estudos suportam as evidências do presente estudo ao sustentar que, níveis mais elevados de CPT são reportados em sujeitos do género feminino (e.g. Asiam & Kamal, 2013; Linley & Joseph, 2004), mais jovens (e.g., Taku et al., 2015), e com nível de escolaridade mais elevado (e.g. Linley & Joseph, 2004).

O desenho transversal do presente estudo limita a compreensão do CPT e da relação que o CPT estabelece com as crenças centrais, ao longo do tempo. Para além disso, Cann et al. (2010) enunciam que a disrupção de crenças centrais ocorre imediatamente após o acontecimento traumático, mantendo-se estável ao longo do tempo. Neste sentido, sugerimos estudos futuros que avaliem os valores de crenças centrais longitudinalmente, na população normativa. O estudo da disrupção de crenças centrais necessita de maior exploração ao nível de estudos empíricos, nomeadamente, em diversas populações que experienciam distintos acontecimentos traumáticos (e.g. cancro, luto, etc).

Apesar das limitações mencionadas, o presente estudo apresenta um importante contributo para a utilização do ICC na população portuguesa, como um instrumento adaptado para a avaliação dos diferentes graus de disrupção de crenças centrais permitindo, assim, ao psicólogo clínico adaptar a técnica clínica para os diferentes graus de mudança cognitiva, antecipando o desenvolvimento de CPT. A utilização deste instrumento permite o desenvolvimento de intervenções clínicas adequadas ao grau de disrupção de crenças centrais do indivíduo, ao valor adaptativo das suas crenças, e à eventual necessidade de análise das mesmas (Cann et al., 2010). Os resultados do presente estudo reforçam a relação fortemente positiva entre as crenças centrais e o CPT, também na população portuguesa, facilitando a compreensão da relação entre estes conceitos, no âmbito da prática clínica.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores gostariam de agradecer a colaboração de Ângela Caeiro e Marisa Viegas no processo de recolha de dados. Este estudo foi financiado por Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), com a bolsa nº SFRH/BD/81515/2011, atribuída ao primeiro autor.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 05 de Janeiro de 2016/ Aceite em 11 de Abril de 2016

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