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Psicologia, Saúde & Doenças

Print version ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.14 no.3 Lisboa Nov. 2013

 

A criança antissocial e seu pai: um estudo psicodinâmico

The antisocial child and his father: a psychodynamic study

 

Valéria Barbieri1, Fernanda Kimie Tavares Mishima2 Barbara Selan2

1Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Avenida Bandeirantes, 3900, Cidade Universitária, CEP: 14040-901. Ribeirão Preto – SP. Brasil. mail: valeriab@ffclrp.usp.br

2Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).

 

RESUMO

O comportamento antissocial é frequente em crianças que buscam atendimento psicológico. Sua tendência a agravar-se e o seu prognóstico restrito tornam essenciais as intervenções precoces. Tratando-se a personalidade paterna seu fator etiológico mais relevante, este estudo buscou compreender como ela atua no relacionamento com a criança, promovendo o aparecimento desse quadro. Foram realizados três estudos de caso de pais de meninos antissociais, empregando uma entrevista psicológica e o Procedimento de Desenhos de Família com Estórias. Os resultados mostraram que a tendência antissocial independe da estrutura de personalidade paterna e está relacionada à dinâmica afetiva desse genitor, em particular às dificuldades do controle pulsional, ambivalência na aceitação de normas e limites, ambiguidade diante do papel de pai, restrição da capacidade criativa, redução da área das experiências transicionais e insegurança no processo de integração do amor e ódio na relação com o filho. Assim, há necessidade de realizar intervenções incluindo esse genitor no atendimento da criança antissocial.

Palavras-chave- tendência antissocial, pai, família, criança, psicanálise, técnicas projetivas, avaliação psicológica.

 

ABSTRACT

Antisocial behavior is a frequent impairment in child population that requests psychological attendance. Its tendency to chronically aggravate and its restricted prognostic make early interventions and preventive approaches essential. Being the father personality its most relevant etiological factor, this study aimed to comprehend how it acts dynamically in the relationship with the child, promoting the upcoming of this condition. It was accomplished three case studies of fathers of antisocial boys, employing a psychological interview and the Procedure of Family Drawing with Stories. The results showed that the antisocial tendency is independent of the father’s personality structure and is related to the affective psychodynamic of this parent, particularly to his difficulty pulsional control, ambivalence acceptance of standards and limits, ambiguity on the father’s function, restriction of creative capacity, reduction in transitional experiences and imperfections in the process of integration of love and hate in the relationship with the son. Thus, there is the need to perform interventions including this parent in the attendance of the antisocial child.

Keywords- antisocial tendency, father, family, child, psychoanalysis, projective techniques, psychological evaluation.

 

Os transtornos antissociais em crianças ocupam destaque na literatura científica devido à sua alta prevalência: 5 a 16 % nos meninos e 2 a 9 % nas meninas (APA, 2000). Blazei, Iacono e Krueger (2006) confirmam que esses distúrbios não são raros, embora as estimativas de seu predomínio variem. Quando persistem na idade adulta, eles são um problema no campo pessoal e social: os adultos antissociais casam menos, e aqueles que casam apresentam altas taxas de violência doméstica, divórcio e criação de filhos órfãos. Além disso, eles também apresentam uma história instável de trabalhos e de muitas prisões e condenações por crimes graves.

Em psicopatologia o termo antissocial engloba três tipos de distúrbios, a saber, o Transtorno da Conduta, o Transtorno Desafiador Opositivo e o Transtorno de Personalidade Antissocial. Os dois primeiros acometem principalmente crianças em idade escolar e pré-escolar respectivamente, ao passo que o último é uma patologia exclusiva do indivíduo adulto. De acordo com o DSM-IV (APA, 1994), o Transtorno de Conduta corresponde a um conjunto de comportamentos que transgridem as normas sociais e os direitos básicos dos outros de forma persistente e repetitiva, reunidos em conduta agressiva que causa ou ameaça prejuízos físicos a pessoas ou animais, comportamento não agressivo que gera perdas ou danos a propriedades, defraudação ou furto e sérias infrações a regras. A CID-10 (WHO, 2004) acrescenta à descrição desse distúrbio a presença de manifestações excessivas de tirania, comportamentos incendiários, roubos, mentiras repetidas, cabular aulas e fugir de casa, crises de birra e de desobediência frequentes e graves.

Por sua vez, o Transtorno Desafiador Opositivo tem como características principais um padrão crônico de comportamento negativista, desafiador, desobediente e hostil, direcionado às figuras de autoridade, entre eles perturbação de pessoas de forma deliberada, falta de responsabilidade por seus erros ou mau comportamento, ser aborrecido com facilidade pelos outros, mostrar-se enraivecido e ressentido, ou ser rancoroso ou vingativo (APA, 1994). Esses comportamentos são menos graves do que aqueles do Transtorno da Conduta, já que não abrangem furto ou defraudação, agressão a pessoas ou animais ou destruição de propriedade.

De acordo com Blazei, Iacono e Krueger (2006), muitas pesquisas que visam endossar os determinantes biológicos do comportamento antissocial utilizam-se de métodos que incluem a avaliação de gêmeos e/ou de crianças adotadas e suas famílias adotivas e biológicas, estudos estes que mostram a existência dessas condutas também em seus parentes de primeiro grau (Bornovalova, Hicks, Iacono, & McGue, 2010). Investigando essa associação, Frick et al. (1992) compararam crianças com Transtorno da Conduta com outras com Transtorno Desafiador Opositivo, a fim de verificar os fatores de risco familiares em ambos os quadros. Os resultados mostraram que as crianças com Transtorno da Conduta tinham uma proporção maior de pais do sexo masculino com personalidade antissocial do que aquelas com Transtorno Opositivo Desafiador, não existindo diferença entre os grupos acerca do consumo de drogas por parte desses mesmos pais. Lahey et al. (1988) também notaram que a presença do Transtorno de Personalidade Antissocial em um dos pais, principalmente no pai, seria um determinante importante para o transtorno de conduta da criança; contudo, concluíram não haver clareza sobre como se daria essa associação.

Bornovalova, Hicks, Iacono e McGue (2010), em estudo com 1069 famílias com filhos gêmeos de 11 anos concluíram pela existência de fatores genéticos por parte de ambos os pais, que estariam envolvidos no surgimento de distúrbios de externalização nas crianças. Contudo, especificamente para o transtorno de conduta, eles encontraram um alto grau de influência por parte dos efeitos do ambiente compartilhado.

Por sua vez, Herpertz et al. (2007) verificaram que pais (masculinos) de crianças com Transtorno de Conduta exibiam um padrão de respostas psicofisiológicas anormais, similares ao de seus filhos, quando comparados a um grupo controle, o que sugere a existência de uma atipicidade nas funções autonômicas como um mediador biológico importante na transmissão do comportamento antissocial nas famílias.

A despeito dessas conclusões, a hipótese da determinação genética desses dois transtornos (de Conduta e Desafiador-Opositivo) foi combatida por Blazei, Iacono e Krueger (2006), que argumentam que, além da hereditariedade, os pais biológicos também proporcionam o cuidado aos seus filhos; diante disso, sustentam que esses estudos não permitem separar as influências genéticas das ambientais. Segundo eles, ao mesmo tempo em que existem altas taxas de afinidade entre pais biológicos e suas crianças adotadas por outras famílias (indicando uma base genética definitiva para a semelhança entre gerações), há também estudos sobre pais adotivos que proporcionam evidências da influência do ambiente nesse quadro. Assim, concluem que o risco para as crianças é maior quando elas têm o casal de pais biológicos antissociais e aumenta com um pai adotivo antissocial.

Em consonância com essa hipótese, Gallo e Williams (2005) também descrevem vários fatores familiares dentre os determinantes ambientais que contribuem para o surgimento da violência: punição extrema; estressores relacionados à pobreza; residência pequena para o número de moradores; fracasso no trabalho; problemas familiares e uso de drogas. A ausência de apoio de outros adultos e os conflitos no casamento também consistem em estressores vividos pelos pais e que influenciam no surgimento do comportamento antissocial infantil (Blazei, Iacono, & Krueger, 2006). Loeber e Stouthamer-Lober (1986) também mostraram que a falta de compromisso dos pais com a criança e a pouca supervisão da mesma, são fortes preditores de problemas de conduta. Eles concordam em que disciplinas cruéis, abusivas ou inconsistentes estariam associadas ao comportamento antissocial infantil. Kenny e Schreiner (2009) também identificaram como um dos fatores de risco para o comportamento antissocial, especificamente o abuso de álcool e a ausência do pai no núcleo familiar. Por sua vez, Petitclerc, Boivin, Dionne, Zoccolillo e Tremblay (2009) acrescentam a depressão de ambos os pais (ou de um deles) como associada aos transtornos disruptivos do comportamento.

Jaffee, Wolf e Wilson (1990, conforme citados por Gallo & Williams, 2005), por sua vez, enfatizaram a violência doméstica como um fator de risco para o transtorno da conduta. Eles notaram que crianças que testemunham agressão mútua de seus pais apresentam limitada tolerância à frustração, raiva, além de pouco controle de impulsos. Assim, elas podem ter uma interrupção do desenvolvimento normal, com probabilidades de apresentar padrões distorcidos de cognição, emoções e comportamentos (Brancalhone & Williams, 2003).

A despeito de vários estudos indicarem a presença de fatores de risco familiares na tendência antissocial infantil, concordamos com Lahey et al. (1988) em que a compreensão de seu modo de ação e inter-relação com a enfermidade da criança não é evidente. Nesse contexto, a Psicanálise, com suas descobertas sobre a gênese e manutenção desse transtorno, oferece contribuições importantes ao entendimento de como se processa tal associação.

Freud (1909/1976) afirma que o sentimento de culpa existe previamente ao ato infracional, e seria referente aos desejos edípicos hostis e incestuosos dirigidos aos pais. Assim, para escapar ao castigo infligido pelo pai do mesmo sexo, a criança comete uma infração relacionada a outro objeto. O castigo real advindo desta infração cometida de fato aliviaria a culpa precedente. Dessa forma, o comportamento criminoso seria sintoma de uma angústia causada pela culpa por desejar a morte do pai e o incesto com a mãe. Freud (1928/1976) também afirma que a etiologia do comportamento criminoso se sustentaria na rigidez e severidade paterna, ou seja, se no relacionamento com a criança o pai for demasiado duro e severo, o superego se tornaria sádico e o ego masoquista, com necessidade de punição, que poderia ser infligida por um agente interno (no caso do sintoma histérico) ou externo (no caso da tendência antissocial).

Klein (1930/1970) acrescenta à teoria freudiana do comportamento criminoso a avaliação dos impulsos sádico-orais e sádico-anais que compõem o superego; segundo ela, estes seriam a base das tendências antissociais. Tais impulsos já estariam plenamente em ação quando o complexo de Édipo precoce fosse instaurado e juntos se dirigiriam para os pais. Assim, o menino, ao perceber que o pai é seu rival no amor da mãe, passa a odiá-lo com base na agressão, no ódio e nas fantasias originadas de suas fixações pré-genitais. Nessa dinâmica, a maneira como é vivida a autoridade dos pais na relação com os filhos tem grande importância. Para Klein (1927/1981), as crianças que temem uma cruel represália de seus pais como forma de punição das fantasias agressivas dirigidas a eles, poderiam desenvolver o comportamento antissocial, já que o castigo imaginado seria muito mais severo que o real. Logo, não seria a falta de um Superego ou a sua fraqueza a fonte desse comportamento, mas, sim, sua qualidade demasiado severa e cruel.

Diferentemente do pensamento kleiniano, Winnicott (1939/1999) defende que a agressividade, em sua raiz, é um movimento natural da criança, sem ódio, uma vez que não existiria uma organização egóica suficientemente constituída para manifestar esse sentimento no início da vida. Nesse período evolutivo a agressividade seria quase sinônimo de motilidade e, se o bebê é eventualmente cruel, isso é acidental e não intencional. Nesse sentido, a relação entre a hostilidade e a tendência antissocial não seria direta, sendo que esta última se desenvolveria como resposta a uma falha do ambiente no atendimento às necessidades da criança, particularmente a do afeto materno e a de humanização da agressividade.

No início da vida da criança quem organiza os desejos, os impulsos e lhe dá segurança em suas frustrações quando as gratificações não são imediatas, é a mãe ou a pessoa que desempenha a função materna (Sá, 2001). Assim, ao oferecer ao bebê toda a provisão ambiental, ela funciona como o primeiro organizador psíquico da criança e, a partir das relações estabelecidas com o filho, ela possibilita o desenvolvimento das capacidades de abstração, elaboração e planejamento (Winnicott, 1956/1999).

Se o bebê experienciou inicialmente uma relação gratificante e satisfatória com a mãe, mas depois sofreu uma privação emocional significativa, poderá, de acordo com Bowlby (1963/1995), desenvolver comportamentos hostis, antissociais e apresentar condutas delinquentes no futuro. Winnicott (1945/1993) complementa essa teoria ao considerar como experiência de privação a situação em que a criança não conseguiu manter viva na memória a lembrança da mãe suficientemente boa, devido a alguma impossibilidade do processo introjetivo se constituir ou se completar. Ele compreende a tendência antissocial como um movimento que permitiria à criança obter da sua mãe a reparação pelo dano que ela lhe causou (Winnicott, 1956/1999).

Em outras palavras, na tendência antissocial a criança realiza um esforço no sentido de exigir do ambiente uma reparação pelo que lhe foi oferecido e retirado. Esse esforço pode se manifestar de duas maneiras: furto e agressividade. Na primeira há uma busca incessante por ‘algo’ que nunca é encontrado (a experiência afetiva incompleta). Já a destrutividade corresponde a uma busca por limites, por um controle externo e está relacionada primariamente à capacidade de contenção física e psíquica que a mãe oferece (holding) e secundariamente à função limitante do ambiente indestrutível representado pelo pai.

Winnicott entende a função paterna, no início da vida criança, como aquela de sustentação da díade mãe-bebê, permitindo à mãe desfrutar da tranqüilidade necessária para oferecimento do holding. Posteriormente, no momento em que o bebê já é capaz de significar a agressividade como destrutividade, caberia ao pai prover o ambiente indestrutível, que, contornando a onipotência da criança, mostraria a ela que é seguro ser e ter impulsos agressivos. Essa experiência é essencial para a integração dos impulsos amorosos e destrutivos e para o consequente desenvolvimento da capacidade de reparação. O pai seria, então, o primeiro elemento de integração e de totalidade, já que assumiria a função de proporcionar ao bebê uma figura estável e útil como modelo para a sua própria integração (Outeiral & Celeri, 2002). Com isso, a criança poderá desenvolver dois tipos de experiência, a da agressividade, aprendendo a dimensioná-la e a administrá-la, e a capacidade construtiva, descobrindo em si e desenvolvendo seu desejo de dar e de contribuir (Winnicott, 1956/1999).

Nessa mesma direção, Sena, Machado e Coelho (2006) afirmam que o pai exerce um papel altamente relevante ao longo do primeiro ano de vida da criança, não somente porque estabelece a separação mãe-filho e impõe a lei, mas também porque se apresenta como um modelo de identificação e objeto de amor. Sudbrack (1992) entende que a falta do pai colocaria a criança em uma busca por essa figura em outros contextos, sendo o juiz visto como um substituto por ser detentor da lei no imaginário das crianças. Nesse sentido, seria fundamental investigar o que levaria o pai a “fracassar” na função paterna, especialmente na de auxílio à sustentação da díade.

Barbieri (2002) assinala que da mesma forma que é importante a mãe dispor de uma figura paterna de boa qualidade para desempenhar a contento sua função, o pai também precisa, além de se identificar com o próprio pai e com o seu bebê, ter uma figura materna suficientemente boa como base para o cumprimento de seu papel junto ao filho. Assim, conhecer a qualidade dos seus objetos internos, sua autopercepção e a percepção que ele tem do outro na família, contribuiria para a compreensão dos determinantes do bom ou deficiente desempenho de sua função.

Diante da alta prevalência da tendência antissocial infantil em nossa sociedade, suas graves consequências, as dificuldades encontradas no seu tratamento, o prognóstico sombrio (Barbieri, 2002) e a recorrente confirmação pela literatura do papel do pai em sua etiologia, esse trabalho teve por objetivo identificar aspectos de personalidade de pais (masculinos) de crianças com tendência antissocial passíveis de interferir no desempenho de sua função. Dessa maneira, foi investigada a percepção dos pais sobre sua vida familiar e seus vínculos com cada membro, a percepção de si no desempenho de seu papel, bem como os conflitos nodais de sua personalidade.

 

MÉTODO

O presente estudo adotou a perspectiva qualitativa de investigação, com foco nos aspectos descritivo e exploratório da análise dos dados, utilizando a estratégia do estudo de caso coletivo (Stake, 2000).

Participantes:

Para o encontro dos participantes, inicialmente foi realizado contato com diretoras de três escolas de uma cidade do interior do estado de São Paulo, Brasil, que autorizaram a realização da pesquisa nas dependências do seu estabelecimento. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelas diretoras, foi solicitado a elas a intermediação para o contato com os pais, por meio do envio de um envelope contendo uma carta explicativa sobre a pesquisa e um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dirigido a eles, referente à primeira etapa da pesquisa, que dizia respeito ao preenchimento do Questionário de Capacidades e Dificuldades - SDQ (Goldman, 1997), descrito no item “Material”. Estes envelopes foram encaminhados aos pais de todas as crianças do sexo masculino entre 7 e 12 anos matriculadas nas escolas. Os pais que concordaram em participar da pesquisa receberam outro envelope contendo o SDQ, que foi respondido e devolvido em um envelope lacrado à diretora. Foi então realizado contato telefônico com cinquenta (50) destes pais, sendo que somente três aceitaram o convite para participar das etapas restantes da pesquisa. Eles eram pais de meninos com idade entre oito e doze anos, que frequentavam a mesma escola particular de Ensino Fundamental. Todos os pais residiam sob o mesmo teto que suas esposas e tinham dois filhos, um deles diagnosticado como apresentando tendência antissocial por meio SDQ (Goodman, 1997), descrito abaixo. O foco da entrevista com os pais foi o seu relacionamento com este filho.

Material

O questionário SDQ, utilizado com os pais, instrumento aplicável a pais e professores de crianças de 4 a 16 anos. Ele rastreia problemas de saúde mental infantil, contendo um total de 25 itens divididos em cinco subescalas: problemas emocionais, hiperatividade, problemas de relacionamento, conduta e comportamento pró-social, com cinco itens em cada subescala. Pode ser utilizado para a avaliação de fatores de risco e de proteção, bem como no estabelecimento de programas de intervenção. A pontuação das crianças, conforme avaliadas pelos pais, situou-se entre 4 e 10 pontos na Escala de Problemas de Conduta do SDQ e que, no resultado geral do questionário, alcançou critérios para serem diagnosticadas nas faixas definidas como Limítrofe ou Anormal, foram consideradas nesta pesquisa como apresentando tendência antissocial.

Utilizou-se também uma entrevista psicológica semiestruturada com os participantes, abordando temas como a visão de si como pai, a percepção da esposa como mãe, a imagem do filho, as preocupações quanto à educação da criança, o relacionamento familiar, a figura de autoridade na casa, a família ideal, entre outros. Estes itens foram escolhidos a fim de facilitar a identificação de aspectos da personalidade dos pais que poderiam interferir no desempenho de sua função junto aos filhos com tendência antissocial.

Finalmente foi realizado o Procedimento de Desenhos de Família com Estórias - DF-E (Trinca, 1997), instrumento projetivo que permite o conhecimento dos conflitos nodais do indivíduo e sua concepção inconsciente sobre a dinâmica familiar. Esse instrumento se caracteriza por quatro desenhos organizados da seguinte forma: uma família qualquer, uma família que você gostaria de ter, uma família em que alguém não está bem e a sua família; seguidos da elaboração de uma estória associada livremente após cada desenho, um inquérito e um título. Cada conjunto constituído por desenho, estória, inquérito e título configura uma unidade de produção (UP).

Procedimento

Após concordância dos pais em participar da pesquisa e assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foi realizado um encontro com cada um deles para entrevista e, na sequência, a aplicação do DF-E. Os instrumentos foram aplicados em salas reservadas, tendo sido respeitadas todas as condições necessárias à sua aplicação. Os relatos foram audiogravados em um aparelho de MP3 e transcritos posteriormente.

As entrevistas e o DF-E foram analisados por meio do método da livre inspeção (Trinca, 1997), segundo o referencial psicanalítico, finalizando em uma síntese que levou em consideração a estrutura e a dinâmica da personalidade dos pais, a natureza dos objetos internos e sua percepção da família. Os três casos são apresentados na íntegra.

 

RESULTADOS

Caso 1: Tales1

Tales tem 38 anos, é comerciante, tem nível superior incompleto e é casado há 18 anos. É pai de um casal de filhos, sendo que Tadeu, o mais velho, tem 12 anos e foi diagnosticado pelo SDQ como apresentando tendência antissocial (pontuação 6 na Escala de Problemas de Conduta do SDQ, faixa limítrofe no resultado geral).

Na entrevista, Tales afirmou considerar sua esposa como boa mãe e ter dificuldades em definir o que seria uma mãe ideal, uma vez que, independente do seu modo de educar, a criança poderia ter dificuldades futuras. Ele descreveu Tadeu como um menino que pecava (sic) em muitos aspectos, que se revoltava sem razão, tinha ciúmes da irmã e era possessivo com relação aos pais, requisitando constantemente a sua presença. Apesar disso, afirmou que Tadeu é uma criança excepcional. Contou que, na escola, o menino tem dificuldades em Matemática e Português, mas que ele e esposa tentam auxiliá-lo, proporcionando aulas particulares. O pai atribui tais dificuldades a falhas pedagógicas, sendo que recentemente havia transferido a criança de escola. No ano anterior, o menino ficou para recuperação nessas duas disciplinas, mesmo após ter sido alertado por Tales para se esforçar mais. Como castigo, ele foi retirado do futebol, com promessas de voltar caso o rendimento escolar melhorasse, o que não aconteceu.

Tales contou que o filho obedece mais a ele do que à mãe, atribuindo isso às suas próprias características de personalidade e ao fato dele passar mais tempo com a mãe. Assim, apesar de reclamar, Tadeu o acata porque teria mais medo dele. Não obstante esses embates, ele afirmou procurar estabelecer com o menino um relacionamento marcado principalmente pela amizade e companheirismo. Com isso, apesar do relacionamento da criança com a mãe ser bom, o menino prefere a companhia do pai. Tales atribui essa preferência ao fato de ser o modelo masculino mais próximo da criança, o que seria uma necessidade para o desenvolvimento da personalidade dela. Quanto ao relacionamento com a irmã, ele oscila entre o ciúme e a proteção, havendo uma disputa de atenção com ela; entretanto, na ausência dos pais, é ele quem cuida dela.

DF-E

Primeira UP – Uma família qualquer:

 

 

Após marcada hesitação para começar o desenho e haver perguntado se deveria colorir e se deveria fazer a planta de uma casa, Tales terminou sua produção gráfica e contou a seguinte estória: “Essa é a minha família, sou eu, a esposa com os dois filhos. Uma família feliz, eles estão todos rindo (risos), não dá pra desenhar mais coisa, que sou péssimo em desenho, os membros estão todos aniquilados, olha só. É uma família, o principal dela é que tá feliz, tá rindo, estão todos felizes, (...) porque a vida é feliz, a vida é bela, se você ficar reclamando de tudo, você vai ficar triste o tempo todo, né? Então eu acho que é, o melhor incentivo da vida é a felicidade, tem que tentar ser feliz o máximo possível”. Título: A minha família.

Interpretação:

Ocorre uma tentativa de não se comprometer com a tarefa, refletida no caráter pedagógico do desenho e na pouca discriminação dos personagens. Existe ansiedade e dúvida quanto aos próprios recursos. A estória é vaga e a indistinção dos personagens torna a família massificada. Insinuam-se sentimentos agressivos para com os membros do grupo (estão todos aniquilados), que são combatidos pela repressão, racionalização e formação reativa (todos estão felizes). Há apego à realidade externa, e uma tentativa de evasão, aludindo à sensação de que para pertencer a um grupo é necessário castrar-se.

Segunda UP – Uma família ideal:

 

 

Durante a execução do desenho, Tales fez marcadas autocríticas à sua produção, entre elas a de que as pessoas pareciam marcianos e que a mulher era muito feia. Pediu para colar fotos, e depois borracha para apagar o desenho. A estória foi a seguinte: “Essa continua sendo a minha família, eu considero que ela seja a minha família ideal (...), só queria que o desenho ficasse mais bonito, mas não tem jeito. Essa família é uma família que tá viajando, tá pra praia, estão todos na areia, correndo e brincando; coqueiros pra todo o lado, são cocos aqui, não parecem, mas são cocos, todo mundo feliz e passeando”. Título: Minha família viajando.

Interpretação:

Nesta UP permanece a angústia frente à atividade e a manutenção da estereotipia do desenho. A UP é sugestiva de uma ambivalência, implicando um desejo de mostrar que se encontra tudo perfeitamente bem na família, quando na verdade não está. Existe hostilidade no relacionamento familiar, principalmente com a esposa e sua função (“a mulher é muito feia”, “não parecem, mas são cocos”) que é logo reprimida e evitada. As demais defesas empregadas contra os sentimentos hostis são apego à realidade e falso Self. De um modo geral, a mensagem transmitida é a de que a família não é bem aquilo que ele esperava que fosse, mas eventualmente é o contrário (os membros parecem extra-terrestres, “não familiares”).

Terceira UP – Uma família em que alguém não está bem:

 

 

“Essa família ‘tão’ todo mundo triste, algum problema financeiro, ou de saúde, não dá pra detectar não, mas é o..., algum problema que afligiu um e acaba respingando nos outros também. Esse problema normalmente tá no casal, né? Se for problema financeiro, por exemplo, o filho vai ser resvalado porque tá na convivência, né? É mais o pai e a mãe. (Quem é o pai e a mãe?) Ah, o maior, né? O maior, não parece, mas isso é um homem, e isso é uma mulher”. Título: Família em dificuldades.

Interpretação:

Mantém-se a estereotipia e indiferenciação dos membros. Não existe cooperação entre eles frente a uma dificuldade, sendo invadidos pela angústia, sem chance de encontrar solução. Revelam-se as dificuldades conjugais e o desejo de evadir-se, mas que é seguido de culpa pelas consequências imaginadas para o filho. Assim, além do uso do mecanismo de anulação, o participante busca reprimir os próprios anseios em função do bem estar geral.

Quarta UP – Sua família:

 

 

“Essa é a minha família, todo o mundo de mãos dadas, sorrindo felizes, tentando fazer alguma coisa, caminhando junto. (Eles estão indo pra onde?) Eles tão indo pra onde? Passeando simplesmente”. Título: Família unida, caminhando unida permanece unida.

Interpretação:

A estereotipia permanece e surge o desejo de dissolução da família que é vigorosamente combatido por meio da repressão e da formação reativa. A união familiar é imposta de fora e Tales não compreende o sentido dela (caminham juntos para lugar nenhum).

Síntese do caso

Em termos de organização de personalidade os dados apontam para uma estrutura neurótica do tipo obsessivo-compulsivo, sendo dominante a angústia de castração, combatida pela repressão, recalque, isolamento, anulação, racionalização e formação reativa (Bergeret, 1996/1998), que comprometem, até certo ponto, a espontaneidade.

Com referência ao relacionamento familiar encontra-se presente uma agressividade latente do participante com relação ao grupo, especialmente à esposa, que é visto como um agente que o castra e o impede de fazer o que quer. Há com isso um desejo de evadir-se para livrar-se das responsabilidades familiares. A agressividade entra em choque com o amor e é reprimida pela culpa que acarreta. Surge um conflito entre ser bom ou ser mau para com a família, que é vivido em um contexto de ser um amigo permissivo do filho ou impor-lhe limites de forma autoritária, situação passível de gerar inconsistência na educação do menino. Todavia, a relação com acriança parece ser à distância: assim Tales reflete pouco sobre a sua possível influência nas dificuldades do menino. Além disso, ele pouco ajuda a criança diante de suas dificuldades, deixando-a só na maioria das vezes. Nas ocasiões em que busca auxiliar a criança, ele o faz pela intermediação de agentes externos (aulas particulares).

Caso 2: André

André tem 48 anos, ensino médio completo e é representante comercial. É casado há 20 anos e tem um casal de filhos, sendo que o mais novo, Adriano, de 11 anos, foi diagnosticado como apresentando tendência antissocial pelo SDQ (pontuação 5 na Escala de Problemas de Conduta do SDQ, faixa limítrofe no resultado geral).

Na entrevista, André relatou que o projeto de ter filhos foi planejado pelo casal e que sua primeira filha nasceu cinco anos após o casamento. André descreveu-se como um “paizão” e um companheiro do filho, imagem que condiz com seu conceito de pai ideal. Assim, afirmou que é ele quem deve entender os filhos e não o contrário, pois nesse último caso ele estaria errado. Descreveu a esposa como uma mãe ideal e como sendo “o máximo” (sic).

Definiu Adriano como seu companheiro, uma criança que excedeu suas expectativas. Contou que o menino foi livre para brincar, tinha tudo o que queria e vivia sorrindo. Relatou um episódio, de quando a criança era mais nova, em que ela pegou um saquinho de suco instantâneo e colocou todo ele num copo. André ficou só observando, sem orientá-lo, para ver o que Adriano ia fazer e como ia “se virar”, já que o suco estava muito forte. No final, o menino jogou fora o suco e o pai não mencionou a ele que o havia observado.

Sobre a escola, afirmou que o filho tem dificuldades de aprendizagem, referindo-se a elas como os “probleminhas dele”. Além disso, o menino não aceita a autoridade da professora, como ele próprio fazia na infância: assim Adriano seria “o pai dele antigo” (sic). Admitiu que sua ausência prejudica a educação do menino, já que viaja muito, desde quando Adriano era pequeno e não participa tanto do seu dia a dia. Relatou preocupar-se com o futuro da criança, em termos de como ele lidará com o mundo competitivo, com exigências de ser o máximo, mas que, com os pais que ele tem, não vai sofrer tanto (sic).

André descreveu-se como a figura de autoridade da casa, e contou que dependendo do jeito que ele falar, o menino o obedece. Quando isso não acontece, ele apenas modifica o tom de voz, já que o castigo físico não é uma opção, mas um ato de covardia.

No campo dos vínculos familiares, André afirmou que tem um relacionamento gostoso com o filho (sic), com amizade e atritos, do mesmo modo que o com a irmã dele. Para André, a mãe trata Adriano como um bebezão (sic). Com os outros familiares o filho é encantador e sedutor. Quanto ao significado de família, o pai afirmou que era um aprender com os filhos e com a esposa, sendo várias cabeças pensantes, que estariam no mesmo lugar. Asseverou que não existe uma família ideal, “tudo bonitinho de olho azul” (sic).

DF-E

Primeira UP – Uma família qualquer

 

 

Após hesitação, ele disse que ia desenhar Adriano e sua irmã indo para a escola. A estória foi a seguinte: “Ah, esse aqui é nós, nós fomos no shopping fazer compras, tá vendo? O Adriano comprou a fita do videogame, a Ana só foi olhar as coisas com a mãe, não quis comprar nada, a mãe comprou um sapato, e eu, o que que eu comprei? Eu comprei? Como ela gosta de sapato, eu aqui, eu não comprei nada, eu estou carregando o presente que a Ana comprou. Ela comprou uma sandália pra ela e um sapato”. Título: Família ideal.

Interpretação:

A produção, diferenciando os personagens entre si, mostra a viabilidade de expressão das individualidades dos membros e a possibilidade de gratificação dos desejos pessoais, com exceção do próprio participante (ele é o único que não comprou nada para si). Dessa maneira, ele vê a si mesmo como aquele que promove a sustentação da família, mas não usufrui das satisfações que ela oferece, nem recebe seu reconhecimento. Com isso se insinua uma sensação de carregar um certo fardo, que é imediatamente negada (o título da UP é “Família Ideal”).

Segunda UP – Uma família ideal

 

 

Inicialmente, André sugeriu utilizar o desenho anterior nesta UP. Diante da solicitação da examinadora, ele concordou em realizar uma nova produção. A estória foi a seguinte: “Minha família, nós passeando no parque. Passeando no parque, andando de bicicleta, brincando com o cachorro, nós”. Título: Família Feliz

Interpretação:

Essa UP tem um caráter altamente defensivo e evasivo. Expressa a possibilidade de os membros se engajarem em uma atividade prazerosa no mesmo espaço, congregando os interesses de todos, evitando possíveis conflitos. Os papeis adulto e criança são bem diferenciados, mas há evitação, já denunciada pela tentativa de não realizar a UP. Com isso, existe um esforço para não aprofundar a comunicação e desembaraçar-se logo da demanda, sob o risco de queda da barreira defensiva erigida.

Terceira UP – Uma família em que alguém não está bem

Essa produção foi recusada pelo participante, que alegou não saber como fazê-la.

Interpretação:

A solicitação desta UP obriga o participante a suavizar a barragem defensiva que ele havia construído e se esforçado por manter na produção anterior. Ele responde a essa demanda com a recusa, que indica a presença de intensa angústia que acarreta bloqueio afetivo. Assim, após a realização, na segunda UP, de uma família idealizada, sem conflitos, houve ameaça de ruptura dessa imagem que remeteria o pai à própria realidade psíquica, e à percepção de que é ele quem não está bem no grupo familiar, como demonstrado na primeira UP.

Quarta UP – Sua família

 

 

André pediu novamente para reproduzir um desenho já realizado (o da segunda UP), mas, diante da interferência da examinadora, concordou em efetuar uma nova produção. Ao longo dos desenhos, comentou que se tratava de sua família no supermercado, com os filhos de um lado comprando porcarias (sic) e ele e a esposa do outro lado, comprando leite. Comentou que a figura da mulher ficou muito alta. Contou ainda que, todo final de semana, a família vai ao shopping, fazer compras e almoçar. A estória foi a seguinte: “Essa família aqui está sempre junta. Essa família está sempre junta, eles estão no supermercado. Adriano, Ana (filha), Anelisa (esposa) e André”. Título: Família unida.

Interpretação:

Nesta UP permanece a diferenciação entre adultos e crianças e a tentativa de conciliação no grupo familiar daquilo que é prazeroso (crianças comprando porcaria) com a provisão necessária (leite). Não obstante, em função de permanecer uma visão bastante idealizada da família, esses dois aspectos não se relacionam, impossibilitando a integração. Existe preocupação em suprir necessidades básicas e orais, nos filhos, mas também em si próprio, que parecem ter sido dificultadas pela presença de uma mãe dominante e pouco acessível (mulher muito alta). A UP sugere, assim, uma possível dissociação entre a provisão concreta e a afetiva vivida pelo participante, que limita as chances de uma gratificação completa.

Síntese do caso

Os dados da entrevista e do DF-E indicam que o vínculo de André com Adriano apresenta conotações bastante particulares, sendo a criança o objeto narcísico do pai. Nesse sentido, André minimiza as dificuldades do filho (os “probleminhas” dele) e assume uma posição ambígua diante do garoto: amigo e pai. Dessa forma, permanece sem saber como proceder diante da desobediência da criança (aumenta o tom de voz, é contra o castigo físico, mas não aplica medidas disciplinares alternativas). Frente a essas dúvidas quanto ao exercício da função paterna, sua resposta é afastar-se dela, deixando a criança à própria mercê, considerando-a autônoma e sem necessidade dele. Com isso, ora ele considera que tudo o que a criança fizer será bom, sendo as dificuldades negadas, ora ele se apresenta exigente para com o menino, reivindicando que este se conduza corretamente, mas se negando a orientá-lo e ensiná-lo. A ambivalência diante da imposição e manutenção dos limites promove uma inconsistência no cuidado do filho, passível de confundi-lo sobre o que é permitido fazer ou não. A mensagem transmitida na última UP do DF-E sugere que as dificuldades de integração da função paterna que André apresenta repousam sobre uma dissociação vivida por ele próprio na infância em seu vínculo com a mãe, em que o atendimento das necessidades fisiológicas de alimentação ocorreu de forma separada daquele das necessidades afetivas. Esse parece ser o modelo que ele reproduz em sua relação com Adriano, daí um certo distanciamento afetivo que se opera entre os dois. Diante do próprio narcisismo insatisfeito na infância, André, embora seja capaz de fazer concessões pessoais para atender o narcisismo dos filhos, permanece com a sensação de que a vida familiar é por vezes um peso, já que lhe restringe as gratificações pessoais. Quando essa percepção ameaça alcançar a consciência, ela é imediatamente negada e evitada por ele, que passa a idealizar a família e os filhos, escondendo de si mesmo o seu desejo de liberar-se dela. Essa dinâmica permite supor que a personalidade de André se organiza sobre bases fortemente narcisistas, num ordenamento limítrofe (Bergeret, 1996/1998).

Caso 3: Davi

Davi tem 45 anos, ensino fundamental completo e é produtor rural. É casado há 12 anos e tem dois filhos, sendo que o mais velho, Daniel, de 8 anos, foi diagnosticado pelo SDQ como apresentando tendência antissocial (pontuação 6 na Escala de Problemas de Conduta do SDQ, faixa limítrofe no resultado geral).

Na entrevista, Davi contou que seu local de trabalho é bastante próximo de sua casa, mas não permanece muito tempo com a família, mesmo nos finais de semana, por causa das plantas de que precisa cuidar. Assim, quem fica mais com as crianças é a esposa, embora tenha declarado que ambos, juntamente com a avó paterna (que também mora na casa), são responsáveis pela educação dos filhos.

Sobre o período de gestação de Daniel, o pai relatou intensa ansiedade e medo de que a criança não tivesse saúde ou não fosse normal, ressaltando que os nove meses de gravidez foram um “martírio” (sic). Nessa época, pensava muito no que um pai faria com um filho, como jogar bola, embora não faça isso com frequência. Atualmente, ele se considera um pai “duro”, forçado a ocupar o papel de autoridade e a dar broncas. Já com a mãe, as crianças têm mais liberdade. Davi descreveu sua esposa como uma mãe atenciosa, carinhosa, mas que não consegue manter a autoridade sobre a criança. Referiu que Daniel se parece com ele próprio quando criança, pois é atento somente a coisas de seu interesse, o que não inclui os estudos. Afirmou ser difícil definir um ideal de pai ou mãe, mas que estes seriam aqueles que atendessem não só as necessidades físicas, mas também as afetivas da criança.

Com relação à vida do menino, relatou que ela pode ser dividida em duas etapas, a primeira vivida em uma grande metrópole e a segunda em uma cidade do interior em que mora atualmente, numa chácara. Um dos fatores determinantes da mudança foi um assalto que sofreu na grande metrópole, que o deixou particularmente temeroso.

Sobre o ingresso do filho na escola, Davi afirmou que ele ocorreu principalmente em função da necessidade de Daniel conviver com os pares, já que não existem outras crianças na chácara onde vivem. Contou que o menino se comporta razoavelmente bem, mas que, por ser atento somente àquilo que o interessa, desenvolveu dificuldades de aprendizagem e necessitou de tratamento psicológico. Relatou que o filho se dá bem com todos os colegas e que obedece a professora.

Uma das dificuldades que Davi relatou com relação à educação de Daniel referiu-se ao fácil acesso à informação que existe atualmente, pois não há como filtrá-la, e o filho a utiliza para questionar o pai, dizendo que as coisas que viu na televisão não são do jeito que o pai fala. Ele contou ainda que o menino não o obedece mais como antes e atribuiu essa situação à fase de desenvolvimento que ele vive; frente a tais comportamentos ele argumenta com o filho. Apesar das dificuldades, o filho obedece mais a ele que à esposa, mas ele somente é chamado a intervir quando ela não consegue resolver os conflitos.

Disse que não existe muito carinho físico em sua relação com o filho, explicando que “não tem um parâmetro” (sic) para isso. Afirmou que não sabe se teria que abraçar o menino todos os dias, todas as horas, e que faz algum carinho quando quer fazer, e não porque viu na televisão alguém falar que é bom beijar o filho todos os dias. Com a mãe, Daniel tem um relacionamento conflituoso, enquanto que com o irmão, ele é “de lua” (sic): num momento estão brincando e em outro estão brigando.

Afirmou que em sua família ele é o responsável por tentar educar as crianças e ensiná-los a ter consciência em todos os aspectos. Idealmente, a família ideal deveria conseguir transmitir aos filhos o que “é correto ou que tá dentro dos parâmetros que nos foram impostos” (sic).

DF-E

Primeira UP: Uma família qualquer

 

 

Ao iniciar a UP, Davi foi bastante autocrítico, dizendo que era péssimo para desenhar, e que se tivesse mais tempo faria um desenho mais bonito. Optou por desenhar a própria família, dizendo que, embora ela não fosse perfeita, mesmo assim estava satisfeito. A estória contada foi: “É essa mudança que a gente teve, eu saí de uma cidade grande, e eu chegar aqui é uma estória. A apreensão que a gente tinha e a minha alegria, porque eu que vivi tudo aquilo, aquele problema de assaltos. Eu chegar aqui foi como se eu tivesse tomado um banho, falado “Pronto! Tô livre daquilo lá. Acabou!”. O Daniel, eu não queria pra ele o que eu tava passando, eu tinha um comércio que foi do meu avô, só que o meu avô não teve esses problemas há cinquenta anos atrás, o meu pai quase não teve. Eu falava:”Bom, eu vou continuar aqui”. Eu resolvi continuar no comércio da família, só que eu não queria isso pra ele. Falei “Não, chega!”. Título: Início da vida.

Interpretação:

A estória mostra que Davi se sentia sufocado e preso em uma tradição familiar que impedia o seu desenvolvimento pessoal. No entanto, isso envolveu um “repúdio” à família de origem que trouxe consigo certa dose de culpa. Mesmo assim, ele refere um renascimento como pessoa, um alívio, embora permaneçam dúvidas quanto à sua capacidade de enfrentar a situação nova (autocrítico com relação à sua capacidade gráfica). Há receio quanto à agressividade própria e projetada, e, para contê-la, Davi utiliza dos mecanismos de inibição do afeto e evitação.

Segunda UP – Uma família ideal

 

 

Durante a execução do desenho, Davi comentou que se fosse a sua esposa que desenhasse, ela incluiria uma menina, porque deseja muito ter uma filha. Ele, por sua vez, não tem essa aspiração, porque acredita que seria extremamente ciumento com relação à menina e que, por isso, ela lhe daria muito trabalho. A estória foi: “Seria a do meu pai, mas dele como filho. O meu pai é imigrante, o pai dele imigrou de Portugal, foi parar na América Central, ficou lá não sei quantos anos, e meu pai depois, pra fugir da guerra, também teve que sair de lá. Ele, com 18 anos, veio sozinho pro Brasil, deixou a mãe dele em Portugal e veio pra cá, pra não ter que ir pra guerra. Ele já era meio de opinião e falou “Não vou brigar por dinheiro, não tenho nada contra ninguém!”. Então veio sozinho pra cá, era uma família, o meu avô, a minha avó, o meu pai, e os irmãos dele, era uma família que era muito unida, mesmo tando milhares de quilômetros distante”. Título: Pai.

Interpretação:

A UP revela uma forte identificação com o pai, visto que o mesmo deixou sua mãe em outro país para viver a própria vida, numa tentativa de dar um desfecho para a situação edípica. Do mesmo modo que o pai, Davi mostra a necessidade de sair desse vínculo, para evitar os conflitos e desejos hostis dirigidos ao pai, por meio de um afastamento da família de origem e da constituição de uma nova família. Assim, ele repete a história do próprio pai, mas sente falta da família e tenta manter contato mesmo à distância.

Terceira UP – Uma família em que alguém não está bem

 

 

Ao ser solicitado a fazer o desenho, ele comentou que aquele (familiar) que não está bem, é o que está ausente. A estória foi a seguinte: “Não é a ausência física, é a ausência de participação, de educação, é uma presença não presente. Eu pus o homem da família, no caso é o pai. (E como as outras pessoas se sentem?) Ah, eu imagino que começa a criar problemas, não ter a presença de alguém ali pra orientar, pra amparar na hora que precisa, acho que sentem muito isso. Carentes”. Título: Modernidade.

Interpretação:

Em continuidade à produção anterior, Davi mostra que também se afasta da família para não competir edipicamente com os filhos. Porém, com seu afastamento não consegue satisfazer as necessidades básicas das crianças e permanece insatisfeito.

Quarta UP – A sua família

 

 

A estória contada foi: “E a estória é o... é o nascimento do segundo. Que eu levei ela pro hospital, e ele não podia ir (o Daniel). Deixei ele na casa do meu irmão. Falei pra ele, “Eu vou em casa, quando começar, aí eu volto pra cá”. Aí vim com ele, fiquei com ele em casa, só eu e ele, até então éramos sempre nós três, então, ficamos só eu e ele aqui, e ele sempre me perguntando, “Pai liga lá, liga lá”. Foi bem diferente do nascimento dele, que era aquela preocupação, no segundo você já tá mais confiante na própria Medicina. Então, a gente já curtiu mais o segundo. Essa seria a estória”. Título: Em busca da felicidade.

Interpretação:

Nesse momento há uma maior condição de contatar os próprios afetos e maior confiança na capacidade de reparação (Medicina). A rivalidade edípica com o filho é substituída por sentimentos de solidariedade e de proteção conjunta do objeto de amor, indicando a possibilidade de elaboração da agressividade.

Síntese do caso

A questão central que permeia os psicodinamismos de Davi e o seu modo de se relacionar com Daniel refere-se ao contato e elaboração dos próprios sentimentos hostis, suscitados particularmente pelas experiências edípicas. Assim, o temor do que ele poderia fazer em fantasia com relação às figuras com as quais rivaliza, leva-o a afastar-se delas, visando eliminar a competição e o ódio, e a negar ou minimizar seus sentimentos hostis e sua agressividade. Tais dificuldades acarretam limitações em identificar a agressividade que se encontra presente na criança, e que é também atenuada (em nenhum momento ele identifica a tendência antissocial do filho como digna de atenção). Contudo, o percurso que ele realiza da primeira à última unidade de produção do DF-E aponta para a existência de recursos de elaboração das próprias vivências edípicas, configurando um prognóstico positivo para si próprio e, em consequência, para a criança. O conjunto das produções de Davi na entrevista e no DF-E sugere uma organização neurótica de personalidade do tipo histérico de angústia (Bergeret, 1996/1998).

 

DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa revelam a existência de vínculos importantes entre os psicodinamismos dos pais e o desenvolvimento da tendência antissocial das três crianças estudadas. Nesse contexto, existem semelhanças referentes à forma como o funcionamento psicodinâmico do genitor se atualiza na relação com o filho, independente da estrutura de personalidade do primeiro. Não obstante, tais atualizações se processam de modo diferente segundo esse contexto estrutural.

Dentre as semelhanças, nenhum deles descreveu sentir-se à vontade na função de impor a autoridade e os limites, esperando que a esposa o fizesse em seu lugar e acreditando que deveriam interferir somente diante do insucesso dela. Esse incômodo é acompanhado por uma ambivalência dos pais com relação ao papel que desempenham junto a seus filhos: figura de autoridade ou amigo, termos são vividos por eles como contraditórios. Com isso, eles alternam de um pólo para outro, sem possibilidade de integração, uma vez que impor limites e desamor são vistos como sinônimos. Essa inconsistência dos pais acarreta confusão na criança, que fica perdida diante da instabilidade dos limites, que ora existem, ora não, inconsistência esta considerada pela literatura como um importante determinante da tendência antissocial (Loeber & Stoutmer-Lober, 1986).

A oscilação do papel paterno nos pólos autoridade – amizade revela uma dificuldade mais profunda relacionada à integração dos afetos amorosos e destrutivos na personalidade, implicando na impossibilidade de o amor matizar o ódio e seus efeitos. Em Tales e Davi o comprometimento nessa integração é sustentado por uma forte repressão dos afetos hostis vinculados, sobretudo, à experiência edípica: em Tales ele é vivenciado como uma necessidade de inibição da personalidade para manter a união familiar e em Davi como um imperativo de negar a competição, mesmo que para isso seja preciso afastar-se dos objetos de amor. Nesse contexto, se as psicodinâmicas de Tales e Davi, reveladas na avaliação realizada nesta pesquisa, vão ao encontro da teoria freudiana do comportamento antissocial no que tange à sua origem nas experiências edipianas (Freud 1909/1976), elas mostram também que a repressão, o isolamento e a evitação são alternativas empregadas para prevenir o ato criminoso, impedindo a busca do castigo decorrente do sentimento de culpa existente. Essas alternativas, contudo, não impedem que os pais deixem de ser assombrados pela possibilidade de uma atuação antissocial (que pode nunca acontecer), o que explicaria o distanciamento afetivo deles para com os filhos como uma medida de proteção da criança.

A presença de conflitos de amor e ódio em personalidades razoavelmente bem integradas (neuróticas), cujo alcance somente é obtido quando se tem a certeza de que as experiências amorosas são mais fortes que as hostis (Klein, 1927/1981), foi compreendida por Winnicott (1958/2005) no contexto de um desenvolvimento emocional que se processou relativamente bem, mas que, em uma experiência específica, o amor sucumbiu ao ódio. Tal experiência é a fonte da dúvida tipicamente obsessiva sobre a intensidade do próprio amor e, em consequência, sobre a confiança que se pode ter em si mesmo e no mundo.

Por outro lado, em André a oscilação autoridade – amizade se desenrola no interior de uma personalidade que suporta muito mal os limites, ou seja, que se caracteriza por uma intolerância à castração (Bergeret, 1996/1998). Com isso, o limite é vivido como uma dolorosa ferida narcísica. Em função da maior fluidez das fronteiras do Self (organização de personalidade limítrofe), a identificação com o filho ocorre de modo mais fácil e direto, mas com maior consideração pelas semelhanças do que pelas diferenças, o que leva o garoto a tornar-se seu objeto narcísico. Com isso, a dinâmica de sua personalidade é dramatizada em sua relação com o filho, que é compreendido por ele como alguém incapaz de aceitar limites e frustrações, que são vividas como a imposição de um sofrimento profundo. É exatamente essa intolerância que leva André a recusar a unidade de produção de uma família em que alguém não está bem.

Essas dificuldades dos pais no manejo e domínio da própria hostilidade (procedente ou não de frustrações) redundam em comprometimentos no controle da agressividade por parte das crianças, uma vez que a colocam diante de uma figura que, além de não ser indestrutível (Winnicott, 1958/2005), pode ser, decididamente, vingativa. Nesse contexto, Silva (2006) defende que a forma como o ambiente compreende e maneja os impulsos destrutivos da criança levaria a mesma a tolerar mais ou menos as ansiedades deles advindas.

Em termos do desenvolvimento do Self, as dificuldades referentes à aceitação de limites por parte dos pais têm como corolário a inibição da expressão espontânea (Winnicott, 1956/1999). Nos casos de Tales e Davi, tais constrangimentos advêm, sobretudo, da intensa repressão dos desejos e motivações, ao passo que em André eles decorrem de sua reduzida capacidade ideativa. Neste último, a rejeição imediata das interdições compromete o desenvolvimento do pensamento e da flexibilidade que ele promoveria para contornar as proibições da realidade, seja matizando o desejo, substituindo a gratificação ou realizando-a de modo simbolizado ou organizado diferentemente em função das exigências do mundo externo. De qualquer maneira, nos três casos é patente o prejuízo na capacidade de conciliarrealizando-a de modo simbolizado ou organizado diferentemente em função das exigências do mundo externo. De qualquer maneira, nos três casos é patente o prejuízo na capacidade de conciliar a criatividade pessoal e a realidade do mundo, sugerindo comprometimentos na área da transicionalidade (de modo mais específico e localizado em Tales e Davi e mais central em André). Com isso surge um abismo entre o mundo e o desejo pessoal (Tales e Davi) ou entre a realidade e o eu (André). A interdição é vivida na relação com a criança (e apresentada a ela) como um mal necessário a suportar e, certamente, intransponível. Nesse sentido, vale recordar que Barbieri (2005) já havia sublinhado a capacidade para as experiências transicionais como uma característica do ambiente suficientemente bom.

A natureza da relação de objeto entre os pais e os filhos é diferente nos três casos. Tales e Davi (este último em particular), por serem capazes de vínculos com um objeto total, percebem os filhos como competidores edípicos autônomos, aos quais é possível dirigir a agressividade e, por isso, eles (os pais) devem tomar cuidado dada a fragilidade da própria condição da criança. Já para André, o garoto é precariamente diferenciado dele próprio, conforme ilustrado por seu relato na entrevista:

“Eu sou um exemplo, eu sou muito pegajoso, eu preocupo com ele [filho], o comportamento dele, quando ele fica aflito, eu fico [também] quero saber porque ele fica aflito, entendeu? Eu quero estar junto com ele. Não gosto de ver ele triste. Gosto de ver ele do meu lado, porque ele é o meu companheiro”.

Com isso, André não consegue desempenhar o papel de oferecer-se ao filho como um modelo de integração, uma vez que, ao invés de sustentar o processo de desilusão (Outeiral & Celeri, 2002), ele consolida e oficializa a ilusão. Dessa maneira, a função paterna torna-se mais comprometida do que nos casos de Tales e Davi, e o reconhecimento da existência de dificuldades no filho (imperfeições) adquire o valor de uma acusação a si próprio, daí sua necessidade de minimizar a importância das condutas antissociais do menino.

Embora a literatura especializada descreva a existência de uma associação entre a tendência antissocial do pai e a do filho (Bornovalova, Hicks, Iacono, & McGue, 2010, Frick et al., 1992; Lahey et al., 1988), a análise dos três estudos de caso aqui apresentados revela que esse vínculo não deve ser compreendido unicamente em termos do comportamento manifesto dessa díade, mas fundamentalmente em termos psicodinâmicos.

Assim, é o modo como se processam as relações entre as angústias e as defesas, a maneira como ocorre a integração dos afetos amorosos e hostis na personalidade, o comprometimento ou integridade da capacidade criativa, a condição adquirida para as experiências de transicionalidade, a solidez e flexibilidade da simbolização, o nível de síntese alcançado pela ambivalência original que parecem ser os fatores determinantes dessa associação. Dessa maneira, mesmo pais manifestamente inibidos (como Tales) podem proporcionar para a criança um ambiente insuficientemente bom, gerador de privações que redundam em tendência antissocial (Winnicott, 1956/1999). Nesse sentido, embora nenhum dos pais aqui avaliados atenda aos critérios para receber o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Antissocial (APA, 1984), eles apresentam algumas características que se avizinham ou fazem parte de um modo de funcionamento destas pessoas, como o desejo de se desembaraçar das obrigações e responsabilidades dos relacionamentos familiares (Tales, André, Davi), comportamento narcisista (André) conflitos conjugais (Tales e André), baixa autoestima (Tales e Davi)2, sentimentos de hostilidade face à família (Tales, André), incômodo diante da necessidade de aceitação (e, em consequência de imposição) de regras e limites (Tales, André e Davi)3. Se essas características dos pais não compõem um quadro suficientemente consolidado para a emergência do sintoma antissocial, os filhos respondem no lugar deles.

Com relação à estrutura de personalidade, da mesma maneira que Bergeret (1996/1998) e Winnicott (1956/1999) sustentam que a tendência antissocial não é exclusividade de nenhuma delas, no que concerne aos pais, a despeito das limitações de nosso estudo4, podemos afirmar o mesmo, ou seja, que essa condição da criança não teria entre seus determinantes patogênicos a estrutura de personalidade do pai. Em outras palavras, a tendência antissocial de uma criança pode se desenvolver num lar onde há um pai que apresente uma organização de personalidade neurótica ou limítrofe (e provavelmente psicótica também). Assim, nosso estudo revela que, independente da estrutura de personalidade, a existência, nos pais, de uma lacuna, intransponível pela simbolização, entre as imposições do mundo real e a criatividade pessoal, é que seria a presença etiológica fundamental nas dificuldades de expressão do Self (deles próprios e de seus filhos), que estão presentes na tendência antissocial infantil.

A presente investigação, embora reitere as conclusões da literatura referentes à associação entre a função paterna e o desenvolvimento da tendência antissocial infantil, demonstra que a compreensão desse vínculo deve ser buscada menos nos aspectos observáveis e manifestos da conduta desse genitor ou das práticas parentais que ele emprega, e mais nos elementos profundos, dinâmicos e latentes de sua personalidade. Nesse sentido, qualquer intervenção perante as crianças que apresentam essa dificuldade deve incluir necessariamente a abordagem das características inconscientes de seus pais, que se atualizam na relação com elas. Desse modo, faz-se necessário um diagnóstico profundo e compreensivo dos psicodinamismos dos pais, que ultrapasse a mera consideração de seus aspectos descritivos e da estrutura de personalidade.

Por ser considerado um quadro com tendência a se agravar ao longo do tempo, de difícil tratamento e prognóstico pouco otimista, a intervenção sobre a tendência antissocial deve ocorrer precocemente e abarcar todos os fatores possíveis que participam de sua etiologia. Tratando-se a personalidade paterna um dos elementos mais importantes envolvidos nesse quadro, a intervenção junto a esse genitor e à dinâmica familiar conforme determinada também por ele, são essenciais dados os custos pessoais e sociais que essa patologia acarreta.

A despeito dos esclarecimentos que essa investigação promove sobre o modo como se processa a associação entre a personalidade paterna e a tendência antissocial infantil, ela apresenta limites. Nesse sentido, são necessárias novas pesquisas que considerem, por exemplo, se o modo como a mãe desempenha sua função diante da criança poderia atenuar, exacerbar ou graduar a influência do pai no desenvolvimento do quadro. Sustentamos que estudos dessa natureza devem ser empreendidos considerando principalmente a psicodinâmica dessas relações, uma vez que somente a partir desse conhecimento torna-se viável produzir intervenções significativas junto ao grupo familiar e à criança.

 

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Recebido em 12 de Maio de 2011/ Aceite em 14 de Outubro de 2013

 

NOTAS

1 Os nomes apresentados são fictícios de modo a preservar a identidade dos participantes.

2 A baixa autoestima é expressa por meio de dúvidas quanto às próprias capacidades.

3 A aceitação dos limites ocorre sobretudo devido à repressão e não à assimilação deles no Self.

4 Referimo-nos aqui ao número reduzido de participantes e a ausência, entre eles, de uma organização psicótica.