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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.43 Lisboa June 2020

https://doi.org/10.34619/mvk6-5n19 

LEITURAS

Mulheres e eleições. Pires, A. P., Mariano, F. & Veiga, I. (Coords.). (2019) Coimbra: Almedina, 278 pp.

Anne Cova*

* Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais 1600-189 Lisboa, Portugal. anne.cova@ics.ulisboa.pt


 

O título deste livro remete para a multidisciplinaridade, cruzando, com pertinência, as perspetivas da História e da Ciência Política. A temática estudada já foi objeto de várias publicações, nomeadamente em língua inglesa, que são devidamente mencionadas. Uma outra componente notável é o esforço que algumas contribuições fazem para apresentar uma abordagem comparada ou transnacional. Esta preocupação de ter uma perspetiva mais ampla é desejada pelos coordenadores: “importa integrar Portugal numa grelha de análise comparada e tentar examinar as trajetórias de participação e representação das mulheres numa maior amplitude histórica e espacial” (p. 17).

A primeira frase da introdução refere o caso da Arábia Saudita, que se tornou em 2015 o último país do mundo a permitir às mulheres o exercício do direito de voto. Mais perto de nós, geograficamente, a Suíça deu o direito de voto a todas as mulheres apenas em 1971. E em Portugal, “como bem recorda André Freire, no âmbito europeu, Portugal foi, pois, o país que mais tarde acedeu ao voto universal feminino e masculino - no ano de 1974” (p. 12). Se, em vários países, as mulheres obtiveram o direito de voto pouco tempo depois da Primeira Guerra Mundial, como é o caso por exemplo dos Estados Unidos, em 1920, em outros países foi preciso esperar muitos anos. Segundo Fátima Mariano, essa resistência aos ideais sufragistas na Península Ibérica tem a ver com a elevada taxa de analfabetismo feminino, a interferência da Igreja católica e a entrada tardia das mulheres das classes média e alta no mercado de trabalho, resultado de um desenvolvimento industrial lento. Existe também um discurso preconceituoso sobre o voto conservador das mulheres, que Marta del Moral Vargas desmantela para o caso de Espanha: “Este discurso tinha servido para explicar a inclinação centro-direita das eleições de 1933, mas não tinha sido invocado para justificar o triunfo da esquerda em 1936” (p. 80).

Em Portugal, a ditadura militar concedeu o direito de voto apenas às mulheres diplomadas ou com o curso secundário. Tratava-se então de um “sufrágio restrito”, que Marta del Moral Vargas analisa em pormenor para a Espanha, mostrando que houve várias tentativas em 1877, 1907 e 1908 para estabelecer um sufrágio limitado. Convém corrigir o erro frequente nas publicações quando mencionam as datas do sufrágio universal sem especificarem se é sufrágio universal feminino e masculino. Por exemplo, em França, muitos manuais falam do sufrágio universal obtido em 1848, quando na realidade convinha acrescentar universal masculino ou pôr universal entre aspas, porque as mulheres francesas só obtiveram o direito de voto cerca de um século mais tarde, em 1944, e votaram pela primeira vez em 1945. Assim, também é importante distinguir entre a data de obtenção do direito de voto e a primeira vez que este direito é exercido.

Outro enfoque primordial é a cronologia: por exemplo, se a médica portuguesa Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher num país da Europa do Sul a exercer o direito de voto em 1911 (ela conseguiu votar porque, além de ser maior de idade e de saber ler e escrever, era chefe de família por ser viúva e ter uma filha menor a seu cargo), logo a seguir os republicanos portugueses corrigiram essa “falha”. Para evitar novos casos, o governo de Afonso Costa (1871-1937) aprovou, em 3 de julho de 1913, um novo Código Eleitoral (Lei n.º 3), o qual determinava que apenas “os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos poderiam participar em eleições legislativas e administrativas” (p. 31).

Em 1935, o Estado Novo nomeou três mulheres deputadas, e a este propósito Ana Campina analisa os discursos de Salazar sobre as mulheres. Em Espanha, foi também na ditadura de Primo de Rivera que as mulheres ocuparam pela primeira vez um lugar como deputadas, em 1927. Novamente a cronologia é de realçar porque, ao contrário do que aconteceu na maioria dos países, a Espanha aprovou primeiro o direito de as mulheres se candidatarem ao Parlamento e só depois o direito de voto feminino. No entanto, convém referir que as deputadas espanholas em 1927 eram uma minoria: dos 385 parlamentares da Assembleia Nacional, apenas 15 eram mulheres. Daí a importância de referir sempre os números e as percentagens, cuja relevância é sublinhada por Carla Luís no prefácio ao livro: os números “são, por si só, uma conclusão quando falamos de democracia e representação” (p. 5). Ana Vargas e Teresa Fonseca, que se concentram sobre as intervenções das mulheres nas Constituintes de 1975-1976, mostram que durante os dez meses de funcionamento da Assembleia Constituinte, entre 2 de junho de 1975 e 2 de abril de 1976, foram 27 as deputadas que assumiram funções num universo de 327 deputados.

Falar do direito das mulheres ao voto implica saber que eleições são contempladas. Podem ser eleições ao nível do poder local, tema sobre o qual se debruçam Albertina Jordão e Maria Antónia Pires de Almeida. A esse respeito, é de notar que, em 1862, a Suécia reconheceu o direito de voto das contribuintes solteiras nas eleições municipais. Em Portugal, foi só depois do 25 de Abril que as mulheres se tornaram presidentes de Câmara. Como o livro demonstra bem, a participação das mulheres na vida política não se resume ao nível da política parlamentar. Existem diversos níveis de participação, sendo que as eleições autárquicas são igualmente um momento importante.

Outra questão interessante é o debate em torno da “relação entre a emergência dos governos democráticos e a inclusão política das mulheres”, sendo “muito difícil afirmar que a democracia tem contribuído para uma maior representação das mulheres nos parlamentos nacionais” (p. 14). Isso leva a refletir sobre os vários fatores a ter em conta: sistema eleitoral; funcionamento dos partidos políticos; emprego de quotas; lei da paridade de género. Esta última foi introduzida em 2006 em Portugal e é destacada na contribuição de Ana Cabrera e Carla Martins, que analisam, com base na participação das mulheres no Parlamento Europeu, as estratégias de integração da perspetiva de género nos países da União Europeia. O texto mostra como as reformas feitas pelo sistema político podem contribuir para uma maior equidade de participação entre homens e mulheres na esfera política.

O tema mulheres e eleições inclui também as campanhas eleitorais e os mecanismos de competição para liderar os partidos políticos. O livro encerra com um texto de três politólogos: Ana Espírito-Santo, André Freire e Sofia Serra-Silva. Trata-se da tradução para Português de um artigo que foi publicado inicialmente em 2018 em Inglês na revista Party Politics e “visa compreender como a interação entre o partido político e o sexo dos candidatos parlamentares influencia as preferências políticas dos últimos” (p. 260).

Contributo muito importante para a História e para a Ciência Política, este livro de consulta agradável (apesar da falta de um índice onomástico e da ausência, com a exceção dos coordenadores, de notas biográficas dos outros autores) é um fecundo convite a prosseguir a inclusão do género numa perspetiva transnacional.