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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.43 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.34619/cc7k-x290 

HOMENAGEM

Aprender com Manuela Silva

Margarida Chagas Lopes*

* mchagaslopes@gmail.com


 

Não tive o privilégio de ser sua aluna, embora tenha estudado no ISCEF-ISE quando Manuela Silva aí ensinava. Tendo optado por áreas diferentes da Economia, também não fui sua orientanda de mestrado ou doutoramento. Em quarenta anos de ensino naquela mesma instituição, muitos dos quais coincidentes com os seus períodos de docência na mesma, nunca pertenci igualmente a qualquer das equipas de investigação que coordenou ou que integrou.

Como aprendi - e aprendo - então, com Manuela Silva?

O nosso primeiro contacto mais directo foi quando, em 1988, me convidou para a substituir na coordenação portuguesa do Grupo As Mulheres e o Mercado de Trabalho, dependente da então Direcção-Geral V da Comissão Europeia. Estava eu a meses de concluir a dissertação de doutoramento, a que se seguiria a preparação das provas públicas, e aquele convite que tanto me honrou também me deixou quase em pânico. Como conciliar tudo? E, sobretudo, como conseguir impor a mim mesma um nível de rigor e qualidade de desempenho que atenuassem o inevitável fosso entre a obra que tinha deixado e a minha modesta possibilidade? Precursora também no domínio da igualdade entre mulheres e homens na economia e na sociedade, Manuela Silva gozava já de uma reputação assinalável neste campo onde eu mal começava a debutar… Valeram-me de muito o trabalho, conhecimento e experiência da Heloísa Perista, que já vinha trabalhando com Manuela Silva neste domínio. Mas valeu-me ainda mais a disponibilidade amiga de ambas, sempre prontas a ouvir e esclarecer as minhas dúvidas, a primeira, e a partilhar comigo as veredas dos novos percursos que ia tacteando, para além de outros trabalhos de investigação, a Heloísa.

Foram cerca de sete anos de trabalho numa área - a dos Estudos de Género - que se me tornou cada vez mais cara e onde prossegui em investigação já depois de ter saído daquele Grupo. Mas a principal aprendizagem não foi, propriamente, a dos conteúdos teóricos, das problemáticas e situação concreta das mulheres e homens portugueses e europeus quanto à situação perante o trabalho e o emprego. E esse já foi conhecimento de monta. A lição mais importante obtive-a directamente da postura de Manuela Silva ao ter-me convidado: há que dar lugar aos novos. Além disso, referia ela, já assumo responsabilidades em domínios diversos e estou ávida de novos desafios que se me colocam… Não seriam estas as palavras textuais da Professora - nunca consegui deixar de tratá-la assim -, mas o sentido e significado eram esses.

Manuela Silva era alguém que, numa fase já avançada da vida profissional e, sobretudo, já tornada referência nacional e internacional, se movia ainda, e sempre, pelo entusiasmo do novo desafio, do projecto em construção. Alguém incapaz de se acomodar à sombra do nome já feito e do reconhecimento generalizado, antes se comportando com a humildade de uma verdadeira cientista social: em busca contínua, sempre insatisfeita com os resultados obtidos e em permanente diálogo com as diversas comunidades de referência. Que pena que cada vez mais escasseiem os cientistas sociais que assim pensam e agem…

Com o correr dos anos fui aprendendo, por observação da vertente pública da sua vida, que na maior parte das vezes era Manuela Silva quem concebia e construía os seus próprios desafios e que para eles convidava … veementemente… aqueles e aquelas em quem depositava confiança para consigo se envolverem em novas dinâmicas e projectos. Inserida na carreira docente no ISE-ISEG, tendo orientado o meu trabalho de docente e investigadora para outros domínios - primeiro, o da Economia dos Recursos Humanos, depois os das Economia e Políticas da Educação e do Conhecimento -, acompanhava à distância e pela descrição de colegas e amigos o seu envolvimento naqueles desafios, instituições e projectos. Por diversas vezes, sempre que ocorriam coincidências temáticas, Manuela Silva me convidou para intervir em seminários e debates que dinamizava naqueles seus diversos planos de intervenção cívica e cidadã. E em cada uma delas se adensava o meu receio de não estar à altura da missão que me propunha. Sempre honrada com tais convites, sentia neles um estímulo para aprender algo mais ao preparar-me para lhes dar resposta. E também sempre, sem excepção que me ocorra, fui recebida com o elogio crítico e a opinião construtiva e aberta de quem fazia do ensino-aprendizagem o seu modo de ser e forma natural de estar na vida.

Aproximando-se a fase da minha passagem à aposentação, há cerca de seis anos, os nossos contactos intensificaram-se. A Professora convidou-me então para integrar o Grupo Economia e Sociedade (GES), por si criado e coordenado. Este Grupo, onde já se integravam alguns antigos colegas, professores e outros membros, tem constituído para mim uma verdadeira escola de aprendizagem. Como investigadora da Universidade de Lisboa (UL), situação que decidi manter mesmo depois de aposentada, tenho conseguido obter uma grande complementaridade entre os meus trabalhos de investigação no centro SOCIUS-UL e no GES. Aqui desenvolve-se, com efeito, um importante trabalho de “extensão universitária”, para utilizar uma expressão corrente nos meios académicos, com o aprofundamento de grandes temáticas de actualidade como a do desenvolvimento sustentável, a transição de paradigma económico e social, a crise ambiental, o processo europeu, entre outras. Dentro destes temas mais vastos, a preocupação do GES tem vindo a prender-se com aspectos mais significativos para a realidade económica e social portuguesa: a evolução demográfica, a situação da Segurança Social, a questão da pobreza e das desigualdades sociais, a análise dos sistemas e processos de saúde e de educação, a coesão e ordenamento do território, por exemplo.

Permita-se-me que dedique um pouco mais da minha atenção ao trabalho deste Grupo, já que a minha inserção no mesmo me tem permitido a parte mais nobre e expressiva das aprendizagens que devo a Manuela Silva.

Quem vê de fora e aprecia os outputs do trabalho do GES, como os seminários e conferências, a edição de livros e outros documentos, a animação do seu blogue (areiadosdias.blogspot.com ), surpreende-se com o facto de se tratar de um grupo informal, cujos membros exercem a sua actividade em termos totalmente voluntários, apenas animados pelos valores da cidadania e da responsabilidade de intervenção social. Por vezes, mesmo nos centros de investigação universitários, obrigados como é sabido à produção de resultados científicos sujeitos a avaliação, a dinâmica e os resultados são bem menos expressivos…

A que se deve, então, esta capacidade de mobilização, esta dinâmica? Sem dúvida que ao trabalho de todos os seus membros. Mas, muito especialmente, à força inspiradora, ao convite veemente, ao desafio constante, ao saber constituído e à disponibilidade de trabalho permanente da sua fundadora, Manuela Silva. E não menos, também, à sua capacidade e vontade de entrosamento social e comunitário, granjeadoras de um capital de relacionamento com peritos, autoridades nas diversas matérias e decisores institucionais cujo contributo ou atenção nunca se cansou de suscitar.

Houve um domínio em que tive o privilégio de ser mais directamente chamada a colaborar: o da Educação. O funcionamento do sistema educativo português, nos seus diferentes graus e problemáticas, sempre constituiu uma área de grande preocupação para Manuela Silva. A esse facto não terão sido estranhas também as suas funções de Presidente do Instituto de Tecnologia Educativa - aquele a que devemos a Telescola - e de Inspectora-Geral do Ministério da Educação. Contando com o seu vastíssimo conhecimento, sobrevalorizando, generosamente, as minhas capacidades como docente e investigadora em Economia e Políticas de Educação e do Conhecimento, e convocando o contributo específico de outros peritos, decidiu propor ao GES uma reflexão aprofundada neste domínio. Com início em finais de 2013, abarcando todo o ano de 2014 e o início de 2015, desenvolveu-se então um trabalho criterioso e empenhado que interessará conhecer mais detalhadamente, já que se revela um modelo de boas práticas de um/uma cientista social.

Manuela Silva começou por dirigir um convite, digamos veemente, a sete especialistas nas seguintes áreas da educação: educação de infância, ensino especial, escolaridade obrigatória, ensino de adultos, ensino universitário, formação de professores e administração e organização do sistema educativo. Com o convite, enviava igualmente o pedido de constituição da equipa de trabalho que entendessem mais adequada, um “caderno de encargos” que obrigava à apresentação explícita de propostas para o futuro e um cronograma para cujo cumprimento rigoroso também apelava. Assim, entre Julho e Outubro de 2014, ficaram disponíveis os primeiros contributos daqueles sete grupos: outros tantos documentos de trabalho, os quais vieram a dar lugar a intensa análise e apreciação no âmbito do GES. A segunda fase daquele “caderno de encargos” envolvia duas actividades: a realização de outros tantos seminários temáticos e o pedido de um parecer a consultores que então também convidou. Para aqueles sete seminários, realizados durante o ano lectivo de 2014, foram convidados professores das escolas da Grande Lisboa, especialistas com créditos firmados em cada um daqueles temas e, naturalmente, os autores dos documentos. Foram bastante animados aqueles seminários: os participantes estavam realmente motivados; mas, receando que tal pudesse não acontecer, também tínhamos preparado questões e temáticas destinadas a fomentar o debate…

E resultou bem? O melhor possível. Tendo os participantes autorizado a gravação dos seminários, os resultados dos debates foram então tratados pelo GES e reenviados aos diferentes grupos para que, juntamente com os pareceres dos consultores, os autores os integrassem nas versões finais dos seus documentos. À medida que estas foram sendo recebidas, o grupo coordenado por Manuela Silva no âmbito do GES foi tratando da “arte final” e da compilação, o que veio a dar lugar à edição de dois livros: Manuela Silva (coord.) et al., 2015. Pensar a Educação. Portugal 2015. Lisboa: Educa; e Manuela Silva (coord.) et al., 2015. Pensar a Educação. Portugal 2015 - Contributos Sectoriais. Lisboa: Educa. Ao mesmo tempo, preparava-se a conferência sobre o mesmo tema que veio a realizar-se na Fundação Calouste Gulbenkian a 21 de Maio de 2015.

Perante o sucesso destas iniciativas, mais uma vez se coloca a questão: como foi tal possível?

As temáticas em apreço mobilizavam naturalmente os docentes que colaboraram no processo. Com efeito, de há muito que se tem vindo a registar um descontentamento generalizado quanto ao funcionamento do sistema educativo, quer por parte da opinião pública, quer por parte do pessoal docente. Razões várias têm vindo a acumular-se para dar origem a tal descontentamento. Por um lado, a formação dos docentes e as condições de vigência da carreira docente são desde há bastante tempo objecto de contestação, sem que medidas cabais tenham sido entretanto implementadas para lhes fazer face. Por outro, o tema dos agrupamentos e dos mega-agrupamentos estava na ordem do dia, com a maioria significativa dos professores e directores de agrupamento a manifestarem a sua discordância, sem que, também aqui, conseguissem atenção dedicada por parte dos decisores políticos. Ao mesmo tempo, a educação de adultos marcava passo, com novas indefinições e ambivalência entre as perspectivas vocacional e instrumental e as concepções mais amplas da formação e aprendizagem para o desenvolvimento pessoal, comunitário e social. Já a escolaridade obrigatória começava a ser alargada para incluir o 12.º ano - ou, mais exactamente, a população até aos 18 anos de idade -, sendo opinião consensual entre os especialistas e profissionais destes níveis de ensino que o processo teria começado pelo fim: sem acautelar devidamente, até então, o abandono escolar dos públicos assim visados, sem cuidar de analisar aprofundadamente as questões de organização ou reorganização dos ciclos de estudos, estando ausente um trabalho sistemático de reapreciação programática e curricular e da sua adequação face às novas disposições. Enfim, preocupações de fundo surgiam também nos domínios das necessidades educativas especiais, da educação de infância, do ensino superior, cada um destes domínios com problemas específicos mas não de menor complexidade.

No entanto, se é certo que as “condições naturais” de mobilização estavam assim criadas, a verdade é que os potenciais obstáculos à participação eram de monta: os docentes estavam, como estão ainda, assoberbados com actividades lectivas, de extensão escolar e comunitária, funções de direcção, uma enorme carga de trabalho burocrático e, para piorar este estado de coisas, uma indefinição generalizada das orientações recebidas, muitas vezes de natureza completamente descontinuada e avulsa. O risco de não-adesão e de desmotivação eram, portanto, muito grandes.

Mas não era fácil dizer que não a Manuela Silva.

Com efeito, na sua forma de trabalhar, encontramos presentes as valências da multi e da transdisciplinaridade, do trabalho em construção a todo o tempo sujeito a debate e apreciação públicos, da reintrodução das críticas e sugestões recebidas, da apresentação final em modo de máxima abertura e debate democráticos. Tão longe da reserva e secretismo que infelizmente caracterizam tantos trabalhos de investigação académica… Que exemplo de rigor e de humildade na investigação, procurando sempre a opinião de quem poderá saber mais… É impossível não se aprender, é extremamente difícil não sofrer uma profunda transformação na nossa forma de estar e de nos relacionarmos com os outros.

Depois, há ainda um capital importante de surpresa que a figura e a obra de Manuela Silva a todo o momento nos despertam. Continuemos ainda com o exemplo da área educativa. Considerada por muitos como uma figura relativamente austera, lemos com espanto o que escreve sobre a sua concepção das finalidades da educação:

(…) factor nuclear no caminho para a felicidade que procuramos, para a realização pessoal e o desenvolvimento integral de cada cidadão responsável… Manuela Silva (2014). No Jardim do Peixe: 30, F. Betânia, sublinhado nosso]

Acrescenta ainda que, naturalmente, o conceito de felicidade individual é muito diversificado em função dos valores, perspectivas e referências individuais. E continua, referindo também que o trabalho para o Bem Comum…

deverá constituir para cada um de nós uma orientação de fundo (…) subjacente ao trabalho profissional, ao voluntariado, (…) ao modo de estar na vida (Manuela Silva (2014, op. cit.).

E aqui encontramos a articulação clara com o aspecto central da sua concepção sobre educação: formar profissionais - mas também cada cidadão enquanto tal - eticamente responsáveis, trabalhando para o bem colectivo. De tudo isto se foi dando conhecimento aos decisores políticos.

Aproveitá-lo está nas mãos destes.

Lisboa, Março de 2020