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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.42 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.34619/74k3-7s55 

HOMENAGEM

Gertrude Bell (1868-1926). A inglesa "nativa" do Oriente

Sónia Serrano*

* Mestranda em Estudos Literários, Culturais e Interartes Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 4150-564 Porto, Portugal, soniaser@gmail.com


 

“O Oriente está cheio de segredos [...], e como está cheio de segredos encontra-se cheio de surpresas fascinantes.”[1]

Gertrude Bell foi uma mulher do seu tempo. Um tempo formado sob a égide da Rainha Vitória, de regras e de princípios morais irrepreensíveis, um tempo em que a Grã-Bretanha consolidou o império colonial e o seu domínio sobre o Globo, tornando-se na mais pujante e moderna potência da época. Mas ela foi também alguém que encarnou o paradoxo de se libertar de todos os constrangimentos a que estavam sujeitas as mulheres e, num improvável contexto, em vez de se confinar ao reduto doméstico e familiar, partiu da Grã-Bretanha e fez do Médio Oriente o seu lar. O paradoxo maior reside talvez no facto de ter sido uma respeitável britânica que se tornou também numa admirada khatun[2].

Bell viveu aventuras extraordinárias em tempos extraordinários: escalou montanhas, cartografou desertos, foi íntima de xeiques, confidente de políticos e uma das principais estrategas do mapa do Médio Oriente.

Era frequente vê-la em conferências e encontros internacionais onde se decidia o futuro das nações, sendo a única mulher entre dezenas de homens. A foto tirada durante a Conferência do Cairo (1921), em que aparece montada num camelo em frente à esfinge, entre Churchill e T. E. Lawrence, é particularmente ilustrativa do poder e do prestígio de que gozava.

Nicole Kidman foi Gertrude Bell no filme Rainha do Deserto (2015), de Werner Herzog; já Tilda Swinton empresta-lhe a voz no documentário Letters from Bagdad (2016), uma boa introdução à sua vida, pensamentos e vastíssimo material de arquivo que legou.

Impressiona a quantidade de atividades que Gertrude Bell exerceu: escritora, tradutora, investigadora, historiadora, alpinista, fotógrafa, arqueóloga, cartógrafa, linguista e destacada funcionária do Estado. Em todas elas a sua prestação foi brilhante e reconhecida.

Gertrude nasceu numa família privilegiada. O pai, Sir Hugh Bell, era herdeiro da mais importante metalurgia inglesa. A morte da mãe, quando Gertrude tinha três anos, leva-a a consolidar uma fortíssima relação com o pai, que voltará a casar-se com Florence, uma figura determinante na vida de Gertrude.

Florence era uma mulher culta e educada, desenvolvendo, a par das suas obrigações domésticas, que sempre considerou as mais importantes, um trabalho social através do desenvolvimento de projetos junto dos trabalhadores da indústria do marido. Preocupando-se com as condições de vida e bem-estar dos trabalhadores, contava, nestas tarefas, com a ajuda de Gertrude, a mais velha de cinco irmãos. Esta experiência terá sido para Gertrude decisiva no seu posterior entendimento sobre as formas de governo burguesas e o papel das mulheres em casa e nas colónias.

A educação da escritora foi bastante excecional numa época em que não era habitual ver as mulheres estudar. Primeira mulher graduada em História Contemporânea na Universidade de Oxford, em dezembro de 1888 parte para Bucareste, onde um tio diplomata a acolhe e onde assiste a uma vida social mais aberta e cosmopolita do que o fechado círculo inglês.

Aproveitando o destacamento na Pérsia do tio diplomata, Gertrude parte para lá em 1892 e entra, pela primeira vez, em contacto com o deserto, o que constituirá uma verdadeira revelação para esta inglesa habituada ao clima frio e húmido e às paisagens verdejantes da sua Inglaterra natal. “Oh, o deserto em redor de Teerão! Quilómetros e quilómetros de nada, onde nada cresce. [...] Nunca soube o que o era o deserto até ter chegado aqui; é uma coisa maravilhosa de se ver...”[3].

No Irão, Gertrude desvelará vários amores, não só ao deserto e à paisagem árida, aos jardins povoados de fontes e cursos de água, à língua e à literatura persa, mas também a um homem, Henry Cadogan, secretário da embaixada britânica. É um amor contrariado pelo pai, que, não lhe vislumbrando futuro promissor, põe fim à relação, decisão que Gertrude acata. O seu infortúnio amoroso acaba de forma trágica com a morte do jovem com uma pneumonia, um ano mais tarde.

Por sugestão de Florence, e baseando-se nas cartas e no diário que mantinha, Gertrude decide publicar anonimamente Safar Nameh Persian Pictures a Book of Travel (1894). Este primeiro livro é um canto de amor ao Oriente e ao deserto, que permanecerá para o resto da sua vida.

Segue-se a publicação, em 1897, de The Divan of Hafiz, a tradução de uma antologia de poemas do persa Hafiz, evidenciando o domínio da língua persa por Gertrude. A facilidade com que acumula línguas ao longo da sua vida denota um espírito estudioso e empenhado. Será fluente em persa, árabe, turco, hebreu, francês, italiano e alemão, adquirindo igualmente algumas noções de japonês.

Por esta altura, o que interessava verdadeiramente a Bell era a viagem e o mundo novo que ia desvendando, não apenas de paisagens e lugares, mas de pessoas, de história, de arqueologia, bem como do próprio mundo que descobria nela. Numa carta escreve: “Pergunto-me se continuamos a ser a mesma pessoa quando o ambiente que nos rodeia, as associações, os conhecimentos que temos mudam? [...] Que grande é o mundo, que grande e que magnífico”[4].

Bell continua a viajar, dando duas voltas ao mundo, em 1897 e 1907. Por essa época, inicia-se numa das suas paixões, o alpinismo, na qual também revelou aptidões excecionais: a prová-lo o cume que ostenta o seu nome, Gertrudspitze, nos Alpes Suíços, por ter sido a primeira a alcançá-lo, em 1901.

As viagens que lhe deram fama e onde Gertrude recolhe todo o conhecimento sobre o Médio Oriente começam em 1900. Conta então 32 anos e parte sozinha para Jerusalém, onde vai comandar a sua primeira expedição pelo deserto. Chegará a Petra, depois de ter andado pela árida região, o que lhe dá a oportunidade de verificar as inúmeras incorreções dos mapas existentes. Percorre, ao todo, cerca de 250 quilómetros a cavalo, em 18 dias. Aprende que a sua pele clara não suporta o sol intenso, e de futuro passará a usar, sobre o chapéu, o kafiye, lenço branco tradicional, proteção mais eficaz para o rosto. Estão também lançadas as bases para a sua atividade de cartógrafa: Gertrude mapeará algumas das regiões do Médio Oriente, corrigindo as informações das cartas então existentes.

Bell fez mais cinco viagens marcantes, que a tornaram provavelmente na maior conhecedora da região, a par de T. E. Lawrence. Em 1905 parte novamente de Jerusalém para atravessar a região montanhosa e vulcânica de Jebel Druze, anda durante quatro meses pelo deserto sírio, terminando em Constantinopla. Em 1907 faz outros quatro meses a cavalo, desde Smyrna, moderna Esmirna, na costa mediterrânica da Turquia, até Binbirkilisse, para visitar locais arqueológicos. Em fevereiro de 1909 atravessa o deserto, desde Alepo até às margens do Eufrates; daí desce até Bagdad e prossegue para sul fotografando o palácio de Ukhaidir (no que se tornará um dos seus mais reconhecidos trabalhos fotográficos) e as ruínas da Babilónia e Ctesifonte, subindo depois pelas margem do rio Tigre; após cinco meses a cavalo, chega a Istambul. O dia 9 de fevereiro de 1911 marca outra partida: de Damasco, passando por Ukhaidir, Najaf e Bagdad, até chegar a Alepo. A última das suas grandes expedições, e uma das mais arriscadas, levá-la-á, em novembro de 1913, através do temido deserto da Arábia, o Nejd. Gertrude consegue chegar à cidade de Hayyil, onde, fruto das guerras entre líderes locais, acaba por ficar presa durante dez dias. Regressa a Bagdad e inicia nova travessia pelo deserto sírio até chegar a Damasco, em maio de 1914, pouco antes do eclodir da I Guerra Mundial.

É comum referir as exigências de requinte de Gertrude quando viaja e de como se faz acompanhar da melhor porcelana, mesas, toalhas, camas e até de uma banheira portátil de lona. Ainda assim, nem todas essas comodidades são capazes de combater o calor, a sede e as tempestades de areia, já para não mencionar o desconforto das viagens e o ritmo próprio do meio de transporte.

Não há, porém, qualquer dúvida de que o lugar a apaixona. Numa carta ao pai de 10 de julho de 1900, após a primeira expedição, confessa que, apesar de ter muita vontade de regressar a casa, tem também um grande desejo de voltar ao Médio Oriente: “Sabes querido Pai, voltarei aqui em breve. Não é possível mantermo-nos afastados do Oriente quando se chegou tão longe”[5].

E longe efetivamente chegara em conhecimento. Em escassos anos a sua forma de viajar pelo deserto, tomando contacto com as autoridades e os chefes locais, conhecendo as tribos e os povos, ouvindo as suas revoltas e anseios, os seus temores e aspirações, permitiu-lhe acumular um acervo de informação precioso, como conhecer os caminhos seguros, sob que autoridade se encontravam as diferentes regiões e, mais importante, quais as populações que estavam a favor dos ingleses. Muito provavelmente pelo facto de ser mulher, confiavam-lhe as informações com alguma facilidade. Relembremos que, por essa altura, a região era objeto da cobiça das nações ocidentais, sobretudo a francesa e a britânica, mas também com interesses alemães pelo meio, que assistiam ao fim anunciado do império otomano que, após a 1.ª Guerra Mundial, perderia a sua jurisdição no Médio Oriente.

Bell publica entretanto dois dos seus melhores livros, onde relata as suas viagens pela Palestina, Síria e Mesopotâmia: The Desert and the Sown (1907) e Amurath to Amurath (1911), que a tornam famosa e reconhecida como grande viajante na Inglaterra, bem como nas regiões pelas quais viaja.

Embora os livros de Gertrude contenham reflexões interiores, história de civilizações já desaparecidas, a beleza da paisagem ou a afabilidade das pessoas, a verdade é que os seus textos se vão tornando mais políticos à medida que melhor vai conhecendo a realidade que testemunha, o que tem implicações nas suas crenças sobre o poder colonial. É o caso, por exemplo, quando explica a dificuldade dos turcos em manter a estabilidade na Síria: “Sendo inglesa, estou convencida de que somos o povo que melhor poderia ter governado a Síria, com a perspetiva de um sucesso maior do que o que poderá ser alcançado por um sultão moderadamente sensato”[6].

Para Bell, a figura da mulher, enquanto símbolo do materno, educava. E os povos colonizados eram frequentemente vistos como crianças; logo fazia sentido a mulher, num espaço colonial, assumir um papel preponderante na sua administração, com os conhecimentos que tinha adquirido no âmbito do seu papel doméstico. “O Oriental é como uma criança com muita idade. Está pouco familiarizado com muitas ramificações de conhecimento que nós passámos a considerar como sendo de necessidade básica”[7].

Bell transpôs o conhecimento adquirido na sua juventude para a sua experiência colonial, dando-lhe uma dimensão política, social e cultural que tornou o seu papel no Médio Oriente único. Não fora a educação liberal e burguesa recebida na sua formação e provavelmente não teria tido a mesma capacidade de realização.

Ainda assim, por vezes, hesita sobre a utilidade das suas expedições, cujo resultado o poder colonial britânico aproveitará proficuamente em tempos de guerra; durante essas expedições, a dúvida instala-se, sobretudo quando as condições vão piorando e a exaustão não é apenas física. A 16 de fevereiro de 1914, na última e mais dura viagem pelo deserto, escreve no seu diário: “Receio bem que quando chegar ao fim não irei olhar para trás e dizer: ‘Isto valeu mesmo a pena’; o mais certo é olhar para trás e dizer ‘Que perda de tempo’”[8].

Não o foi, como Gertrude o provará em breve. Com o eclodir da I Grande Guerra, vai para França trabalhar para a Cruz Vermelha no Office for the Wounded and Missing[9], que acaba por informalmente liderar.

Entretanto, não apenas a guerra sobressaltara a sua existência, mas também o amor. Dois anos antes havia conhecido o Major Dick DoughtyWylie, oficial do exército britânico. Discreto, culto, viajado, sóbrio e bom conversador, ao contrário da maior parte dos homens que ela conhece, não se deixa intimidar pelo seu modo de estar destemido. O que começa como um encantamento mútuo acaba por resultar numa paixão jamais consumada. Dick era casado e, pelo teor das cartas de Bell, é possível concluir que a educação moral a que fora sujeita não lhe permitia vencer o constrangimento de se entregar em plenitude ao homem casado por quem se apaixonara. Outro paradoxo em Bell: não hesita em enfrentar as mais duras dificuldades e perigos num deserto indómito, mas hesita perante o corpo amado. Numa das cartas que lhe escreve, após o encontro, confessa-lhe: “Algum dia tentarei explicar-te - o medo, o terror - oh e julgaste tu que eu era corajosa. Entende-me: não é o medo das consequências - nunca pensei nisso nem por um segundo. É o medo de algo que não sei… deves saber o que é porque te falei disso. Cada vez que surge em mim eu queria varrê-lo para um lado… Mas não te conseguia dizer, exorciza-o. Não conseguia”[10].

E nunca terá oportunidade de o fazer, pois Dick morrerá semanas depois deste encontro, em abril de 1915, na terrível batalha de Gallipoli. A morte prematura do ser amado põe cobro abrupto à incipiente relação, tragédia que a deixa sentimentalmente devastada. As cartas que lhe escreveu, em cerca de ano e meio de relação, revelam-nos uma mulher apaixonada, direta e frontal, sobre a qual se reconhece maioritariamente o serviço público que prestou, relegando para segundo plano o turbilhão da sua vida privada. “Preenchi todos os lugares ocos do mundo com o meu desejo por ti”, “Não consigo dormir - não consigo dormir. É uma da manhã. Tu e tu e tu estão entre mim e tudo o resto… longe dos teus braços não há descanso”[11].

Gertrude não terá muito tempo, face à azáfama dos seus dias, para o luto. Em novembro de 1915 é chamada ao Cairo para trabalhar para os serviços secretos britânicos. A Coroa pretende tirar partido do conhecimento que tem sobre a influência alemã na Arábia, sob domínio turco, já que o Império otomano havia alinhado pela Alemanha.

É a única mulher ao serviço, e entre os colegas conta-se um ainda anónimo T. E. Lawrence com quem se tinha cruzado havia uns anos numas escavações arqueológicas. É um Lawrence ainda totalmente incógnito que se cruza com uma Gertrude já reconhecida e celebrada como viajante e escritora e que havia estabelecido a sua reputação e fama como dama do deserto.

Uma das questões estratégicas que se colocava era saber se os britânicos deveriam apoiar uma revolta árabe que pusesse fim ao domínio turco da região. Na altura, como agora, a região era de importância crucial para uma potência como a Grã-Bretanha. Bell, fiel súbdita da Coroa, procura uma espécie de compromisso: por um lado, respeitar a autodeterminação do povo árabe, por outro, servir os interesses do seu Estado. A sua perspicácia para avaliar a situação conforme vai evoluindo é aguda. Num texto encontrado nos seus arquivos afirma: “A união política é um conceito pouco familiar para uma sociedade ainda muito marcada pelas suas origens tribais e que mantém no seu seio elementos tão fortemente perturbadores provenientes da organização tribal… As condições da vida nómada não possuem qualquer analogia com as das áreas mais cultivadas, e com muita frequência os interesses diretos das tribos são incompatíveis com os das áreas mais enraizadas”[12].

O certo é que os dois funcionários mais notáveis dos serviços secretos britânicos no Cairo, Bell e Lawrence, partilhavam a ideia, que se ia sedimentando à medida que os acontecimentos se desenrolavam, de que era necessário apoiar a autodeterminação árabe, o que contrariava os sentimentos expansionistas da Índia britânica e do seu vice-rei, que via com bons olhos a anexação da Mesopotâmia ao seu território, substituindo o império otomano pelo britânico.

A situação é de feroz conflito armado com os turcos, o que levará Lawrence, em palavras impiedosamente atuais, a escrever, num artigo no Sunday Times, de 22 de agosto de 1920: “O povo da Inglaterra foi guiado na Mesopotâmia para uma armadilha da qual será difícil de escapar com dignidade e honra. As coisas são bastante piores do que nos contaram, a nossa administração mais sangrenta e ineficiente do que o público sabe”.

A convite do próprio vice-rei, que deixará impressionado com a sua “inteligência masculina”, Bell visita a Índia. O vice-rei, Charles Harding, propõe a nomeação da escritora como agente de ligação entre o Cairo e Deli, tendo como base acidade de Basra, onde, naconfluência entre Mesopotâmia, Kuwait, Arábia e Pérsia, se travavam difíceis batalhas com o exército turco. Bell vai para Basra em 1916 e, um ano mais tarde, é nomeada Oriental Secretary. Quando os turcos são finalmente derrotados e abandonam Bagdad, em maio de 1917, vai viver para esta cidade, onde permanecerá até à sua morte.

A vida de Bell foi intensa e repleta de acontecimentos, e a nível político marcou decisivamente a geografia do Médio Oriente, tal como o conhecemos agora. Bell participou como uma das peritas mais notáveis sobre esta região do Globo na Conferência de Paris de 1919, nos escombros da I Grande Guerra, bem como na Conferência do Cairo de 1921, convocada por Churchill, na altura Secretário de Estado das Colónias, para decidir sobre a política britânica na região. O conhecimento que possui leva-a a afirmar nesta Conferência, em palavras quase premonitórias: “Estão a fazer uma tal trapalhada no Médio Oriente, que antecipo irá ficar muito pior do que depois da guerra - exceto a Mesopotâmia, que talvez consigamos subtrair do caos generalizado”[13].

A sua influência, persistência e visão levam-na a apoiar, no que será secundada por Lawrence, o jovem Faisal, terceiro filho do Sharif de Meca, como a figura que poderia unir a Mesopotâmia. Líder respeitado, herói de guerra, cuja linhagem podia ser traçada até ao Profeta e, muito importante, simpatizante dos ingleses a quem se havia aliado na revolta contra os turcos, Faisal era o homem que poderia liderar e unir a revolta árabe. Com o pragmatismo que o caracterizava, Churchill aceitará o caminho proposto por Bell, vendo que “o filho de Sharif, Faisal, oferece a esperança da melhor e mais barata solução”.

Por esta altura, Gertrude já havia publicado o texto que é hoje considerado o culminar do seu conhecimento da região, Review of the Civil Administration of Mesopotamia. Recebido com uma aclamação entusiasta no Parlamento Britânico, o texto levará a também pragmática Bell a afirmar numa carta à mãe: “Acabo de receber a carta da Mãe a dizer que há um fandango sobre o meu relatório. A linha geral adotada pela imprensa é a de que é absolutamente notável que um cão se consiga levantar nas patas traseiras - i.e., uma mulher escrever um relatório. Espero que cessem essa fonte de admiração e prestem atenção ao relatório em si, vai ajudá-los a entender o que é a Mesopotâmia”[14].

A sua visão foi aceite, e a 23 de agosto de 1921 Faisal foi coroado rei do Iraque perante uma assistência de 500 convidados. Gertrude tornara-se uma das suas mais fiéis conselheiras, bem como amiga íntima e aliada. “Saftwa Pasha pediu-me que aparecesse no palácio tantas vezes quantas fosse possível, já que era evidente que eu era a única pessoa que realmente amava o Rei ou a quem o Rei realmente amava”[15].

Entretanto, o trabalho que a manterá imparável e incansável durante os últimos anos começa a diminuir: “A política está a desaparecer (tal como deveria acontecer) para dar lugar às grandes questões administrativas, nas quais não tenho interesse e nas quais não sou boa”[16].

Continuando a viver em Bagdad, e a trabalhar de perto com o Rei, Bell é nomeada por este Diretora de Antiguidades, com o fim de preservar o vasto e rico património arqueológico mesopotâmico. Regressando à sua paixão pela arqueologia, redigirá a lei de antiguidades que procura acautelar os interesses iraquianos, sem descurar os interesses internacionais.

Em 1926, Gertrude é uma personalidade admirada e reconhecida, confidente e consultora de reis, presidentes e dirigentes mundiais. Vita Sackville West dará um admirado testemunho dela, quando a visita na sua casa de Bagdad nesse ano e a encontra na azáfama do seu último projeto: o Museu do Iraque, que abrirá a sua primeira sala a 14 de junho desse ano. Um mês mais tarde, Gertrude é encontrada morta na sua cama, dois dias antes de fazer 58 anos. Na mesa-de-cabeceira uma embalagem vazia de comprimidos para dormir.

Na última carta que escreve à mãe, em 26 de maio de 1926, afirma: “Não vejo com clareza o que vou fazer, mas é claro que não posso ficar aqui para sempre”. Teria medo do retorno, ela que embarcara nessa viagem sem fim? O espólio deixado por Bell é vastíssimo - mais de 1600 cartas, cinco livros de viagem, uma tradução de poesia, diários, relatórios e cerca de 7000 fotos, já que foi também uma excelente fotógrafa, procurando documentar e registar em película tudo o que ia vendo nas suas viagens, em especial o património arqueológico.

O registo fotográfico que fez da região, bem como as suas cartas e diários, são estudados por historiadores e arqueológos, tendo adquirido uma importância acrescida depois da destruição sofrida com a guerra civil na Síria.

Apesar do seu envolvimento na Liga Nacional das antissufragistas, por considerar que na sua maioria as mulheres não estavam preparadas para o voto, foi sempre uma mulher independente, opinativa e de fortes convicções. E foi uma firme defensora dos direitos das mulheres, como mais tarde evidenciou, ao propor a educação das jovens iraquianas e ao promover a primeira escola feminina na capital do Iraque.

Foi enterrada em Bagdad, ficando para sempre na cidade que tanto amou, ela que afirmou sentir-se como se tivesse nascido e crescido no deserto.

30 de setembro de 2019

 

[1] Gertrude Bell, Persian Pictures, Anthem Press, Londres, 2005, p. 13 (Tradução da autora).

[2] Forma de tratamento utilizada no Oriente destinada a pessoas ilustres e que evidencia respeito; significa rainha ou imperatriz.

[3] Gertrude Bell, Uma mulher na Arábia, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2017, p. 57.

[4] Georgina Howell, Daughter of the Desert - The remarkable life of Gertrude Bell, Pan Books, Londres, 2007, p. 53 (tradução da autora).

[5] Carta de GB ao pai, 10 de junho, 1900, Gertrude Bell Archive (tradução da autora).

[6] Gertrude Bell, Uma mulher na Arábia, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2017, p. 88.

[7] Ibidem, pp. 85-86.

[8] Ibidem, p. 106.

[9] Gabinete dos feridos e desaparecidos.

[10] Georgina Howell, Daughter of the Desert - The remarkable life of Gertrude Bell, Pan Books, Londres, 2007, pp. 160-161 (tradução da autora).

[11] Gertrude Bell, Uma mulher na Arábia, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2017, p. 127.

[12] Georgina Howell, Daughter of the Desert - The remarkable life of Gertrude Bell, Pan Books, Londres, 2007, p. 267 (tradução da autora).

[13] Georgina Howell, Daughter of the DesertThe remarkable life of Gertrude Bell, Pan Books, Londres, 2007, p. 380 (tradução da autora).

[14] Carta de GB aos pais, 17 de janeiro, 1921, Gertrude Bell Archive (tradução da autora).

[15] Carta de GB ao pai, 16 de julho, 1922, Gertrude Bell Archive (tradução da autora).

[16] Carta de GB ao pai, 26 de maio, 1926, Gertrude Bell Archive (tradução da autora).