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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.42 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.34619/6yqf-ag17 

NOTA DE ABERTURA

Isabel Henriques de Jesus*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal misabeljesus@fcsh.unl.pt


 

Dedicada a Gertrude Bell, esta edição de Faces de Eva tem uma clara intenção de homenagear a mulher viajante, política, arqueóloga, escritora e fotógrafa, mas pretende também aludir à viagem, enquanto aventura humana na busca do desconhecido.

Se aos homens sempre foi reconhecido o direito ou a necessidade dessa busca, nas mulheres enaltecia-se a persistência da espera e a capacidade de tornear as dificuldades de um dia-a-dia que, por ser vivenciado na esfera privada, se afigurava previsível e menor, face à coragem e à exaltação do confronto com o misterioso desejável. Esta dupla tipologia verificou-se mais nitidamente em determinados momentos históricos, como as viagens de exploração e de expansão territorial ou as guerras, e foi contada em grandes narrativas literárias. O género surgia claramente demarcado na diferença posicional entre quem ia e quem ficava, mas talvez o conflito entre a casa, porto seguro, e a viagem de destino incerto ou de aventura seja comum ao ser humano, podendo a intensidade variar de acordo com os contextos e com as motivações.

Enorme motivação terá tido a francesa Alexandra David-Néel (18681969) que, embora casada, mas apaixonada pelo Oriente, para lá viajou, tendo regressado catorze anos mais tarde. No fim da vida, célebre pela aventura vivida, deu conferências e escreveu as suas memórias de viagem. Outros nomes de mulheres se evidenciaram pela coragem e pela liberdade de espírito, encetando viagens sozinhas, em épocas em que esse comportamento estava longe de apresentar a normalidade dos nossos dias.

Sejam quais forem as características concretas da viagem, geográfica ou interior, trate-se da dimensão física da aventura ou da dimensão introspectiva do ser, a viagem possibilita sempre uma reconstrução do sujeito através da relação com os outros ou com os outros de si mesmo. A viagem emancipa, promove adultícia, permite o confronto entre o que se julga conhecido e o outro ignorado e é fonte de enriquecimento mútuo. Nestes casos, a viagem conta porventura mais do que o destino.

Na realidade ou na ficção, encontramos recortes distintos desta ideia. Conheci um homem que só habitava lugares de passagem. A sua bagagem limitava-se a um pequeno saco com alguma roupa, um computador que lhe garantia o sustento e uma prancha de surf com que sulcava as ondas dos vários mares por onde transitava.

Na ficção, recordo o diálogo, dominado pelo longo monólogo de Eulália: “Que posso eu dizer-te, Jerónimo? Não gosto das cidades, dos locais, gosto do espaço entre as cidades, do percurso entre os locais que determinamos atingir, das curtas paragens ao longo do caminho, da sensação de viagem” (Morais, 1969, pp. 127-128).

A esta celebração da viagem como percurso, enquanto deleite para os sentidos, podendo o destino estar ou não premeditado, pode contrapor-se uma outra viagem programada e previamente definida. Em qualquer dos casos, as vivências com que os novos espaços são preenchidos correspondem a experiências únicas, individuais e subjectivas. Se a imaginação é, em muitos casos, o incitador da partida, o percurso e a chegada despertam emoções e desafiam a estabilidade individual, pelo confronto com a novidade dos lugares e dos outros seres. A necessidade de partilha impõe-se e surge frequentemente através de memórias ou de relatos dessas viagens. É o caso de Gertrude Bell que, através das fotos com que fixou momentos únicos, dos diários em que registou acontecimentos e exprimiu emoções e das cartas que escreveu para familiares e amigos, permitiu que se reconstruísse a sua extraordinária vida de aventuras e de engenhosa sabedoria social e política. Ao mesmo tempo, talvez todos esses registos tenham sido uma forma de unir os espaços, isto é, de, através deles, compor uma espécie de geografia dos afectos, articulando a casa, porto seguro, com os novos territórios de aventura, de instabilidade e de incerteza.

Ao longo desta edição de Faces de Eva encontraremos referências à viagem, quer de um ponto de vista mais teórico, quer a um nível mais pessoal e vivenciado. Pelo nosso lado, terminou a viagem da edição deste número, uma viagem em equipa que sempre nos enriquece pela troca e pela humildade no reconhecimento da diferença e do valor dos outros com quem partilhamos dúvidas e saberes. O próximo número já está encetado e, com ele, viajaremos por novos espaços e em outras companhias.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Morais, G. P. (1969). Jerónimo e Eulália. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural.         [ Links ]

 

Nota: Excepcionalmente, esta edição conta com dois “diálogos”. Um, a quem devíamos a publicação, há já algum tempo; o outro, porque exprime as vivências de dois viajantes que generosamente connosco partilharam ideias e experiências.