SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 númeroEXTRAMáscaras da VenerePara fazer uma obra de arte, é preciso construir uma casa? Algumas reflexões acerca da obra de Maria José Oliveira índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa oct. 2019

 

ESTUDOS

Corpos-identidades-géneros (all) ready-made

(All) ready-made bodies-identities-genders

Rafael Alvarez*

* Universidade de Évora, Centro de História de Arte e Investigação Artística, 7000-809, Évora, Portugal, BODYBUILDERS | Dança Contemporânea & Performance, Lisboa, Portugal, bodybuilders321@gmail.com


 

RESUMO

Partindo do enunciado lançado pela lógica duchampiana, analisam-se diferentes estratégias de construção de identidades de género e de corpo, convocando os dispositivos de subjectividade e alteridade de um conjunto de quatro artistas - Andy Warhol, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura e Madonna, problematizando sobre o modus operandi que parte das suas obras e discursos de auto-representação/ auto-referencialidade materializam. Sob esta perspectiva, corporalizam-se projectos estéticos, éticos e políticos de subversão, ruptura, transformação, resistência e alternativa aos regimes hegemónicos que encerram o binómio corpo-género numa lógica mono-discursiva. Contra este monopólio heterocêntrico, estes corpos constroem-se ao espelho reflectindo uma colecção de outros corpos e paisagem de si mesmos.

Palavras-chave: ready-made; corpo; alteridade; identidade; género.


 

ABSTRACT

Starting from the statement launched by Duchampian logic, different strategies for the construction of gender and body identities are analyzed, calling on the devices of subjectivity and otherness of a group of four artists - Andy Warhol, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura and Madonna, discussing the modus operandi that part of their works and discourses of self-representation / self-referentiality embody. From this perspective, aesthetic, ethical and political projects of subversion, rupture, transformation, resistance and alternative to the hegemonic regimes that enclose the body-gender binomial in a mono-discursive logic are embodied. Against this heterocentric monopoly, these bodies are constructed in the mirror reflecting a collection of other bodies and landscape of themselves.

Keywords: ready-made; body; otherness; identity; gender.


 

 

A presente reflexão problematiza sobre o modus operandi de um conjunto de quatro artistas - Andy Warhol, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura e Madonna, focando em particular nos cruzamentos e intersecções que parte significativa das suas obras e discursos de auto-representação/auto-referencialidade corporalizam.

Na realidade, a proposta e o desafio aqui lançados para reflexão são o de proporcionar um encontro e um diálogo entre os artistas citados juntando a esta conversa Duchamp e Foucault.

Partindo do enunciado inaugurado pela lógica duchampiana, interessa-me analisar as diferentes estratégias presentes na construção de identidades de género e nos dispositivos de subjectividade e alteridade, em cujo conjunto de obras convocadas se destaca um corpo ready-made. Sob esta perspectiva, - corpo, identidade, género e auto-representação - materializam-se na construção de projectos estéticos, éticos e políticos de subversão, ruptura, transformação, resistência e alternativa aos regimes hegemónicos que encerram o corpo-género numa lógica mono-discursiva. Contra este monopólio heterocêntrico, estes corpos/identidades/géneros constroem-se ao espelho. O corpo-imagem-obra de cada um destes artistas é, em si mesmo, um desejo de construção de outro corpo (um hipercorpo e uma utopia de corpo), lançando o mote para pensar e debater os corpos - que aqui nos trazem a este debate - corpos de resistência, de resiliência e de alternativa e transformação.

Estes corpos em construção funcionam como uma colecção de outros corpos e paisagem de si mesmos, actuando (entenda-se performando) sob a lógica de Duchamp, isto é, são corpos (all) ready-made. São corpos desenhados a partir da tela em branco e coreografados a partir do palco vazio em que constroem e apresentam os seus one women/one man shows.

Através destas coordenadas, lançamos para debate um corpo-identidade-género que vê e se faz representar através de um espelho que constrói para si mesmo, um corpo que se faz representação de mundo, desenhando no corpo e no seu duplo uma colecção de outros corpos e outras identidades. Os criadores revisitados contribuem para o estilhaçar de uma ideia hegemónica de mono-identidade e género, eurocêntrica, heterocêntrica e normativa.

Estes corpos/identidades heterotópicos habitam um espaço (o espaço da criação artística/o espaço da moldura/frame), que se constrói a partir de múltiplas camadas de significação ou de relações a outros lugares e a outros corpos, são corpos de alteridade. Frente aos espelhos destes criadores, podemos ser quem quisermos. O desafio criado por estas máscaras é também o desafio de pensar/questionar que lugar, que género e que papel queremos assumir neste mundo de corpos, imagens e simulacros.

Convoca-se aqui o debate inaugurado por Foucault em torno da problemática do lugar do outro e de um corpo aparelhado pelas hierarquias do poder disciplinar e a sua amplificação gerada pela perspectiva crítica das teorias feministas de primeira e segunda geração, com Hartsock ou Butler, para mencionar apenas algumas, concretamente pela introdução nesta discussão dos factores de inclusão-exclusão e na afectação que estes factores têm face à forma como as relações de poder se determinam na construção do sujeito e do lugar do outro. Mas também na perspectiva avançada por Butler, da construção das identidades de género fora do monopólio do binário masculino-feminino e nas estratégias de uma construção social de género como performance.

As questões propostas por esta breve reflexão estão ancoradas em pistas lançadas pelos autores acima identificados, a que se juntam outros, como o contributo de Boaventura Sousa Santos (2000) para pensar a condição de uma economia de alguns corpos sem lugar (à margem da margem), através daquilo que o autor identifica de fascismo social e que informa as hipóteses colocadas por esta reflexão de um corpo auto-representado como lugar transitório de pluralidades.

Propõe-se uma revisitação do arquétipo construído por Norma Jean e o seu duplo, Marilyn Monroe, que, mais do que a loira platinada, é tal como os criadores revisitados, o estilhaçar de uma ideia hegemónica de mono-identidade, eurocêntrica, heterocêntrica e normativa.

Será este território da criação artística auto-referencial, um lugar para reflectir um corpo de possibilidades, ou um palco espelhado de cópias, simulacros e fantasmas?

Quem é o autor deste corpo próprio que vê, percepciona e representa o mundo das imagens (de outros corpos), destruindo as barreiras e desviando o espaço dos corpos afastados do centro e da visibilidade?

Estes espelhos são um mero exercício de egolatria ou existem outros corpos do outro lado do espelho?

E se um corpo auto-representado/auto-recriado fosse um manifesto de liberdade(s)?

Os corpos que aqui se questionam são corpos de ruptura, são corpos de alternativa, são, para usar aqui as palavras de Jean-Luc Nancy, “forma da forma, são um desenho, um contorno, uma ideia” (2004, p. 15). Nestes auto-retratos, nestas auto-representações, trata-se de questionar não aquilo que vemos nas imagens apresentadas, mas antes aquilo que não conseguimos ver ou cujas imagens parecem evocar. São corpos temporariamente invisíveis que parecem dar lugar ao protagonismo de “outros” corpos.

de reflexão propõe um corpo que sendo o centro de acção/representação/imagem, é antes de mais protagonista de uma interpelação/interrogação do olhar a que está sujeito. Ao empoderarem/enfatizarem a sua própria imagem, conquistam um lugar de visibilidade para os corpos a que pretendem dar corpo/voz/imagem questionando a sua condição e invertendo papéis. Ao mascarar o corpo através do espelho estes criadores reiteram a sua posição de corpo-objecto, observado e desejado, invertendo as relações de poder/visibilidade, posicionando-se culturalmente, esteticamente e politicamente face a ele e simultaneamente provocam um posicionamento crítico/político/reflexivo no espectador.

Estes corpos re-apresentados/auto-representados convidam-nos a criar as nossas próprias narrativas e dramaturgias do olhar, tornando visível o lugar e a condição de “outro”, capitalizando o seu estatuto fora do monopólio normativo do pensamento programático neoliberal, deslocando a margem para o centro da imagem. As interrogações-motor aqui lançadas conduzem-nos a analisar nestes corpos, a presença de um olhar transgressor que se perspectiva gerador de transformações de ordem estética, ética e político-social.

Há nestes criadores uma vontade de corporalizar um pensamento-acção-política. Uma tentativa que parece ensaiar e dar corpo/imagem às heterotopias de Foucault (2009 [1966]) (no seu conceito de geografia humana hétero=outro + topia=espaço entendendo o espelho como heterotopia de ilusão unindo realidade e não-realidade), conquistando um corpo fora dos mecanismos de controle um corpo de resistências e batalhas.

Estes corpos funcionam em condições não-hegemónicas semelhantes àquelas avançadas pelo pensamento foucaultiano. Este corpo heterotópico habita um espaço (o espaço da criação artística/o espaço da moldura/frame), que se constrói a partir de múltiplas camadas de significação ou de relações a outros lugares e a outros corpos, são corpos de alteridade. Antes de ser corpo, estes corpos são imagem, representação e vontade de transformação do mundo. Estes corpos subvertem e desarmam estas estruturas de poder, são corpo como campo de batalha, como nos diz Barbara Kruger na sua obra Untitled your body is a battleground de 1989. Através de um jogo de cópias, máscaras e espelhos introduzem a hipótese de olharmos o mundo pela lente do “corpo”. Estes são corpos que introduzem uma ideia de identidade e género não-exclusiva e que exploram o território das imagens para fazer “política” através do seu corpo num jogo de semelhanças e diferenças, propondo um cenário alternativo que possa funcionar como contrapoder e resistência ao pensamento de via única.

Estes corpos/identidades ready-made revisitam a herança fundadora do gesto radical de Duchamp (que é gesto de rompimento e revolução mas também gesto de resistência/contrapoder aos cânones da Arte). Tomamos de empréstimo o seu conceito de ready-made e das estratégias de reapropriação que projecta no processo de criação e de obra feita.

Estes princípios de subversão mobilizados por Duchamp estão presentes nesta hipótese aqui exposta da construção de um corpo ready-made a partir da qual se interroga e problematiza parte significativa da obra de auto-representação deste conjunto de criadores. Princípios estes que podem ser identificáveis em concreto no universo pop de Warhol e na sua “armadilha bipolar” de uma visão democrática da obra de arte e relativização do estatuto do artista, e simultaneamente na criação de uma estratégia de tornar mediática e icónica a sua própria identidade. Presentes igualmente nas personagens e máscaras que Sherman encena a partir de uma deslocação crítica do olhar masculino (male gaze) face ao lugar e papel das mulheres na história (a mulher como “outro”). Ou ainda nas estratégias de mimetização e apropriação do monopólio e acervo de imagens e figuras de um mundo ocidental, mono-identitário e heterocêntrico operado pelo “filho conceptual de Warhol” - Morimura (copio, logo existo). De igual modo, encontramos na estratégia pop de Madonna este corpo ready-made, presente no jogo de subversão e empoderamento do corpo do desejo e na capitalização do corpo marginal, dando protagonismo ao espaço das minorias no contexto mediático do show-business.

Ao colocarem e mimetizarem o lugar do espectador no domínio do masculino com recurso a uma visão irónica presente nas sua máscaras miméticas, obrigam-nos a proceder a uma análise crítica e a um comentário sobre o que nos é dado a ver e, por conseguinte, operam de forma invisível numa destruição e apagamento desse mesmo olhar opressor do masculino destituindo-o de poder.

As suas imagens simbólicas e conceptuais intervêm através da justaposição de diferentes subtextos que aparecem numa mesma imagem, numa mesma mulher, que fala em nome das “outras” mulheres.

Cindy Sherman como Madonna, mas também os outros criadores citados, parecem investir nos seus processos de recriação de identidades femininas desenhadas a partir de si mesmas, como agentes de uma política corporal de empoderamento das mulheres e, por extensão, de uma validação de um corpo não-normativo assente nos valores da pluralidade e da diversidade humana.

Em ambos os casos, estas mulheres e homens artistas constroem através dos seus espelhos criativos novos imaginários para uma feminilidade/ masculinidade que não é monocromática, nem mono-discursiva, muito menos mono-identitária.

A forma como vivemos e podemos transformar as nossas realidades, agindo mais do que punindo, intervindo mais do que vigiando, isto para usar o modelo de ação-pensamento do projecto feminista, surge-nos essencial e urgente na tarefa de transformação do novo (velho) mundo ainda na sombra do pensamento de Foucault e Arendt.

Destaca-se um ponto principal neste debate afirmando e reivindicando que é, antes de mais, essencial apagar este falso “nós”, desmontando-o na sua evidente multiplicidade e diversidade do mundo visto dentro e fora das margens, contra um discurso totalitário e uma ideia continuamente propagandeada de um homem universal. Se, por um lado, assumimos que vivemos num mundo de possibilidades, num caleidoscópio de realidades múltiplas e paralelas, também é impossível fugir ao muro que se ergue frente às desigualdades, à intolerância, às novas democracias totalitárias e aos novos nacionalismos, ao capitalismo selvagem e à morte lenta da social-democracia no espaço europeu. Constatar que o programa feminista, a par da leitura marxista do mundo parece afirmar-se (ainda) como um enorme capital de transformação, é indiscutivelmente reconhecer que o território da pós-modernidade lançou os dados a esta possibilidade de questionar o lugar do sujeito. Reposicionando o lugar do outro à luz (ou na sombra) da qual convidamos a olhar os corpos destes quatro artistas formulados a partir de uma construção artística/social assente numa lógica de emancipação, indignação e rebeldia, num processo de inscrição e deslocação do lugar do sujeito-outro para fora do monopólio de uma sociedade patriarcal e eurocêntrica de vigência hegemónica.

Frente às imagens apresentadas por estes criadores, o espectador tem a liberdade de projectar as suas próprias leituras e desejos face ao que percepciona, espelhando as suas narrativas pessoais e as suas próprias formas de ver o mundo através das ficções reais propostas e encenadas por estes criadores.

Frente a estes espelhos podemos ser quem quisermos ser, como num mundo (utópico?) fora dos mecanismos de controlo. No teatro e na tela, como na vida, assumimos posições que são também formas corporais de experienciar a vida e que acabam por se tornar decisões políticas. O desafio das máscaras e destes corpos é também um desafio para pensar (as minorias e a diversidade humana) o mundo de mulheres e homens e que lugar queremos assumir nesse mundo - reproduzindo clichés e desigualdades ou defendendo a pluralidade e a liberdade própria da conquista da modernidade, mas ensombrada pelo sistema neoliberal do capitalismo global que nos venderam como conquista da modernidade. Estes artistas dizem-nos que há alternativas para sermos a “outra” mulher. O desafio lançado por estas máscaras é também o desafio de pensar/questionar que lugar e que papel queremos assumir neste mundo de corpos e imagens.

Será o território das obras destes criadores a possibilidade de reflectir nestes espelhos, um corpo de possibilidades, um caleidoscópio de identidades ou um palco espelhado de cópias, ausências e simulacros? O que está para lá do espelho, quem está por trás do espelho? Quem está ao espelho? O espelho revela em nós um corpo estrangeiro em nós mesmos, um mundo imaginário que se constitui realidade colectiva. Imaginar o mundo, espelhando o meu mundo, é em si uma forma de existência.

Face a um território de geografias marginais de um corpo-outro expropriado do seu próprio corpo, como actuar fazendo a inscrição desses corpos num corpo comum?

Como reinscrever estes corpos no discurso do corpo? Como corporalizar a diferença e o lugar de minoria transformando o próprio lugar da diferença?

É sobre este jogo das diferenças e imitações jogado por corpos e por sombras que estes artistas dão corpo ao corpo - deslocando a periferia para o centro da imagem transportando em si outros corpos, que ao espelho ensaiam o espectáculo de um corpo que é narciso, é máscara, é fantasma, é utopia, é mundo, é Marilyn do outro lado do espelho.

 

 

A blond ambition que ecoa nos trabalhos do conjunto destes quatro artistas constrói-se através de um corpo de espelhos, máscaras, sombras e fantasmas trazidos à cena/tela em forma de manifesto pós-género de alteridades, humanidades, liberdades e afectividades - uma revolution of love([1]).

People won´t stop calling me a mirror.

And if a mirror looks into another mirror, what will it find when it looks?([2])

I wanna be loved by you, Just you and nobody else but you([3])(?)

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Foucault, M. (2009 [1966]). Le corps utopique, les hétérotopies. Paris: Nouvelles Éditions Ligne.

Nancy, J.-L. (2004). Cinquenta e oito indícios sobre o corpo. Revista de comunicação e linguagens: Corpo, técnica, subjectividades, 33, pp. 15-24.

Santos, B. S. (2000). A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento.         [ Links ]

Warhol, A. (1975). The philosophy of Andy Warhol ( from A to B and back again). New York: Harcourt Brace Jovanovich.         [ Links ]

 

[1] Madonna & Meisel, Steven, Secretprojectrevolution, pub. em http://www.artforfreedmon.com,2013.

[2] Warhol, Andy, The philosophy of Andy Warhol: From A to B and back again, 1975.

[3] “I wanna be loved by you”, canção composta por Herbert Stothart e Harry Ruby, letra de Bert Kalmar, integrando o musical de 1928 “Good boy”. Amplamente mediatizada pela icónica interpretação de Marylin Monroe no filme musical de Billy Wilder - “Some like it hot”.