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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa out. 2019

 

ESTUDOS

A necropolítica e as resistências no discurso pictórico-político de Adriana Varejão

The necropolitics and as resistances in the pictorial-political Adriana Varejão’s discourse

Atilio Butturi Junior*

* Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Linguística, 88040-900, Santa Catarina, Brasil, atilio.butturi@ufsc.br


 

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar as intersecções entre gênero, colonialidade e raça no discurso pictórico da artista brasileira Adriana Varejão. O corpus é composto de imagens da série Terra incógnita, problematizadas segundo a ordem da biopolítica e da necropolítica, dispositivos que se produzem sob a égide do governo, das disciplinas e da violência. A hipótese é que Varejão inaugura uma heterotopologia estético-política, ancorada em estratégias de canibalismo e resistência que colocam em xeque, de uma perspectiva diaspórica, as corporalidades femininas e racializadas coloniais.

Palavras-chave: necropolítica, Adriana Varejão, colonialidade, gênero, racismo.


 

ABSTRACT

This work aims to analyze the intersections between gender, coloniality, and race in the pictorial discourse of the Brazilian artist Adriana Varejão. The corpus comprises images from the Terra incógnita series, problematized according to the order of biopolitics and necropolitics, apparatuses that are produced under the aegis of government, disciplines and violence. The hypothesis is that Varejão inaugurates an aesthetic-political heterotopology, anchored in strategies of cannibalism and resistance that challenge, from a diasporic perspective, the colonial feminine and racialized corporalities.

Keywords: necropolitics, Adriana Varejão, coloniality, gender, racism.


 

1. INTRODUÇÃO

Em O corpo utópico, Michel Foucault discorre sobre a corporalidade como topia implacável, lugar de produção de todas as utopias possíveis (de um apagamento dos corpos, de uma transcendência da corporalidade). O corpo funcionaria como embreante primeiro e condição de toda linguagem, mas ganharia outras densidades diante da alteridade e no amor: “[...] fora da utopia, com toda a densidade, entre as mãos do outro” (Foucault, 2013, p. 16). É justamente na desordem das heterotopias rondando a topologia que a resistência e o perigo do fora-da-norma e do fim da linguagem espreitam. O sonho utópico, então, passa a ser a ambiguidade de um aqui, mas somente na condição de recriação de outros espaços, de uma heterotopologia no interior dos dispositivos e segundo uma relação agonística no interior dos regimes de verdade.

Neste artigo, parto do conceito de heterotopologia - como possibilidade de resistência e segundo a ordem da ambiguidade e da hibridização - para relacioná-lo às problematizações acerca da modernidade e da colonialidade. Dessa potência de transformações e de sua positividade, volto-me para sua materialização no artefato artístico. Dessa perspectiva, apresento o objeto deste escrito, a saber: a série Terra incógnita, produzida pela artista plástica brasileira contemporânea Adriana Varejão a partir da década de noventa do século XX. Meu objetivo é traçar uma análise dos discursos de Varejão, observando seu funcionamento sob a égide de uma leitura necropolítica (Mbembe, 2011), atendando para as relações possíveis entre colonialidade, racismo e gênero.

2. COLONIALIDADE, RACISMOS E GÊNERO

Inicio a discussão com os vértices existentes entre governo, biopolítica e racismo, fundamentais para este artigo. Cabe retomar, inicialmente, o problema da governamentalidade. Foucault (2010) ensina que entre os séculos XVI e XVIII a Europa passava por um processo de assunção das “artes de governo”. Teria sido o problema da população um dos responsáveis pelo que o francês chama de “desbloqueio” da problemática do governo. Ela permite não apenas a modificação do foco - a família passa a ser lida a partir da população -, mas exige que todas as ações tenham por fim a vida da população. Para Foucault (2010), a Economia Política passaria a existir justamente como um dispositivo de saber-poder cujos saberes e cálculos estariam voltados para essa população. Uma governamentalização do Estado, portanto, que atende aos desígnios da biopolítica, entendida como um conjunto de discursos, estratégias e práticas que se voltam tanto para o corpo individual, em formas disciplinares, quanto para o corpo social, em forma de regulamentação da população (Foucault, 2010).

Este governo sobre a espécie, baseado no cálculo e na estatística, é um poder sobre a vida. Conforme Foucault, a governamentalização do Estado estaria intimamente relacionada à desqualificação da morte, expulsa dos limites do poder. Se o poder soberano era caracterizado por sua capacidade de fazer morrer, o Estado biopolítico e suas técnicas de governo reúnem dispositivos de segurança, cuja função é fazer viver. No interior dessas modificações, a saúde e a doença vão ter seus sentidos recompostos. Todavia, o problema da morte permanecerá em aberto: como permanecer excluindo tirando a vida numa sociedade em que a morte aparece como um limite? Para Foucault (2010), a resposta reside nos racismos de Estado, na produção de certas formas de subjetividade “matáveis”: anormais, perigosos, degenerados. Em nome da segurança da população, novas tecnologias de manutenção da saúde e da expulsão - [...] a morte política, a expulsão, a rejeição, etc” (Foucault, 2010, p. 216, grifos nossos) - da vida “biologicamente inferior”.

O que Foucault chama de “cesura biológica”, no interior dos dispositivos biopolíticos de governo, é o que se entende pelo racismo e pelo adensamento da problemática da raça nos séculos XVIII e XIX: “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização” (2010, p. 215). É esta nova característica que, justamente, é retomada por Agamben e sua leitura da biopolítica segundo o paradigma do campo - “o espaço desta absoluta impossibilidade de decidir entre fato e direito, entre norma e aplicação, entre exceção e regra” (Foucault, 2010, p.169) -, cuja genealogia remonta à Antiguidade. A partir de Michel Foucault, o italiano faz notar que o biopoder elege o homem vivente como o sujeito político. Na contemporaneidade, porém, se adensa a separação entre as modalidades de vida. Assim, se os gregos postulavam uma diferença entre a zoé e a bíos, o paradigma do campo captura o vivente em zoé (a vida natural), vida nua e homo sacer, numa exclusão que passa a incluir aqueles sujeitos cujo estatuto de cidadania poderia lograr o espaço da bíos (a vida própria do cidadão).

Se a modernidade, para Agamben (2010), é marcada pelo paradigma do campo como definidora do político, a vida biológica, nos moldes da zoé grega, torna-se um assunto estratégico para o governo e para os Estados. Disciplinar os corpos individuais e regular o corpo da população são táticas que dizem respeito à produção dos dispositivos de segurança e, no limite, à anfibolia da problemática do “povo”, que aparece como questão fundamental. Agamben (2010) observa que é justamente no povo a ser protegido que reside a ambiguidade fulcral: uma exclusão de certas modalidades de vida biológica (dir-se-ia, uma racialização) e uma assunção de certos grupos. Como “fratura fundamental”, o povo guarda no bojo tanto a exceção da vida nua quanto a promessa da cidadania e da pertença à ordem da bíos.

Ora, é justamente desta fratura que partem Mbembe, em seu Necropolítica, quando estabelece um diálogo com a tradição de Michel Foucault e Hannah Arendt. Mbembe (2011) estabelece um debate entre o terror biopolítico ocidental e as técnicas de extermínio anteriores, que dizem respeito à colonialidade. Dessa perspectiva, o autor pretende ampliar o escopo do terror, marcando a centralidade do par modernidade-colonialidade na própria genealogia do Estado de exceção. Ele observa que para a filosofia ocidental, “la colonia representa el lugar em el que la soberanía consiste fundamentalmente em el ejercicio de um poder al margen de la ley” (Mbembe, 2011, p. 37). O Estado colonial não precisa de regras para operar, bastando-lhe as tecnologias de separação e de morte: o outro deve ser civilizado, disciplinado, governado como uma vida biológica, zoé.

No mundo contemporâneo, Mbembe (2011) aponta um deslocamento da capacidade de matar do Estado. Para o autor, há uma nova geopolítica, cuja marca é um deslocamento da governamentalização que consiste na “gestión de multitudes” (Mbembe, 2011, p. 61). Diante da governamentalidade colonial, as técnicas do terror surgem mais móveis e mais ubíquas em sua decisão sobre que corpos devem viver e quais podem morrer - daí a série de massacres a que se assiste, por exemplo, no continente africano. Essa necropolítica, destarte, se configura como um adensamento radical da política de morte e, a reboque, das capacidades de resistência possíveis. Mbembe (2011), por fim, defende a hipótese de que é justamente a criação de um “mundo de morte” que caracterizaria o governo biopolítico de exceção contemporâneo de produção excludente de “mortos-vivos”([1]).

Por fim, gostaria de trazer à tona a relação entre a biopolítica e a precariedade de gênero - a ser utilizada na seção seguinte. Para tanto, remeto-me à Judith Butler, mais detidamente ao problema da precariedade, que relaciona a ontologia ao corpo. A filósofa norte-americana interroga a produção normativa da ontologia, cujo resultado é uma separação entre espécies de vida e modalidades de sujeito: “há ‘sujeitos’ que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há ‘vidas’ que dificilmente - ou, melhor dizendo, nunca - são reconhecidas como vidas” (Butler, 2016, p. 17). Apontando que o reconhecimento é uma prática normativa, Butler (2016) descreve a condição contingente e precária dos sujeitos no mundo e, a partir daí, advoga a respeito da produção de diferenças no interior da contingência: há vidas, generificadas e racializadas, sobre as quais incide uma maximização da precariedade como estratégia de governo e de violência. A autora faz emergir o problema da Guantánamo, das imagens de tortura em Abu Ghraib, das pessoas que vivem com VIH e da discussão sobre parentalidade homossexual para dar a conhecer a série de cisões que permitem a existência de vidas passíveis de luto e outras que normativamente são excluídas - do debate público, das normas de reconhecimento. Neste caso, cabe o questionamento: qual a distribuição da precariedade no interior dos dispositivos de gênero e de raça com que, atualmente, ainda nos deparamos?

É esta produção normativa de cisões ontológicas ainda em curso, fundamental para inteligir as relações entre a colonialidade, o racismo e a contemporaneidade no que trazem de dispositivos necropolíticos - e que, de forma um tanto distinta, aparece em Foucault, Agamben, Mbembe e Butler - que pautará a análise das imagens de Adriana Varejão, a ser realizada na seção seguinte.

3. DISCURSOS TRANS-MESTIÇOS-BARROCOS E RESISTÊNCIAS

Antes de partir para os discursos de Adriana Varejão, é mister indicar a sua relação com a problematização decolonial e pós-colonial([2]). Como aponta Lilia Schwarcz, o discurso de Varejão se vale de uma espécie de tradição antropofágica, um canibalismo que a coloca na intersecção entre dispositivos múltiplos. Assim, se a artista carioca evoca a colonização em muitos de seus trabalhos, acaba por tensioná-la, colocando em xeque uma dramática cultural e racializada e re-narrativizando as práticas culturais, os dispositivos e os discursos com os quais se depara (Schwarcz & Varejão, 2014). Nos moldes propostos por Deleuze (2011), o trabalho efetivo sobre os arquivos e sobre a história - e a istória, marcada corporalmente, como se verá - produz um diagrama. Como diagrama, o discurso pictórico de Varejão desorganiza a ordem linear da figuração e exige que nos voltemos, atentamente, para as hifenizações e as resistências de sua enunciação.

A produção de diagramas em Varejão pode ser lida, portanto, na qualidade de um inquirir acerca das memórias do Brasil colonial, interrogando os limites da representação e da organização dos relatos culturais. Neste caso, avento a possibilidade de aproximá-la de uma leitura decolonial, naquilo que opera agonisticamente diante da necropolítica moderna e contemporânea. Dessa perspectiva, assumo com Mignolo (2003) uma virada epistemológica e hermenêutica que diz respeito aos modos de produção e circulação contemporâneos, marcados por outras topologias enunciativas. Neste caso, é importante ressaltar que não se trata de notar um pós-modernismo em Varejão, porque a crítica à modernidade estabelecida desde o debate pós-colonial e/ou decolonial exige um descentramento em relação à tradição europeia/norte-americana e uma assunção dos discursos coloniais como constitutivos da modernidade. Tal ruptura coloca em suspenso, de forma crítica, o caráter civilizatório e racializador dos dispositivos da colonialidade e guarda similaridades com o feminismo e os estudos de gênero, quando estes redefinem os critérios de aceitabilidade e de validade dos saberes e do conhecimento. Contra a missão civilizadora eurocêntrica da modernidade, as resistências vão de encontro às metafísicas universalizantes, dando voz a narrativas híbridas e localizadas daqueles que, racializados pelo dispositivo da colonialidade, foram esquadrinhados como inferiores, incapazes e, no limite, matáveis (Quijano, 2005).

No esforço de dar voz a outras formas de subjetividade e segundo a ordem de um tensionamento das narrativas da colonialidade, no que trazem de racialização e de violência de gênero, a pintura de Adriana Varejão pode ser aproximada dessa perspectiva pós/decolonial. Em sua heterotopologia, a artista carioca põe em funcionamento uma rede de discursos que, devidamente relidos e colocados em perspectiva, sugerem tanto a presença obsedante da necropolítica quanto a possibilidade de profanação dos dispositivos sobre os quais a enunciação artística é postulada. Em Varejão, as narrativas excêntricas contam a istória marcada nos corpos de mulheres e homens subalternos, apostando num hibridismo para criar uma espécie de poética diaspórica (Gilroy, 2001): sem a pretensão de uma topologia originária - e transcendental -, mas de acordo com um espaço ainda em construção, de trocas e de hifenização pelos quais os corpos e as subjetividades devem passar e nos quais podem resistir e se reconstruir. Como afirma a própria artista, uma enunciação mestiça e trans-barroca, cuja função-autoria requer que se extrapolem os limites do binarismo.

Tomemos aqui dois recortes, parte da série Terra incógnita, iniciada em 1992. O título, como já se pode notar, indica o caráter ambíguo e difuso: ora a terra desconhecida a ser “descoberta” na invenção de tradições ultramarinas modernas; ora a terra ainda imprecisa, interrogação e ferimento em aberto. Nas imagens dessa Incógnita, cruzam-se enunciados cartográficos, enunciados de racialização, enunciados pictóricos e enunciados de gênero. A série é marcada por um deslocamento da genealogia colonial e pela assunção de uma modalidade de enunciação que se estabelece justamente na fronteira e de acordo com uma subjetividade subalterna que toma a cena de forma positiva e segundo a ordem das resistências, em diversas telas. Vejamos:

 

 

Schwarcz (2014) já observou a metáfora da carne viva que invade o discurso nacionalista cartográfico - a imagem atribuída a Lopo Homem, Terra Brasilis (1519). Aqui, por oportuno, destaco a técnica autotélica moderna - a série Conceito espacial, de Lúcio Fontana, e justamente o movimento de deslocamento erigido por Varejão. Como Fontana e suas pesquisas que burlavam a bidimensionalidade do quadro (naquilo que se conhece como o Spazialismo modernos que o argentino radicado na Itália perseguiu entre as décadas de 30 e 60 do século XX), o gesto de Varejão coloca em suspenso o espaço da tela e do cavalete, convidando o espectador à produção de outras relações com o artefato artístico. Assim, ao materializar a cisão da cartografia colonial pelo corte à Fontana, ao que parece, ela aponta para os efeitos necropolíticos de uma sutura jamais levada a cabo: os países do sul da América e de África permanecem como corpos submetidos ao terror e ao domínio das narrativas e dos saberes da colonização.

Na problematização estético-política que empreende, Terra incógnita dá destaque à genealogia dessa necropolítica, cuja memória genérico-racializada é posta em discussão. Assim, em Filho bastardo (1997), o discurso subverte a mitologia de uma miscigenação à brasileira e evoca os sentidos da violência e do terror. Invertendo o olhar, a tela apresenta uma cena supostamente privada, tornada pública em seu caráter de dominação e de disposição dos corpos. Na alcova, a cisão novamente marcada pela ferida ensanguentada, também se materializa nas diversas antinomias: modalidades de vida distintas (brancos, negras e indígenas), nas relações de atividade e passividade (homens que sujeitam corpos de mulheres e crianças), corpos que se submetem ao olhar disciplinador e regulador e olhares coloniais que espreitam, impassíveis, a produção da dominação colonial.

Novamente, Varejão se coloca num trabalho de retomada da invenção da tradição nacional, pautada nos olhares eurocêntricos: as cores, as formas e a disposição dos corpos recorrem à topologia inscrita na memória colonial e em suas relações de dominação dos corpos generificados e racializados. Imediatamente, quadros como os de Debret em sua suposta “apresentação” do Brasil do dezenove vem à tona. Porém, o deslocamento proposto por Varejão incorre numa paródia e, mais profundamente, numa suspeição estético-política das relações de morte pelas quais a nacionalidade e a colonialidade inventam as origens dos mitos brasileiros e das corporalidades que nele ganham destaque: negras e indígenas cujos corpos estão à disposição do homem europeu não inauguram uma mestiçagem pacífica, mas convocam ao pensamento heterotopológico de disjunção em relação à lógica de dominação, de exclusão e de matabilidade. Seu discurso imagético insiste em retomar e reler os arquivos de gênero e de raça coloniais, invertendo o funcionamento enunciativo: em Varejão, é uma mulher, uma mestiça e brasileira que se volta para a memória colonial e nela aponta o corte, a rasura e, no limite, a necrópolítica. O dispositivo colonial, dito de outro modo, aparece relido segundo o olhar da mestiza e aponta para a valência positiva da ambiguidade e de certa “inquietute psíquica” que a aproxima de Anzaldúa (2005): uma pertença e uma distensão, o espaço da fronteira em que a mulher pode enunciar outros saberes, resistindo e profanando as narrativas de civilização da colonialidade necropolítica.

 

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste breve artigo, o objetivo foi dar uma leitura necropolítica do discurso pictórico da artista brasileira Adriana Varejão. Não me pretendi exaustivo, dada a rede de discursos e práticas que podem ser levantadas para pensar as relações entre a estética, a biopolítica e os enunciados de gênero e de raça. De todo modo, ao eleger dois quadros da série Terra incógnita, defendi a hipótese de que o funcionamento dos diagramas de Varejão, que materializam um corte e uma inscrição istológicos, carregam no bojo uma potência de resistência, ao apontar para uma enunciação que nos interroga sobre uma memória da modernidade colonial e de uma dramática de exclusão e, no limite, de matabilidade racial e de gênero.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agamben, G. (2010). Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG.         [ Links ]

Anzaldúa, G. (2005). La conciencia de la mestiza: Rumo a uma nova consciência. Revista estudos feministas, 13(3), pp. 704-719. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2005000300015.

Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista brasileira de ciência política, 11, pp. 89-117. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.

Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Castro-Gómez, S. (2007). Michel Foucault y la colonialidad del poder. Tabula rasa, 6, pp. 153-172.

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Mbembe, A. (2011). Necropolitica. Madrid: Melusina.         [ Links ]

Mignolo, W. (2003). Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.), A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais: Perspectivas latino-americanas (pp. 87-95). Buenos Aires: CLACSO.         [ Links ]

Varejão, A. (2017). Terra incógnita. Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/home        [ Links ]

Schwarcz, L. M., & Varejão, A. (2014). Pérola imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

[1] Há um debate sobre o caráter eurocêntrico da biopolítica de Foucault e de Agamben. Castro-Gómez (2007), defende que é possível relacionar as duas enunciações. Primeiro, porque Foucault coloca em discussão uma teoria de racialização e a relaciona à colonização. Depois, não obstante a negação do discurso difusionista, a biopolítica exige que se pense em diferentes urgências históricas para cada modalidade de racismo. Finalmente, porque em cursos como Segurança, Território, População, o francês ensina que uma das condições da seguridade é a instalação de mecanismos globais de poder, que caracterizam a modernidade e redundam num Estado em constante conflito com outras nações. Ainda que concorde que a problematização de Foucault sobre a colonialidade está centrada num problema europeu, Castro-Gómez (2007) defende que a analítica do poder que ele oferece não é eurocêntrica e aparece como metodologia potente para pensar as relações coloniais.

[2] A partir do “pensamento fronteiriço” da subalternidade colonial descrito por Mignolo (2003), entendemos aqui a relação entre o pós-colonial e o decolonial. Se ambos são saberes e práticas de discussão da colonialidade e da modernidade, o primeiro se inscreve diretamente numa tradição teórica pós-estruturalista, pelo qual será muitas vezes criticado pelo segundo, cuja genealogia corresponde aos movimentos de luta política e social e à negação do caráter elitista e etnocêntrico de que ainda se ressentiriam os saberes pós-coloniais. Dado que a polêmica é extensa e não pode ser devidamente tratada no presente texto, entenderemos ambos os conceitos em seu tensionamento com os discursos da modernidade colonial e segundo a ordem da produção estratégica de resistências e formas de subjetividade táticas. Para uma descrição do debate entre pós-colonial e decolonial, ver Ballestrin (2013).