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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa out. 2019

 

Reflexão prévia I

Heloísa Buarque de Hollanda*

* Professora Emérita de Teoria Crítica da Cultura/Escola de Comunicação e Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/Faculdade de Letras, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL-UFRJ), Brasil, onde desenvolve o projeto “Universidade das Quebradas”, baseado no conceito de ecologia dos saberes.


 

Sou uma professora brasileira que se descobriu feminista nos Estados Unidos. É importante referir esse fato, porque meu caso não é único. Pesquisas mostram que a maioria das feministas brasileiras das segunda e terceira ondas também se tornaram feministas em época de exílio ou estadias mais ou menos longas no exterior.

Em 1980, a academia começava a abrir-se para os estudos feministas, mais tarde estudos de gênero, e foi nesse momento relativamente tardio que comecei a lutar pelo “direito de interpretar”, depois do ativismo libertário e contundente dos anos 60 com o calor e a rebeldia típicos da insurreição jovem que marcou a década.

O ativismo feminista no Brasil traz algumas particularidades e marcas específicas. Nos anos 1960, época em que o feminismo desponta com força no panorama internacional, o Brasil estava submerso no que chamávamos de anos de chumbo: o período sombrio da ditadura militar, da repressão, da tortura e do recrudescimento da censura que atingiu diretamente as prioridades da agenda e da luta das mulheres no país.

Enquanto nos países da Europa e nos Estudos Unidos, as principais bandeiras giravam em torno das políticas do corpo, da sexualidade e da descoberta de que “o pessoal é político”, no Brasil algumas estratégias foram adotadas face ao extremo conservadorismo daquele momento político e à profunda relação dos movimentos sociais com a Igreja, naquela hora uma das mais significativas forças da oposição ao regime ditatorial. Para não promover conflitos com a Igreja, aliada essencial dos movimentos que reagiam ao status quo, as feministas brasileiras abriram mão das reinvindicações progressistas internacionais relativas ao direito ao corpo, ao aborto e à liberdade sexual e se concentraram na luta contra o regime, nas questões do trabalho, da saúde da mulher e demais temas importantes, mas que não comprometeriam sua aliança com a Igreja. Um pouco mais tarde, como pesquisadora da Universidade de Columbia, NY, me envolvi com os estudos de gênero e tornei-me leitora compulsiva das novas teóricas anglo-saxãs. Meu feminismo na academia tinha claro sotaque europeu e anglo-saxônico.

Tudo isso para dizer como me senti na primeira vez que me encontrei com as colegas portuguesas no ritual de uma conferência internacional intitulada Género na Arte lusófona: Corpo, sexualidade, identidade e resistência no Século XXI, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Era a primeira vez que eu participava de um debate sobre gênero em Portugal.

Estar em Lisboa, para uma brasileira, provoca um sentimento muito particular. Reconhece-se os sentidos dos sorrisos, a musicalidade do sotaque, a lógica das relações interpessoais e dá-se, quase instintivamente, o impulso do abraço. Qualquer brasileiro conhece a fundo o ethos português. Ou melhor, se reconhece profundamente no ethos português. Me senti a salvo naquela sala cheia, aguardando a abertura dos trabalhos.

Meu contato inicial havia sido com Aida Rechena e Teresa Furtado, ambas também curadoras da Exposição Género na Arte: Corpo, sexualidade, identidade, resistência no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, articulada à conferência.

Já na primeiras conversas, percebi que aquele encontro traria algo mais do que os seminários acadêmicos geralmente nos proporcionam. Dito e feito. Para começar, a distribuição de palestrantes e temas era, ao mesmo tempo, confortável e instigante. Uma mistura lusófona de várias dicções e cores, impecável. Uma só língua, uma só empatia. Essa a impressão inicial daquela sala, enquanto esperava Aida e Teresa, já sentidas como velhas amigas, mexendo com fios, microfones, projetores. Os dois dias passaram rápido. Em todos, a confirmação de um estado de injustiça epistemológica que nos perpassava e que impulsionava a toda(o)s na invenção urgente de novas perspectivas de análise, novas metodologias, novos desenhos para nossos objetos de pesquisa.

Lembro de ficar seduzida com a fala de Ana Gabriela que, ao falar de Paula Rego, falava de si, numa dinâmica autoreflexiva, distanciando-se e aproximando-se de seu objeto de pesquisa numa espécie de jogo que interpelava a ideia de objetividade analítica. De Francesca usando a performance como instrumento de desconstrução da heteronormatividade, assim como António Fernando usando o queering como método interpretativo. Não me esqueço da paixão de Sónia Passos pelo quase gênero lecture-performance com o qual Grada Kilomba constrói seu Plantation memories. Eu não havia lido Grada. Foi a primeira coisa que fiz ao retornar ao Brasil. Fiquei agradecida à Sónia por isso.

Ouvindo as falas, os gestos e os risos naquela sala, duas coisas se mostraram consensuais: o destaque da performance enquanto uma ferramenta fortíssima de criação, ativismo e interpelação e a função da experiência ou até mesmo da auto exposição como método de trabalho. Nesse sentido, as porcelanas, sedas e imagens de Ana Pérez-Quiroga gritando “Odeio ser gorda” é um exemplo expressivo. As falas abriam caminhos e caminhos a serem percorridos pelos estudos feministas. A atenção para novas historiografias, para os temas de mulher como dizia a poeta ícone brasileira Ana Cristina Cesar ao constatar a raridade desses temas em plena década de 1980 no Brasil. Dizia ela: Quem se preocupa com o que seria um “estilo” feminino nas artes e nas letras é, basicamente, a crítica masculina. Essa perspectiva promove uma forma crítica que “feminiza” a produção das mulheres e tentam bloquear a força dos “temas” de mulher, esses sim epistemologicamente perigosos. Naqueles dias do encontro essa barreira havia caído. Temas de mulher, dores de mulher, prazeres de mulher, gritos de mulher. Saí desses dois dias tão aquecida pelo afeto português quanto cheia de encantamento pelos caminhos que temos a seguir. O século XXI é nosso. Mas isso tudo não foi suficiente. No dia seguinte, visitei, com as curadoras Aida e Teresa, a exposição que deu origem à conferência. Poucas vezes na vida vi um trabalho curatorial tão corajoso e radical como esta mostra que foi exibida num Museu Nacional, portanto, inserida de forma ousada dentro do circuito oficial das artes. Tornou-se mais claro o sentido da conferência cujos trabalhos estão compondo este livro.

Num espaço fundamente institucional, aquela exposição mostrou com clareza que museus (e a academia) não são espaços neutros. Nem tampouco que se restringem à mostra de patrimônio culturais e artísticos mas que podem (e devem) ser potencializados com diz o catálogo, como espaço social, espaço de criação de conhecimento compartilhado. Que espaços institucionais podem ser, antes de tudo, um espaço de debate e impacto político imaginando a pluralidade de identidades possíveis, interpelando os regimes reguladores da sexualidade.

Conferência e exposição, a sintonia tão fina com meus colegas lusófonos me mostraram que além de teorias distantes, o pertencimento compartilhado pode ser um poderoso instrumento de análise.