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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.Extra Lisboa out. 2019

 

NOTA DE ABERTURA

Isabel Henriques de Jesus*

Aida Rechena**, Ana Lúcia Teixeira***, Teresa Veiga Furtado****, Manuel Lisboa*****

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, misabeljesus@fcsh.unl.pt

** CHAIA-UÉ

*** CICS.NOVA - NOVA FCSH

**** CHAIA-UÉ

***** CICS.NOVA - NOVA FCSH


 

A revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher tem como missão apresentar estudos de natureza académica e científica sobre mulheres, feminismo e género e destacar figuras femininas que, pelo seu percurso individual ou colectivo, contribuam para o reconhecimento do papel social das mulheres. Por isso, a revista comporta habitualmente duas secções, a primeira das quais se destina fundamentalmente a um público interessado no estudo das temáticas acima mencionadas e, a segunda, capta a atenção das pessoas que desejam compreender como tantas e tão diversas mulheres contribuíram, e contribuem, para a dinâmica das sociedades nos seus múltiplos aspectos.

O número que agora se dá à estampa constitui uma excepção à organização habitual da revista e aloja o resultado de uma Conferência que decorreu na NOVA FCSH sobre temáticas que se inserem no âmbito de Faces de Eva. É, por isso, com muita satisfação e orgulho que damos voz às e aos organizadores deste número extra, composto exclusivamente pela “Nota de Abertura” e pelo dossier “Estudos”, cuja introdução revela as reflexões teóricas e pessoais de Heloísa Buarque de Hollanda, aquando do seu encontro com as colegas portuguesas participantes na Conferência.

O dossier do presente número da revista Faces de Eva, coordenado por Aida Rechena, Ana Lúcia Teixeira, Teresa Veiga Furtado, Manuel Lisboa e Paulo Simões Rodrigues, integra os artigos que foram apresentados no âmbito da conferência internacional Género na Arte de Países Lusófonos: Corpo, Sexualidade, Identidade, Resistência, que decorreu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), em Lisboa, nos dias 27 e 28 de Outubro de 2017[1]. A conferência fez parte de um conjunto de eventos organizados pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, pelo Centro de História de Arte e Investigação Artística da Universidade de Évora e pelo Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Este dossier propõe-se debater de um modo interdisciplinar as questões de género no panorama artístico e cultural de países lusófonos contemporâneos, do século XXI. De igual modo, é também objectivo deste número da revista dialogar de um modo crítico e transdisciplinar sobre a questão do género no foro da arte e da cultura contemporâneas, nomeadamente no cruzamento da arte com perspectivas feministas, LGBTI, queer e pós-colonialistas. Os textos aqui integrados consubstanciam uma relevante contribuição para as áreas das artes e dos estudos de género ao desafiarem os modelos tradicionais de produção de conhecimento do Norte Global (Santos & Meneses, 2009), através do debater destas questões por pessoas de diferentes contextos e proveniências como artistas, curadores, ativistas, entre outras. Tivemos como objectivo formar uma plataforma de troca de ideias, experiências, projetos de criação e de colaboração solidários. As artes visuais não existem num vácuo. Tal como outras áreas, refletem as dinâmicas institucionalizadas das sociedades patriarcais.

De igual modo interessou-nos as representações de corporalidades e performatividades que questionam as categorias fixas de sexo, género, identidade sexual e desejo, fazendo emergir novos discursos culturais identitários de subjetivação e autodeterminação, assertivos e autónomos. Entendemos o género enquanto dimensão fluida, dinâmica, de expressões múltiplas, algo que se faz, desfaz, constrói e reafirma na interacção social, como algo intrinsecamente ligado a outras dimensões, como a raça, a orientação sexual, a classe, a cultura, a idade, a (dis)capacidade e a educação, que conjuntamente produzem dinâmicas interaccionais específicas hierarquizadas (Butler, 1990).

Pensamos que, num mundo globalizado, a combinação, de modo diversificado e complexo, de múltiplos hábitos sexuais e regimes de género, vindos de pessoas com diferentes pertenças no que respeita à cultura, nação e religião, multiplicam as configurações e variações das dimensões de género em que é possível viver. Rejeitamos quaisquer perspectivas assentes na ideia do exótico e da objectificação, do outro não-ocidental (Spivak, 2010; Ribeiro, 2017).

Outro ponto de interesse foi o modo como os corpos das mulheres e das minorias discriminadas como os gays, as lésbicas, transgénero e transexuais, entre outros, são afectados pela desigualdade de género que os oculta.

Nesse sentido, destacámos as histórias de vida - herstories e queerstories - em espaços e temporalidades concretas que mostram, por meio de múltiplos suportes artísticos, as suas vivências e discursos identitários, passando-as do silêncio à representação revelando o que anteriormente fora proibido, escondido e ignorado no campo do desejo e da sexualidade. Uma outra dimensão importante para este evento foi a abordagem do género na esfera íntima - nas relações, decisões e gestos da vida quotidiana - enquanto espaço onde se exerce o poder.

Salientamos igualmente os grupos culturais alternativos ligados ao apoio e divulgação de práticas artísticas centradas em identidades não heteronormativas, sublinhando e revelando as ficções, as construções sociais e relações de poder em torno das categorias de género binárias. Importou também trazer para este fórum, por um lado, os discursos que defendem a ‘naturalidade’ das identidades e sexualidades normativas e, por outro, o conceito de «devenir» beauvoiriano do género, no sentido de tornar-se, transformar-se, desvendando as estruturas e processos responsáveis pela própria formação do género.

Por fim, também nos interessou as personae e máscaras de género que rompem e questionam os discursos sociais, nomeadamente os dos meios de comunicação de massas, considerados responsáveis pela alienação, deturpação e criação de estereótipos de género, e pela percepção das sexualidades como meras mercadorias dessubjectivadoras. Se a repetição e identificação performativa servem os interesses da cultura conservadora, estabelecendo a heterossexualidade como regra obrigatória, podem também, em alternativa, resistir à significação cultural dominante, ao mesmo tempo que sublinham e revelam as suas ficções, as construções sociais e relações de poder em torno das suas categorias de género (Oliveira, Pena & Furtado, 2013).

 

 

O dossier abre com uma reflexão prévia de Heloísa Buarque de Hollanda, oradora principal da conferência, que explica a sua forte relação com o ativismo feminista brasileiro, desde os anos 1980 até ao presente. A autora refere as singularidades do feminismo brasileiro, distintas das do europeu, que nos anos 1960, no período em que o feminismo surge com vigor no panorama internacional, não teve possibilidade de florescer na medida em que o Brasil estava submerso na ditadura militar. De forma sucinta mas clara e convocando a linguagem do afecto, descreve a sua experiência na conferência e exposição como profundamente enriquecedoras, e do compartilhar da ideia que os espaços dos museus e das academias podem ser um espaço de debate crítico e impacto político sobre os regimes de poder institucionais.

No texto de António Fernando Cascais, o autor advoga que a teoria queer e os conceitos de performatividade de género, performatividade queer e “queering”, enquanto metodologia de análise que desestabiliza a equação sexo/género/desejo, aplicado às artes - performativas, plásticas e literárias -, é eficaz no modo como revela os processos de construção das dicotomias e estereótipos de género em torno da masculinidade e feminilidade, e de exclusão das subjetividades sexuais que não se conformam a este modelo.

O artigo de Irene Vaquinhas apresenta-nos a entrada na historiografia portuguesa do século XXI dos estudos sobre as mulheres e estudos de género, referenciando acontecimentos e momentos-chave da evolução destes estudos, apontando os principais vectores de pesquisa, os seus pressupostos epistemológicos e enunciando as áreas temáticas ou em construção.

A autora Ana Balona de Oliveira convoca a obra da artista Eurídice Kala, negra, moçambicana, africana e migrante, para questionar as hegemonias eurocêntricas e masculinistas, recorrendo ao feminismo interseccional e salientando a importância do diálogo entre práticas artísticas e da história para uma descolonização epistémica e ético-política.

O texto de Louize Bueno de Moura foca-se na presença, na contemporaneidade, dos feminismos como ferramenta interdisciplinar de transgressão, resistência e contra-discurso ao machismo e racismo. A partir de um olhar cartográfico e afetivo sobre os corpos como territórios de domínio, a autora realiza análises de género, especificamente feministas, nas produções geopoéticas das artistas visuais Letícia Parente, Regina José Galindo e Andressa Cantergiani.

Atilio Butturi Junior traz-nos o estudo da série Terra Incógnita da artista brasileira Adriana Varejão, a partir das intersecções entre género, colonialidade e raça e dos dispositivos de poder e violência das instituições do governo, biopolítica, e necropolítica, e do conceito de heterotopologia. As obras da artista, ao representarem as corporalidades femininas e racializadas coloniais, carregam em si um potencial de resistência ao apontarem para a memória da modernidade colonial e o profundo racismo e sexismo associados a essa lógica de dominação e exclusão.

Sónia Passos analisa o trabalho de Grada Kilomba, Plantation Memories, onde género, “raça” e nacionalidade, como vetores analíticos vividos e experienciados, se intersetam, cruzando estudos de género, pós-coloniais com histórias de vidas de mulheres negras. Conceitos como capitalismo, colonialismo e patriarcado, entendidos como eixos de dominação, têm sido abordados por uma geração apostada em construir novas memórias do mundo e em pensar que os problemas da contemporaneidade não são apenas sociais, políticos ou económicos, mas são culturais e epistemológicos.

O artigo de Márcia Oliveira constitui uma reflexão em torno das diferentes aceções da ideia de arquivo e das possibilidades de interpretação que as mesmas abrem na análise de diversas práticas artísticas e de representação. Esta reflexão pode ser posicionada no âmbito dos novos discursos da crítica contemporânea, genderizados e descentralizados. Partindo de Gilles Deleuze, investiga-se a possibilidade de esboçar uma ideia de “arquivo percetivo”, conceito que pode ser utilizado na análise de práticas artísticas contemporâneas e na revisão que estas têm operado nas representações e no eixo ético-político dos discursos feministas e pós/des-coloniais.

Francesca Rainer convida-nos a refletir sobre o paradoxo entre a presença das mulheres nas artes performativas e o seu afastamento das políticas feministas na medida em que as performances realizadas por mulheres constituem frequentemente reflexões críticas aos modelos de género e paradigmas neoliberais que privilegiam o sucesso individual. A autora convoca na sua análise duas performances em que as mulheres desempenham os papéis centrais, nomeadamente, Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas de Joana Craveiro, e Fausta de Patrícia Portela.

O artigo de Ana Gabriela Macedo constitui um diálogo entre o ensaio Seis propostas para o próximo milénio, 1990, de Italo Calvino, o conto Le Chef d’Oeuvre Inconnu, 1845, de Honoré de Balzac, e as obras de Paula Rego. As sua obras, segundo Macedo, encontram-se carregadas de narrativas intertextuais e interartísticas que desafiam e questionam as fronteiras disciplinares e chavões de género.

A artista Anésia Manjate apresenta uma análise da tradição changana moçambicana no que respeita a questões de género a partir da sua instalaçãoMulher Changana calada”. Esta obra, que combina diferentes elementos da cultura moçambicana changana, representa uma reflexão crítica sobre os rituais e práticas machistas aos quais a mulher viúva changana é submetida na região sul de Moçambique tratando-as como objetos que não podem ter voz ativa em relação a si mesmas.

No texto de Ana Pérez-Quiroga a artista descreve a sua obra Odeio ser gorda, come-me por favor!, 2002, que revisita a representação do nu feminino na arte, adoptando um discurso crítico no respeitante aos estereótipos e paradigmas androcêntricos. As estratégias utilizadas pela artista vão desde a representação da beleza segundo os cânones convencionais até ao registo erótico aliado a jogos de palavras.

A partir da convocação da pintura de Tiziano Venere di Urbino, Luís Herberto traz os conceitos de nu e de nudez associados a um ideal de representação do corpo. A obra de Tiziano tem sido perpetuada em diversas obras e em diferentes períodos cronológicos, quase sempre em abordagens consideradas controversas, transpondo o imaginário erótico original, e servido como catalisadora formal e conceptual para artistas de diversas gerações, destacando o autor, os portugueses Acácia Maria Thiele e Gabriel Abrantes.

No artigo de Rafael Alvarez, o autor parte do enunciado lançado pela lógica duchampiana e analisa diferentes estratégias de construção de identidades de género e de corpo convocando os dispositivos de subjetividade e alteridade de um conjunto de quatro artistas - Andy Warhol, Cindy Sherman, Yasumasa Morimura e Madonna -, problematizando sobre o modus operandi que parte das suas obras e discursos de auto-representação/auto-referencialidade corporalizam.

O artigo de Giulia Lamoni convoca a obra da artista Maria José Oliveira, que, a partir do final dos anos 1970, articula prática artística, materialidade e natureza recorrendo à utilização de materiais orgânicos e não orgânicos, para discutir a presença da ideia de “casa” em todo o trabalho da artista. A autora ancora a sua pesquisa sobretudo no pensamento feminista de autoras como Donna Haraway e Elizabeth Grosz, que interrogam e enunciam novas ligações entre o humano e o não humano.

O texto de Federica Lupati foca a cultura hip hop em geral, e o caso português em particular, como estando associada a movimentos que procuram dar voz à marginalização social mas que, no entanto, reproduzem frequentemente dicotomias de género. A autora salienta que as vozes femininas têm que lutar para a sua capacitação, legitimação e afirmação do seu contributo e papel dentro dessa cultura, desde a sua génese até ao presente.

O trabalho de Ana Sofia Torres Pereira advoga que o reduzido número de mulheres realizadoras e guionistas a trabalhar no cinema, a um nível mundial, influencia a cultura cinematográfica e o modo como a sociedade vê e constrói o género. De igual modo, defende que, em Portugal, o estudo do género está ainda pouco consolidado, contribuindo a sua análise numérica e percentual de mulheres realizadoras e guionistas portuguesas, entre 1961 e 2011, para reverter essa tendência.

Sandra de Souza Machado apresenta um estudo sobre as produções audiovisuais realizadas pelas novas gerações de cineastas mulheres - diretoras, roteiristas, produtoras e atrizes - que têm marcado transformações necessárias e urgentes nas representações femininas e nos papéis modelo para as crianças e jovens mulheres, rompendo desse modo com as produções hegemónicas eurocêntricas que instigam e enraízam estereótipos arcaicos de género.

O texto de Aida Rechena e Teresa Veiga Furtado analisa a exposição “Género na Arte: Corpo, Identidade, Sexualidade e Resistência”, que visou apresentar formas e expressões contemporâneas de artistas nacionais, que fossem uma reflexão sobre as questões de género. De igual modo, salienta a importância para a mudança social dos estereótipos de género, da produção de investigação e práticas artísticas na área da arte e género, realizadas de um modo colaborativo e participativo, entre docentes e estudantes das academias de belas-artes, e comunidades envolventes.

O presente dossier reforça a relevância da investigação e da prática artística para os estudos de género, permitindo traçar percursos e diálogos muito diversificados entre estas áreas nos diversos países da lusofonia. Salienta-se que todos estes contributos têm em comum o emprego de teorias críticas feministas interseccionais que questionam radicalmente as ideologias de género hegemónicas, coloniais e patriarcais, resistindo à sua lógica de exclusão e dominação, contribuindo, deste modo, para uma maior abertura e entendimento do pensar e fazer o género.

 

BIBLIOGRAFIA

Butler, J. (1990). Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge.         [ Links ]

Ribeiro, D. (2017). O que é: lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento.         [ Links ]

Santos, B. de S., & Meneses M. P. (Orgs.) (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina.

Rechena, A., & Furtado, T. V. (2018). Género na Arte. Corpo, Sexualidade, Identidade, Resistência. Lisboa: MNAC.         [ Links ]

Oliveira, J., Pena, C., & Furtado, T. V. (Eds.) (2013). Introdução: Políticas Feministas nas Artes Visuais e Performativas. Ex aequo, 27, 11-25.

Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG.         [ Links ]

 

[1] Veja-se http://www.generonaarte.uevora.pt/conversas_com_artistas.html.