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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

LEITURAS

Memórias de uma falsificadora, a luta na clandestinidade pela liberdade em Portugal. Tengarrinha, M. (2018). Lisboa: Edições Colibri, 184 pp..

Natividade Monteiro*

* Universidade NOVA de Lisboa, FCSH-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, IHC-Instituto de História Contemporânea, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, nati.monteiro@netcabo.pt


 

Éramos jovens e queríamos um mundo melhor, num Portugal onde grassava a miséria, dominado por um pequeno grupo de grandes financeiros, monopolistas e latifundiários. Éramos jovens e queríamos a liberdade, pois abafávamos num Portugal dominado por todos os medos. Éramos jovens e queríamos um mundo de paz, traumatizados pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. (Tengarrinha, 2018, 20-21)

Este livro de memórias de Margarida Tengarrinha, com prefácio de Manuel Loff, é uma janela aberta para os tempos sombrios do Estado Novo, marcados pelo atraso económico, a miséria, o analfabetismo e o desrespeito pelas liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. A pretexto da defesa do Estado e a ‘bem da Nação’, a PIDE perseguia e prendia os opositores ao regime, exercendo particular violência sobre os militantes do Partido Comunista. Num tempo em que a memória das lutas revolucionárias e dos resistentes ao fascismo parece esboroar-se e a história desses 48 anos de autoritarismo tende a ser branqueada, este livro é um alerta para as ameaças à liberdade e à democracia que Abril nos trouxe há 45 anos. Ao lê-lo, ficamos a conhecer a coragem, determinação, riscos, sacrifícios e medos, de homens e mulheres que viveram e trabalharam na clandestinidade contra o regime autoritário de Salazar. Nestas memórias desfilam personagens conhecidas do PCP, da sociedade e da cultura, mas também desconhecidas que, “discreta e anonimamente”, contribuíram para o fim do regime. São heróis anónimos que fizeram história, tanto na militância clandestina e conspirativa, como na retaguarda, dando apoio material e moral aos familiares e amigos. Pais, mães, irmãos e irmãs que acolhiam e educavam netos e sobrinhos, sofriam as perseguições da PIDE, visitavam os presos e choravam os mortos. As mortes ocorriam sob prisão, devido a torturas cruéis ou doenças não tratadas, mas também nas ruas, quando, impunemente, se abatiam a tiro opositores como José Dias Coelho, companheiro da autora e pai das suas filhas. Esta, na ausência de notícias, julgando-o preso, soube da sua morte quando ele já tinha sido sepultado. Também amigos e amigas, solidária e generosamente, deram guarida e refúgio aos perseguidos e lhes forneceram meios, conselhos e materiais para o trabalho clandestino. Sem o seu apoio e discrição, a luta seria bem mais difícil, senão impossível. Neste livro as memórias individuais de uma falsificadora, redactora, ilustradora e tipógrafa, lutadora pela liberdade e defensora da paz e dos direitos das mulheres, cruzam-se com a memória colectiva de um passado que não podemos branquear ou apagar, porque dá sentido ao presente e ilumina os caminhos do futuro.

Margarida Tengarrinha nasceu em 1928, estudou na Escola de Belas Artes e tinha pela frente um futuro promissor, quando foi expulsa da universidade, no último ano do curso, e da escola em que dava aulas, como castigo pelo seu empenho no MUD juvenil e na luta pela paz. O roubo do pão ao adversário era uma das armas do regime, mas isso não a impediu de continuar na organização das comemorações do 8 de Março e, sob a direcção de Maria Lamas, preparar relatórios para o III Congresso Mundial de Mulheres, realizado em Copenhaga em 1953. Dez anos depois, acompanhará Maria Lamas, Alice Sena Lopes, Georgete Ferreira e Laura Cunha ao V Congresso Mundial de Mulheres, realizado em Moscovo.

Militante comunista, entrou na clandestinidade com o companheiro, José Dias Coelho, em 1955, com o objectivo de montar uma oficina de falsificação de documentos de identificação, directamente ligada ao secretariado do Comité Central do PCP. Este trabalho ‘monótono e insípido’, que só eles, como artistas, poderiam executar, não se coadunava com as expectativas de ‘heróicas acções revolucionárias’, mas era indispensável para a defesa dos clandestinos e a acção do partido, tanto a nível interno como nas relações internacionais.

Todos aceitaram o desafio e a responsabilidade com o romantismo e destemor próprios da juventude, e só mais tarde se aperceberam das dificuldades e sacrifícios que tiveram de enfrentar. O corte radical com a família, os amigos, o trabalho artístico e a intensa vida associativa e cultural foi o que mais lhes custou, porque a “profunda e consciente dedicação à luta não consegue anular a humana condição de militantes” (p. 16). Para Margarida, a separação da sua mãe, doente, em estado terminal, foi o primeiro embate, seguindo-se o da ‘terrível’ separação da filha Teresinha quando esta atingiu a idade escolar e, mais tarde, a da filha Guida, após seis anos de exílio na União Soviética e na Roménia. Entre a angústia, a autocensura e o remorso que tentava abafar, e o sentido do dever, foi tomando consciência da importância de lutar com eficácia no único partido da oposição que então existia para enfrentar o regime. Eficácia, disciplina e entrega a uma luta comum, que ia muito além da indignação solitária, unia solidariamente os militantes e dava força ao ‘colectivo partidário’. Destemida e ousada mas também cautelosa, Margarida nunca foi presa, apesar de ter corrido o país, assumido várias identidades e desempenhado diversas funções ao serviço do partido, graças ao apoio e silêncio de amigos e amigas que nunca a denunciaram.

Margarida Tengarrinha descreve os meios e os processos de falsificação que improvisaram e experimentaram até à perfeição, forjando documentos capazes de passarem despercebidos aos olhos das autoridades portuguesas e estrangeiras. O primeiro trabalho foi o passaporte de Sérgio Vilarigues, seguindo-se, entre outros, os bilhetes de identidade dos próprios falsificadores, diferentes sempre que mudavam de casa. As casas clandestinas, especialmente a da oficina de falsificações e as tipografias, eram as mais defendidas. As mulheres tinham a responsabilidade de velar pela imagem construída pela família que as habitava e pela vigilância constante a qualquer sinal de perigo. A adaptação ao aspecto físico da personagem, ao vestuário, à origem social e ao sotaque da região a que se dizia pertencer eram um desafio que punha em risco a verdadeira identidade e individualidade das clandestinas. A fuga dos dez presos políticos da cadeia de Peniche e, mais tarde, a dos sete que fugiram de Caxias no Mercedes blindado que Hitler oferecera a Salazar duplicaram o trabalho de falsificação. Álvaro Cunhal e outros fugitivos deslocaram-se a casa de Margarida e José Dias Coelho, a fim de serem fotografados e obterem os documentos que lhes permitissem sair do país. Cunhal interessou-se pelo trabalho de falsificação, louvou a organização do arquivo fotográfico do partido que eles preparavam e aconselhou-os a escrever sobre os movimentos unitários e as lutas políticas contra o fascismo. O resultado foi a edição do livro Crónicas da Resistência em Portugal, editado em 1961 no Brasil e depois na URSS, na Checoslováquia e na Roménia, e que dinamizou o movimento internacional e as Conferências pela Amnistia dos Presos Políticos Portugueses.

Ao trabalho monótono das falsificações, cujo testemunho foi passado ao casal Júlio Martins e Natália David, sucederam-se tarefas mais aliciantes. Margarida, que já era responsável pela redacção do editorial, maquetagem e ilustração do boletim interno A Voz das Camaradas das casas do partido, passou a fazer parte da Comissão de Redacção do Avante!, e o companheiro ficou responsável pelo sector intelectual, onde tinha grandes amigos.

O ano de 1961 foi particularmente agitado a nível político: o início da guerra colonial, as movimentações da oposição democrática com vista às eleições legislativas e as manifestações populares contra o regime deram lugar a uma onda de repressão e de prisões que culminou com o assassinato de José Dias Coelho, pela PIDE, em 19 de Dezembro. Tinha 38 anos quando a morte saiu à rua num dia assim, cantou José Afonso, em sua homenagem. As testemunhas do assassinato só puderam falar depois do 25 de Abril. Dos responsáveis, levados a tribunal e julgados em 1977, só um deles foi condenado a três anos de prisão, com a atenuante dos bons serviços prestados.

Após a morte do companheiro, Margarida hesitou em continuar, visto saber que era difícil uma mulher sozinha, com uma filha de dois anos (a outra estava em casa dos avós), manter-se na clandestinidade. Mas ela era a única que podia refazer a oficina de falsificações, cujos materiais tinham sido levados pela PIDE quando tinham prendido Júlio e Natália. Seis meses depois, com tudo refeito, partiu para Moscovo para trabalhar directamente com Álvaro Cunhal. Ele escrevia o programa do partido e Rumo à Vitória, documentos aprovados no VI Congresso do PCP, realizado em Kiev, em 1965. Na URSS teve o privilégio de usufruir de uma intensa vida cultural, através da arte, do bailado e da música, que muito a deslumbrou. A ‘fuga pela arte’ continuou em Bucareste, quando se mudou para ali trabalhar como redactora da Rádio Portugal Livre.

Regressada a Portugal para integrar a redacção do Avante!, Margarida fixou-se no Norte, onde teve a missão de levar as maquetes do jornal para as tipografias do Porto e de Lisboa, viajando à boleia de um amigo para não ser detectada. Participou na organização das manifestações do 1.º de Maio de 1971 e 15 de Abril de 1972, realizadas no Porto contra a guerra colonial e a carestia da vida. Após o 25 de Abril, saiu da clandestinidade pela mão do jornalista César Príncipe, quando lhe pediu para a deixar falar num comício em Matosinhos. Foi membro do Comité Central do PCP e deputada pelo Algarve à Assembleia da República. Em 2014 recebeu o Prémio Maria Veleda da Direcção Regional de Cultura do Algarve. Uma história de vida, espelho de muitas outras, que merece leitura e reflexão, para que a memória de tempos sombrios nunca se apague.