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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

LEITURAS

Mão Inteligente: Raquel Roque Gameiro (1889- 1970) - Ilustração e Aguarela. Leandro, S. (2017). Amadora: Câmara Municipal da Amadora - Casa Roque Gameiro, 50 pp.

Maria do Céu Borrêcho*

* Investigadora. Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM - Centro de Humanidades, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher 1069-061 Lisboa, Portugal, mcborrecho@gmail.com


 

No seguimento de um estudo sobre a obra e a mulher que foi Helena Roque Gameiro, e já noticiado[1], Sandra Leandro conduz-nos agora numa viagem ao mundo de Raquel Roque Gameiro (1889-1970), uma outra filha, a primogénita, do pintor Alfredo Roque Gameiro. Esse mundo esteve presente numa exposição retrospetiva da obra da artista, superiormente comissariada pela historiadora de arte e professora da Universidade de Évora, na Casa Roque Gameiro, Amadora, em 2018.

A “mão inteligente” de Raquel pode ser também uma metáfora da sua vida - uma vida que assistiu, em Portugal, a diferentes tempos históricos, da Monarquia à Guerra Colonial.

Vamos, pois, contá-la pelos dedos.

O Mínimo - Mindinho: a criança desabrochando num ambiente familiar que lhe propor- cionou, tal como aos seus irmãos, aprender o desenho ao mesmo tempo que a leitura. Desta forma, conheceu o mundo pela perspetiva naturalista, apreendida inúmeras vezes em excursões familiares pelo campo ou junto ao mar, ou tão-somente absorvido de forma orgânica num simples andar descalça no Jardim da Estrela, para espanto e escândalo de muitos caminhantes. Essa realidade é-nos revelada em desenhos elaborados por essa mão pequenina, a par do registo dos números e das letras do alfabeto, em aparente conjugação.

O “Indicador - Fura-bolos”, desde cedo, apontou para o domínio artístico de eleição: a ilustração. Os primeiros trabalhos de Raquel foram concretizados, com 14 anos, para diversos livros (por exemplo, Para as Crianças) da escritora e militante republicana Ana de Castro Osório, “a única mulher que seu pai representaria” (p. 10). Essa colaboração terá contribuído para a atribuição de um prémio do diário infantil parisiense Le Petit journal, à semelhança das iniciativas destinadas aos jovens leitores promovidas pelos Diário de Notícias (DN) e O Século. Desde tenra idade, manifestou disciplina de trabalho e obstinação patente na “quantidade, sobretudo de livros, mas também de revistas que ilustrou... avassaladora para uma artista do seu tempo. Para uma mulher da sua época, absolutamente ímpar, chegando a ultrapassar os ilustradores mais conhecidos quer nacional, quer internacionalmente” (p. 11). Este interesse pela ilustração de livros “para crianças”, revelado desde jovem, manteve-se ao longo da vida.

O “Anelar - seu vizinho”: do casamento com Jorge Gomes Ottolini nasceram três filhas, Ana, Manuela e Margarida, todas desenhadoras ou ilustradoras, a terceira geração desta família de artistas, que alguém denominou como “a tribo dos pincéis”. Raquel fez uma pausa, que justificou em carta a Ana de Castro Osório: “Casei; nasceram os filhos e/ vi me forçada a deixar os meus desenhos/ para durante uns anos me dedicar só/ aos meus filhos, assim que os vi mais cri/ adinhos, comecei de novo os meus queri/ dos trabalhos” (p. 18) - o que não é totalmente verdade, pois, talvez com menor intensidade do que antes, concebeu diversos trabalhos. Foi nesse período da maternidade que criou uma obra marcante para várias gerações, O Livro de Bè, livro útil e indispensável ás noivas, ás mães e ás avós. Dedicado aos seus pais e com versos de Delfim Guimarães, foi editado pela primeira vez em 1917: “no meio do horror e desolação da guerra das trincheiras, nasceu um glorioso hino à vida” (p. 19). Esta obra, com quatro versões até 1969, a um ano da morte da autora, e sucessivas reedições, refletiu os quadros mental e cultural das diferentes épocas, a que se foi ajustando.

O “Médio - o maior de todos”: representou “o tempo maior” da obra de Raquel, abrangendo as décadas de 1920 a 1960 - uma época pontuada pela internacionalização da sua obra; pela colaboração em exposições, como a das Mulheres portuguesas, organizada em 1930, por Maria Lamas; pelos prémios atribuídos às suas aguarelas, inclusive no estrangeiro, que o DN caracterizou como “maravilhas de portuguesismo, alegre e pitoresco”. Raquel participou também em concursos, como o organizado pelo mesmo jornal, onde foi a única mulher ilustradora a concorrer com 60 imagens, acompanhadas de quadras-adivinhas com as variantes do nome Maria (exceto Maria dos Prazeres); colaborou na revista Eva, dirigida pelas suas irmãs Helena e Mamía. Na década de 1930, passou por Londres, onde, como bolseira, aproveitou para visitar os museus e apreender o ambiente cultural da cidade. No final dessa década, colaborou igualmente, com dois cartazes, na campanha de propaganda A Lição de Salazar. Com a reforma educativa do Ensino Primário, que o reduzirá a três anos, Raquel ilustrou, em 1932, O Bom Amigo - Livro de Leitura para a Primeira Classe e, em 1948, o Livro da Primeira Classe. Também se aventurou no desenho de selos, que seriam reprovados pela Junta Nacional de Educação por excessivo regionalismo. No entanto, a série foi finalizada, a instâncias dos CTT. Nova versão do Livro de Bèbé, agora designado História do Bè, onde as rimas de Delfim Guimarães dão lugar a poemas de escritoras portuguesas, como Albertina Paraíso, Beatriz Tovar, Branca de Gonta Colaço, Fernanda de Castro, Cândida Ayres de Magalhães ou Domitila de Carvalho, entre muitas outras. Uma derradeira reedição saiu em 1969, sob o título História do Bébé - recordações.

Por último, o Polegar, da mão que serenou em 1 de Outubro de 1970. O dedo daquela mão que imprimiu “com tanta nitidez a marca da sua identificação”, pois qualquer das obras de Raquel dispensaria assinatura (p. 37). Estas obras continuaram a ser reeditadas ou expostas, anos após a sua morte. A sombra desceu nesse 1 de Outubro, mas “o instinto estético que se materializou nos seus desenhos continuou a mover-se na claridade das páginas vivas que nos deixou”, como se pode ler no final neste catálogo.

 

[1]Cf. Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 37, 201-203. Disponível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-68852017000100018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt