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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa June 2019

 

(AUTO-)RETRATO

Vera Zasulich

Ilda Soares De Abreu*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva-Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, ildaabreu2015@gmail.com


 

 

 

Há cem anos, a 8 de maio de 1919, falecia, em Petrogrado, Vera Zasulich, revolucionária radical, tradutora de obras de Marx, editora e colaboradora da publicação Iskra (A Centelha), órgão do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSOR), onde, a partir de 1903, militou na ala menchevique. Depois da Revolução de Outubro de 1917, integrou o grupo Yedinstvo (Unidade), que se opunha ao bolchevismo. Com a dissolução do grupo, retirou-se da política. Trotski, que com ela partilhou o exílio, em Londres, disse que “era dotada de um espírito dos mais penetrantes, de uma vasta cultura, principalmente histórica e de uma rara intuição psicológica” (1976, p. 55). Lenine lastimava que, nela, “muitas coisas assentavam na moral, no sentimento” (Ibidem, p. 27).

Ainda segundo Trotski, Vera Zasulich “Vivia, vestia e alimentava-se como a mais modesta das estudantes (…) quando espalhava sobre uma fatia muito fina de presunto uma espessa camada de mostarda, nós dizíamos: a Vera Ivanovna está na farra” (Ibidem, p. 43).

O PERCURSO DE UMA REVOLUCIONÁRIA CONVICTA

Vera Ivanovna Zasulich (VZ) nasceu em 1849 (ou 1851), na província de Smolensk, e viveu durante a época em que se agudizavam as tensões entre as nações alógenas do círculo do Império Russo, decorrentes de particularismos culturais heterogéneos. Movimentos separatistas ativos expressavam-se em reivindicações emancipadoras e revoltas que, conjugadas com guerras externas, dificultavam a manutenção político-territorial do império.

Órfã de pai, militar falecido, provavelmente, na Guerra da Crimeia (1853-1856), as dificuldades económicas obrigaram Vera a viver com parentes. Como era hábito em famílias abastadas, os familiares proporcionaram-lhe a instrução básica com uma precetora, Mimina, que teve muita importância na sua formação moral, escolar e no domínio da língua alemã. A preparação escolar secundária processava-se em escolas privadas ou nos liceus. O ensino superior era restrito a raparigas nobres e aristocratas no Instituto Feminino Smolny, onde estudavam Medicina e Matemáticas.

Por volta de 1866, VZ estava empregada numa tipografia em São Petersburgo, tendo mais tarde, ido para Moscovo, onde frequentou uma instituição e obteve o diploma para lecionar em escolas privadas ou como precetora. Preferiu empregar-se num dos Julgados de Paz que foram criados aquando da reforma judicial de 1864, para julgar, com isenção e rapidez, pequenos delitos, em zonas rurais (Encausse, 2008). Constatou no entanto que, na prática, o processo se revelava em prejuízo dos camponeses sem instrução nem meios para se defenderem das leis injustas e consuetudinárias que continuavam a aplicar-se. Abandonou o cargo e foi para São Petersburgo, onde abraçou a causa revolucionária, militando na alfabetização do operariado em escolas clandestinas, que eram, afinal, centros de propaganda revolucionária.

Numa manifestação estudantil, Vera conheceu Sergei Nechaev (1847- 1882), anarquista e niilista que apelava à destituição imediata do czarismo, utilizando métodos extremistas, incluindo o homicídio. Em 1869, Nechaev foi preso, e Vera acusada e condenada a dois anos de reclusão e a posterior exílio, na Sibéria, sob o pretexto de pertencer ao círculo de apoiantes de Nechaev. Saiu em 1873, quando decorria o processo de jovens que, tendo por base política a difusão das ideias populistas(1), tinham partido, “ao serviço do povo”, em várias direções da Rússia. Tinham como missão a ajuda e alfabetização dos camponeses que, saídos da servidão, em 1866, viviam na extrema ignorância e miséria, tanto nos campos como nos meios fabris para onde tinham migrado.

O movimento foi um fracasso, pois aqueles jovens encontraram um povo que ignorava a língua russa e que se regulava por leis e superstições locais. O processo judicial terminou com a prisão de 612 jovens, dos quais 158 eram raparigas (Encausse, 2008).

O projeto educativo tinha esbarrado na ignorância e na incompreensão dos camponeses, mas a experiência daqueles/as jovens foi estruturante na sua formação cívica e política e deu-lhes motivações para novas dinâmicas no campo da contestação.

Vera tornara-se numa revolucionária convicta e, em 1876, estava entre os líderes do grupo anarquista Rebeldes de Kiev. Nessa altura foi recrutada por Georgi Plekhanov (1856-1918) e Pavel Axelrod (1850-1928), importantes ativistas políticos, para formar a sociedade secreta Zemlia i Volia (Terra e Liberdade) (São Petersburgo 1876-1877). Com o lema “a terra deve ser um bem comum”, a sociedade tinha por fim instaurar o socialismo cooperativo, organizado à volta do mir, a comuna camponesa, como agente principal no desenvolvimento económico da Rússia (Rey, 2016). A organização teve sucesso nos centros de Odessa e Kiev, criando comunas em Saratov e em diversas cidadezinhas ao longo do Volga (Encausse, 2008).

Para os líderes de Terra e Liberdade, a via era insistir na educação e na doutrinação política do povo, libertá-lo da sua ignorância e da sua miséria material (Rey, 2016), preparando-o para protagonizar o processo revolucionário.

1. O populismo foi um movimento especificamente russo, pelo primado que conferia à questão camponesa e pela inspiração anarquista.

A extensão e a larga adesão ao movimento provocaram a repressão violenta da polícia em São Petersburgo e Moscovo, que terminou, em 1877, no chamado “Processo dos 123” (Encausse, 2008), em que algumas mulheres foram condenadas a trabalhos forçados na Sibéria.

A teoria dos levantamentos populares espontâneos revelara-se utópica. Grupos dissidentes da organização Terra e Liberdade consideraram inevitável enveredar por formas agressivas de agitação política, fomentando greves nas fábricas e manifestações públicas. Estes grupos extremistas respondiam com violência aos métodos governamentais, recorrendo ao assassinato de funcionários do regime.

Vera Zasulich entrou em ação e, em 1878, baleou e feriu o general Trepov, governador de São Petersburgo, conhecido pela brutalidade no tratamento de revolucionários durante o “Processo dos 123”, em que teria mandado chicotear um preso político sob o pretexto de este não ter tirado o boné para o cumprimentar. Presa e objeto de um processo controverso muito mediatizado, foi absolvida ao abrigo do decreto de 17 de abril de 1863, que obrigava à abolição das punições corporais e determinava que as vergastadas não se deviam usar sob nenhum pretexto contra condenados políticos, nem na prisão, nem no exílio (Encausse, 2008).

Durante o julgamento, VZ mostrou-se arrependida e justificou a ten- tativa de homicídio como um ato contra a injustiça. Tornara-se, entretanto, a heroína mítica das revolucionárias, lembrada como a primeira mulher terrorista russa.

Em 1879, grupos extremistas organizaram-se no movimento Narodnaia Volia (Vontade do Povo) que, seguindo os princípios do Catecismo do Revolucionário, de Nechaev e Bakunine (1814-1876), propagava a formação de partidos revolucionários profissionais, em que os adeptos não teriam interesses próprios, nem assuntos pessoais, nem sentimentos, nem ligações, nem bens, nem sequer um nome, e a sua vida estaria, exclusivamente, dedicada ao objetivo supremo: a revolução (Encausse, 2008). Seguiam o teórico Tkachev (1844-1886), partidário do terrorismo, que punha o acento na usurpação imediata do poder. O processo passava pela ação violenta contra o regime czarista, pelo assassinato de membros do governo e da polícia, mas tendo como alvo principal o czar Alexandre II.

Estima-se que cerca de um terço dos revolucionários, os mais destacados, do movimento Narodnaia Volia era constituído por mulheres que se tinham evidenciado na militância populista e haviam sido vítimas de medidas de repressão excessivas, testemunhado perseguições e condenações de familiares e amigos, ressentimentos que as tornavam vulneráveis à práxis de ideologias radicais.

De entre as que se evidenciaram em ações terroristas, ficaram célebres Sofia Perovskaia (1853-1881), Vera Figner (1852-1942) e Alexandra Korba (1849-1939), implicadas no assassinato de Alexandre II, em 1881, de que resultou a condenação à morte, por enforcamento, de Sofia Perovskaia e à condenação a vinte anos na prisão de Schlusselbourg de Vera Figner (Encausse, 2008). Depois da morte do czar, as medidas repressivas a qualquer forma de contestação dependiam da Okhrana (Rey, 2016), implacável polícia política.

Vera Zasulich, Plekhanov e Axelrod tinham rejeitado a via da violência e fundado o movimento Tchernyi Peredel (Dissidência Negra), que insistia na ação dos camponeses. Mas, por esse tempo, as novas ideias revolucionárias apostavam no operariado como motor das revoluções.

Para fugir à Okhrana, Vera Zasulich, Plekhanov e Axelrod, exilaram-se em Genebra e, ali, fundaram o grupo Emancipação do Trabalho (1883-1903), promotor das ideias marxistas na Rússia. Em 1900, o proletariado fabril representava cerca de três milhões de pessoas, na maioria antigos camponeses submetidos a terríveis condições de trabalho (Rey, 2016). A propaganda revolucionária devia dirigir-se a esta classe em expansão, apelando à greve e às reivindicações dos trabalhadores, que VZ alimentava em artigos intitulados “Justiça”. Era, então, adversária do populismo e, segundo Trotski, “relativamente ao programa de repartição de terras, (…) ria-se disso com bom humor” (1976, p. 26).

A ação do grupo Emancipação do Trabalho foi fundamental na criação do Partido Operário Social-Democrata Russo, em 1898. O órgão do partido era o jornal Iskra (A Centelha), (1900-1903), fundado por um grupo liderado por Lenine (1870-1922), e publicado em Munique, Londres e Genebra, cujo conselho editorial era formado por VZ, Plehanov e Axelrod.

Versada na língua alemã, VZ traduzia obras de Marx e Engels, publicadas no Iskra, veículo de introdução das ideias marxistas entre a intelligentzia e da propaganda revolucionária em manifestações públicas e junto dos principais centros industriais da Rússia.

Quando, no Segundo Congresso do POSOR, em 1903, houve divergências e o partido se cindiu em duas fações - os mencheviques, liderados por Martov (1863-1920), que opinavam que a “revolução proletária aconteceria ‘naturalmente’” (Rey, 2016), e os bolcheviques, liderados por Lenine, que propunham a criação de um partido de revolucionários profissionais, inspirado nas teorias extremistas de Tkachev -, Zasulich posicionou-se ao lado dos mencheviques e Lenine expulsou do Iskra o conselho editorial de Genebra. Na Rússia, os acontecimentos políticos evoluíram para uma revolução e, entre 1905 e 1906, foi instituída a primeira Duma (Assembleia Constituinte), que prometia o desaparecimento da autocracia e possibili- tava o regresso de VZ. Com a restauração do autoritarismo e o expurgo dos suspeitos de reverter a ordem czarista, Vera voltou ao exilio.

Depois da Revolução de Outubro de 1917, VZ estava em Petrogrado (nova denominação de São Petersburgo) e integrou o pequeno partido independente Yedinsyvo (Unidade) (1917-1918), criado e liderado por Plekhanov contra o regime bolchevique.

Segundo Trotski, os artigos de Vera Zasulich “provam que ela tinha assimilado admiravelmente os elementos teóricos do marxismo, mas, ao mesmo tempo, a base moral e política de uma radical russa dos anos 70-71 conservou-se intacta nela até ao fim” (1976, p. 25).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Encausse, H. C. (2008). Alexandre II. Le printemps de la Russie. Paris: Fayard.

Rey, M.-P. (2016). La Russie face à l’Europe. Paris: Flammarion.         [ Links ]

Trotski, L. (1976). Lenine. Seguido de um texto de André Breton. Lisboa: & etc/Publicações Culturais Engrenagem, Lda.         [ Links ]