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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

(AUTO−)RETRATO

Maria Teresa Fisherde Sá Nogueira Sousa Dias


 

 

 

Convidaram−me para escrever este autorretrato porque, sendo engenheira química, fiz a minha vida profissional − bastante longa, diga−se de passagem

− toda na indústria, ao contrário de muitas outras colegas que se dedicaram ao ensino, trabalharam no Estado, fizeram um pouco de muitas coisas.

A minha primeira reação foi dizer que não. Não me imaginava a redigir algo sobre mim própria e não sabia o que podia partilhar sobre a minha vida que fosse de algum interesse, mas disseram−me para ler alguns autorretratos já publicados, e assim fiz. Inspirada pelo que li, resolvi sentar−me ao computador e tentar a minha sorte.

Nasci em 1940, em casa de meus Pais, como era costume na época. Já havia parturientes que se dirigiam às maternidades para dar à luz, mas muitas optavam por ter os bebés em casa, com o auxílio de uma parteira. Foi o que sucedeu no meu caso. A minha Mãe, a certa altura, pediu ao meu Pai para ir chamar a parteira que já antes tinha sido apalavrada, e lá nasci eu, a terceira dos três filhos de meus Pais. Tinha uma boa diferença de idade dos meus irmãos − sete anos e meio para o mais novo e nove e meio para o mais velho.

Como o meu Pai era o mais novo de muitos irmãos e nem todos se casaram, e a minha Mãe tinha também vários irmãos, mas só uma, um pouco mais velha do que ela, é que tinha descendência, acabei por ser uma criança situada entre duas gerações: a dos primos direitos e a dos primos segundos, os primeiros um pouco velhos de mais para me darem muita atenção e os segundos um pouco novos de mais para eu me ligar muito a eles em criança. No prédio onde morávamos não havia mais crianças pequenas. Deste modo acabei por ter uma infância com pouco convívio com outras crianças da minha idade, até ir para a escola, aos sete anos.

Brincava principalmente sozinha e jogava jogos de cartas, e outros jogos da moda dessa época, com os amigos dos meus irmãos e primos mais chegados e mais velhos, quando nos reuníamos.

Fui para a escola, para a 1.ª classe − atualmente 1.º ano de escolaridade − aos sete anos, como atrás referi. Fiz a 1.ª e a 2.ª classes num ano, o que sucedia frequentemente à época. E depois da 3.ª e 4.ª classes, ambas com exame oficial, fiz o exame de admissão ao Liceu.

Nessa altura pôs−se um problema. Eu tinha feito a instrução primária numa escola particular mesmo ao pé de casa. Comecei quase de início a ir e vir sozinha para a escola, mas a verdade é que, se quisesse, a minha Mãe podia ficar à janela a ver se eu chegava bem. Já para ir para o liceu, ou para um colégio particular, a situação era diferente. Seria longe de casa, e isso preocupava os meus Pais. Certamente por isso a minha Mãe, que tinha andado (e gostado muito de ter lá estado interna), no Instituto de Odivelas (IO), veio sondar−me a esse respeito. O meu Pai era oficial do Exército, o que facilitava a minha admissão numa escola destinada primordialmente a filhas de elementos das Forças Armadas. Ao princípio não gostei nada da proposta, até chorei, mas um belo dia resolvi aceitar a sugestão, e foi assim que acabei por entrar para o IO. Tinha então dez anos.

Esta solução, embora tivesse trazido consigo alguns problemas de adaptação, acabou por se revelar uma boa solução por várias razões:

− logo durante o 1.º ano do Liceu o meu Pai foi colocado em Madrid como Adido Militar, na embaixada. Regressou a Portugal por uns meses, mas foi de novo colocado na embaixada de Londres, de novo como Adido Militar. Só regressou a Portugal quando já eu estava no Técnico. Quer isto dizer que teria sido tudo mais complicado se eu não estivesse num colégio interno;

− a educação que o IO ministrava era muito completa. Tínhamos Latim, Ginástica, Bordados, Costura, Culinária, Puericultura, e mais outras disciplinas práticas. Os livros de estudo também eram diferentes dos do Liceu em várias disciplinas, e eram bons. Alguns até eram em francês, o que tinha a vantagem adicional de praticarmos a língua. Os programas curriculares eram diferentes dos do Liceu em geral; por exemplo, mesmo as alunas que queriam ir para Ciências tinham aulas de Português (Literatura) até ao fim do curso (7.º ano). Só me queixo de não fazer parte do programa Aritmética Racional, que me teria dado jeito ter aprendido;

− e foi extremamente importante para a minha formação humana, moral e religiosa.

Foi com muita tristeza que soube há poucos anos do encerramento da escola de excelência que era o Instituto.

No final do Liceu, estava de novo perante uma encruzilhada − que curso escolher. Eu sabia que havia hipóteses que não me agradavam, por exemplo, Medicina (é que eu desmaiava com facilidade ao ver sangue) e cursos que quase só dariam para o ensino, como as Matemáticas. Acabei por escolher Engenharia Química, no Instituto Superior Técnico (IST), o que mais uma vez foi uma boa opção, pois fez−me disfrutar de uma vida profissional muito interessante, embora, como é inevitável, com momentos melhores e outros piores.

Completei o curso com classificações elevadas, tal como já sucedera nos anteriores graus de ensino, e fui convidada, por indicação de um profes− sor que era amigo do gerente de uma fábrica de tintas, para fazer o estágio final de curso nessa fábrica. No fim do estágio, fui contratada para trabalhar no laboratório de desenvolvimento e lá fiquei. Nessa altura, ao contrário do que sucede hoje em dia, sentíamo−nos muito felizes se conseguíamos aquilo a que se chamava um emprego para a vida, ou seja, um emprego numa boa firma, onde nos pudéssemos manter sem pensar em andar a saltar de empresa para empresa, como agora é desejado por muitos recém−formados. Convém esclarecer que a indústria das tintas não é propriamente uma indústria química (embora por vezes o seja), mas sim uma formadora. Sobre ela apresento aqui breves noções.

No laboratório de desenvolvimento o que se fazia era formular novas tintas, geralmente a pedido dos Departamentos de Marketing ou de Vendas. E desenvolver novas tintas implicava escolher matérias−primas que parecessem adequadas para obter uma tinta com as propriedades desejadas e misturá−las adequadamente . Por vezes, havia reações químicas − por exemplo, no fabrico de vernizes a quente −, mas em geral era apenas uma mistura física. Após o fabrico da tinta no laboratório, ensaiavam−se as suas propriedades relevantes, físicas e químicas, e, sendo praticamente impossível chegar ao resultado pretendido à primeira tentativa, via−se quais as alterações que deviam ser introduzidas na formulação para que ela servisse o fim a que se destinava. Era um sistema de sucessivas tentativas, a que os ingleses chamam trial and error. Quando chegávamos a uma formulação que parecia prometedora, ela era ensaiada em obra, ou nas instalações de um cliente, conforme se destinasse ao público em geral ou a um cliente em particular. Neste último caso, poderia ser uma fábrica de automóveis ou de mobiliário. Em caso de aprovação da formulação, fazia−se a passagem à Fabril, com eventuais fabricos−piloto (de adaptação à escala fabril), se tal se justificasse. Portanto, o laboratório de desenvolvimento era o berço das novas formulações e dos seus melhoramentos.

Claro que nada disto era aprendido no IST. Desse modo a primeira coisa que tive de fazer foi aprender a teoria e a prática das tintas − propriedades das matérias−primas, métodos de fabrico das tintas, ensaios físicos e químicos utilizados para a sua avaliação.

Comecei com as tintas destinadas a clientes industriais. Lembro−me, por exemplo, de estudar uma tinta para pintar cantoneiras. Após isso, a fábrica em que trabalhava resolveu construir uma pequena unidade para fabrico de algumas matérias−primas necessárias para as tintas de construção civil e escolheram−me para ficar à frente da nova unidade. Aqui, sim, era um processo químico, muito interessante, e que me obrigou a fazer um estágio em Inglaterra na empresa que fornecia o know how. Aí, um dos técnicos, homem, admirou−se por ser uma senhora a desempenhar essas funções. “Como é que os operários a vão aceitar?”, perguntou.

Deu muito trabalho, mas foi uma experiência muito gratificante ter estado a dirigir essa pequena unidade fabril.

À medida que o pessoal foi sendo formado, as coisas começaram a correr sobre rodas; comecei a dedicar menos tempo a esta unidade fabril e voltei a trabalhar no laboratório de desenvolvimento das tintas − desta vez, nas tintas para a construção civil −; por fim passei mesmo a pasta ao técnico que me secundava e que assumiu a responsabilidade pela pequena fábrica de matérias−primas.

A vida num laboratório de desenvolvimento não é nada rotineira, há sempre problemas novos e alguns extremamente interessantes. Lembro−me de alguns que me entusiasmaram imenso:

− a racionalização de matérias−primas para a nossa fábrica associada em Moçambique, numa altura, após a independência, em que lhes era difícil importar estas substâncias;

− a colocação em funcionamento de um computador acoplado a um espetrofotómetro, que permitia identificar os pigmentos (pós coloridos que dão cor às tintas) melhores e mais económicos para obter uma dada cor. Não se admirem que diga “melhores e mais económicos”, pois esta é a verdade. Não é nada raro que se procure obter uma dada cor com pigmentos muito caros mas nem sempre muito bons, porque eles conduzem a cores mais puras, sendo depois necessário ‘sujar’ um pouco a cor com uma pequena quantidade de pigmento preto. O software instalado no computador acima referido permitia que se utilizassem pigmentos que conduziam a cores menos puras do que os outros, mas muitas vezes mais duráveis, sem correr o risco de obter uma cor demasiado ‘suja’. Este era um risco que o pessoal que fazia o acerto (“afinação”) da cor não gostava de correr, pois exigiria grandes quantidades de branco para levar a cor ao pretendido, aumentando assim largamente a quantidade de tinta produzida. Enquanto uma gota de preto tem um enorme efeito numa tinta (chamamos a isto ter grande poder tintor), uma gota de branco tem um efeito reduzidíssimo;

− a preparação de um sistema de tintagem para obtenção de uma grande variedade de cores nas lojas. Suponho não ser necessário explicar este sistema por estar atualmente vulgarizado;

− a implantação de um sistema de qualidade certificado na empresa.

Também tive de me deslocar várias vezes ao estrangeiro em serviço, por razões várias: França, Inglaterra, Suécia, Finlândia, Holanda, Espanha, Áustria, Alemanha, Itália, Moçambique, EUA e Canadá. Suponho que não falta nenhum. Como o meu marido não gostava de viajar, eu, quando possível, aproveitava o fim de semana para ver um pouco das cidades a que me deslocava (tal não saía mais caro à empresa por as viagens com fim de semana incluído serem mais baratas).

Entretanto, fui promovida no laboratório a Chefe de Departamento das Tintas para a Construção Civil e depois a Diretora Técnica. Durante algum tempo fui também Administradora da Empresa. Até essa data não tinha havido nenhuma senhora a desempenhar tais funções na empresa. Neste particular tive pena que as regras da empresa ditassem que os Diretores tinham de se reformar com 61 anos. Quando atingi esta idade, pediram−me para ficar mais uns meses a trabalhar para acompanhar ainda projetos em curso, mas em abril de 2002 vim mesmo para casa.

Falta−me agora falar da vida familiar e das minhas ocupações após a reforma.

Casei−me em 1969. Tivemos dois filhos, ambos rapazes, que se formaram também no IST. O meu marido foi piloto de aviões, mas teve de deixar de pilotar devido a problemas de saúde. Infelizmente faleceu de repente há uns meses.

Quando vim para casa, após a reforma, pude dedicar mais tempo à família, aos passeios com o meu marido, à leitura e... ao ponto de arraiolos. Não gosto de estar sem fazer nada, quando me sento no sofá para ver tele− visão. Bordar arraiolos é compatível com dar atenção à televisão e não força muito a vista. Fiz muitos tapetes e almofadas. Dei imensas almofadas feitas por mim − já lhes perdi a conta − e tenho pena de não ter fotografado todas. Atualmente, após enviuvar, foi−me possível procurar outro tipo de afazeres. Foi assim que me matriculei na Academia da Terceira Idade do meu bairro, nas disciplinas de Psicologia, que sempre me interessou, e de Pergamano, um trabalho artístico em papel vegetal especial que acho muito bonito.

E pronto. Parece−me que fiz o meu autorretrato. Mas talvez falte dizer que, de um modo geral:

− procuro ter uma visão positiva dos acontecimentos. Há uns anos caí em casa e parti uma vértebra. Não foi uma experiência agradável, mas o que é certo, e pensei−o logo na altura, é que tive muita sorte, pois escapei por poucos centímetros de bater com a cabeça no tampo de mármore do meu aparador;

− gosto de ajudar os outros;

− procuro meditar sobre os problemas da vida e ser coerente com o que penso;

− e, talvez por ser química, tenho uma grande preocupação ecológica.