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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

PIONEIRAS

Regina Mateus

Cristina L. Duarte*, Elisabeth Évora Nunes**

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, lduarte.cduarte@gmail.com

** Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal.


 

 

 

Fomos ao encontro da primeira mulher com a patente de brigadeiro-general em Portugal. Regina Mateus é médica, tal como a pioneira do voto em Portugal, Carolina Beatriz Ângelo. É a actual directora do hospital das Forças Armadas e foi lá que a conhecemos e tivemos uma conversa pontuada pelo valor da memória: do pai, de Moçambique, de quando na Figueira da Foz foi atleta federada de natação e remo.

Toda a família do pai, onze irmãos, de Gouveia, foi viver para Moçambique. Chegaram a ser cem pessoas da mesma família. Viajámos na máquina do tempo, e do espaço, e aterrámos na antiga Lourenço Marques (actual Maputo). A 7 de Março de 1966, nascia Regina Maria de Jesus Ramos (Mateus por casamento), na missão de São José, em cuja escola viria também a estudar durante boa parte da instrução primária (até à 3.ª classe).

Os pais de Regina passaram por uma situação de morte fetal, três anos antes do seu nascimento. Quando ficou grávida de novo, a Mãe só contou à família e amigos aos seis meses: “Quando eu nasci, ela já tinha 39 anos. Para a altura, eram uns pais-avós. Eu tratava-os por tu. Eles sempre tiveram o cabelo branco desde muito novos. À época, toda a gente achava muito estranho eu tratá-los por tu - papá, mamã, tu cá, tu lá. Eu era filha e como é que os tratava por tu? [Ela] só comprou tudo (enxoval), quando eu estava para nascer e viu que estava tudo bem. Nesse dia nasceram 36 crianças, contou-me ela. Eu era a única com imenso cabelo preto.”

A Mãe, uma beirã, hoje nos seus 91 anos, ficou órfã muito cedo. A mãe dela morrera afogada no rio Zêzere, com 32 anos. A mais nova das quatro irmãs tinha apenas seis meses. A irmã mais velha viveu sempre na aldeia. Maria de Jesus, mãe de Regina, era a terceira filha. Aprendeu a ler e a escrever sozinha. A única que estudou foi mesmo a mais nova.

Sobre quem teve influência na mulher que é hoje, Regina Mateus responde-nos sem hesitações: “A Mãe. Com 28 anos meteu-se num navio - um mês de navegação até Lourenço Marques. Conheceu o meu pai, Martiniano, e seis meses depois estava casada. É uma mulher de garra. As irmãs do meu pai também eram mulheres fortes. Era, aliás, uma família matriarca. Uma delas foi a primeira mulher a tirar a carta em Moçambique. Outra, a minha madrinha, foi uma das primeiras mulheres a tirarem uma licenciatura em Moçambique. Tirou Medicina Veterinária. A minha família foi para Moçambique sem nada, construíram lá a vida, voltaram sem nada.” Alguns dos familiares foram para a África do Sul, onde reconstruíram a vida, lá permanecendo.

Quando Regina e seus pais regressaram a Portugal, “o dinheiro na carteira era zero. Tivemos de recorrer ao Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN). Em 1976 já não havia vagas de alojamento na região de Lisboa, estava tudo esgotado. Tenho essa memória. Tudo nas filas, para pedir o apoio, e a preencher os papéis. Fomos para a pensão Portugal na Figueira da Foz, onde havia a única vaga”.

Depois de Moçambique, a família ainda foi uns meses para a Rodésia, onde Regina Mateus continuou a 3.ª classe, com uma professora inglesa, Miss Ewan, mas foi na Figueira da Foz, onde chegou em 1976, que a terminou. Os estudos preparatório e secundário prosseguiram na Figueira. O seu pai viria a morrer novo, com 56 anos, quando Regina tinha 12 anos.

No liceu, a opção escolhida foi desporto, já que era atleta federada de natação, e depois de remo. “A minha intenção era ser treinadora de natação. À última hora, mudei de ideias e fui para Medicina.” Alguém a influenciou nessa tomada de decisão?, perguntámos. “Eu namorei seis anos com um rapaz, Florêncio, cujo pai era médico, o Dr. Granada, que trabalhou em Angola e Moçambique. A família era de Coimbra.” Sabendo que Regina Mateus era boa aluna, perguntava-lhe: “Porque não vais para Medicina?”

Uns anos depois vamos então encontrá-la na Universidade de Coimbra, onde Regina Mateus se licencia em Medicina. Quando lá chegou, a vida de atleta ficou em pausa, pois “tinha de passar horas agarrada aos livros. Se não fizesse isso, não tinha hipótese. Os três primeiros anos de Medicina foram difíceis. No quarto ano já observávamos doentes, fazíamos histórias clínicas, aplicávamos aquilo que andávamos a aprender. Foram seis anos de curso, depois dois de formação geral - agora é de apenas um”.

É como cirurgiã-geral que Regina Mateus afirma: “A maior parte das vezes temos a solução para o problema, e rápida. Identificamos o problema, operamos o doente, e resolvemo-lo. Às vezes não é assim. Sobretudo quando se trata de uma neoplasia.” Mas conclui dizendo que, em Portugal, somos muito bons na Medicina e na Enfermagem.

Regina Mateus pertenceu ao Grupo de Trabalho Feminino da Força Aérea (agora denominado Grupo de Trabalho sobre Perspetiva de Género da Força Aérea). “O primeiro Ramo das Forças Armadas a permitir o ingresso das mulheres foi exactamente a Força Aérea. Estávamos em 1988. Houve várias adaptações, do ponto de vista logístico, mas também de aceitação, por parte dos homens, já que havia alguma resistência. Nesse grupo de trabalho, éramos quatro mulheres: uma jurista, uma de Administração Aeronáutica (ADMAER), uma médica e uma piloto-aviador.” A Coronel de Administração Aeronáutica (COR ADMAER), Maria João Oliveira, encontra-se a frequentar o Curso de Promoção a Oficial-General, sendo a próxima candidata ao posto de general.

Regina Mateus conta-nos que no último inquérito em que colaborou no referido Grupo de Trabalho, feito na sua unidade à data, Base do Lumiar, registaram-se duas situações engraçadas: “Quando fomos apresentá-lo ao comandante da unidade, ele quis ler o inquérito todo ao pormenor. Uma das perguntas era se as mulheres deviam participar em combate e, claro, todas respondiam que sim. Ele tinha estado na guerra, em África, com as enfermeiras-paraquedistas e disse: ‘Nós, os homens, temos um certo comportamento de protecção em relação às mulheres, instintivamente’. Com a presença das mulheres no teatro operacional - acho que foi na Guiné que ele esteve com elas -, a primeira preocupação, quando havia um ataque à unidade, era saber onde estavam as mulheres. Isto pode comprometer a capacidade de reacção da força, os homens estarem preocupados com as mulheres. Primeiro, saber onde elas estão, protegê-las, e depois reagir ao ataque. E isso não devia acontecer.” Talvez porque elas sejam uma força de paz, em qualquer cenário onde se encontrem? - a pergunta que ficou por fazer…

No mesmo inquérito, perguntava-se ainda se havia ou não discriminação nas Forças Armadas. Algumas militares responderam afirmativamente, dizendo que eram as mulheres que se davam à discriminação positiva. Se havia um peso pesado a carregar, eram eles que tinham de o fazer, em vez de serem, por exemplo, duas a carregar. “Claro que fisicamente somos diferentes. Mas elas achavam que algumas mulheres se davam de alguma forma à discriminação; querem ser ajudadas e não deviam. Foi o último inquérito em que participei e achei graça à reacção.”

Todavia, do seu ponto de vista, com 25 anos de Força Aérea, Regina diz que nunca sentiu qualquer tipo de discriminação, positiva ou negativa. O mesmo em ambiente fora da saúde, quando era a única mulher. Notou só no seguinte: “Se havia um grupo de homens e eles usavam aquele tipo de vernáculo [que usam] quando estão juntos, quando eu chegava, pediam desculpa. Nunca conheci nenhuma militar que me tenha dito que tenha sido discriminada.”

Até por isso, foi benéfica a entrada das mulheres nas Forças Armadas, onde cada vez são em maior número. Foi muito positivo, diz-nos. Todos por um, um por todos, seja homem ou mulher. “Se estamos numa força com um objectivo, o objectivo é comum, é colectivo.”

UM DIA COMO OS OUTROS NA VIDA DE REGINA

Desde que esteve na sua segunda missão no Afeganistão, tem dificuldade em dormir, e acorda bastante cedo. “Estávamos alojados em contentores metá- licos. Como tenho o sono muito superficial, acordo com muita facilidade.

Eu tinha um quarto só para mim, como a enfermeira tinha um só para ela. Em cima, dormiam as praças, que tinham de acordar às quatro para ir para o avião, para a missão. Assim que elas desciam a escada metálica, fixa à parede exterior do meu quarto, eu acordava logo. Então dormi muito pouco nessa missão.”

Como deixou de fumar, dorme também pior. É uma ansiosa, confessa. O tabaco acalmava-a. Mas tinha de deixar de fumar, por razões evidentes. “Porque faz muito mal. Então, acordo muito cedo. Às cinco estou acordada. Fico por ali. Às seis estou fora da cama. Vou pôr a máquina da loiça a funcionar, porque tenho bi-horário. A da roupa ficou a lavar durante a noite. Depois, vou de pijama, casaco e sapatilhas, à rua (ainda deserta a esta hora) com o cão; é rafeiro. Foi o meu marido que o apanhou na rua, abandonado. Mas já tive quatro cadelas. Gosto imenso de animais. O meu pai era caçador, em África. Tinha perdigueiros. Temos de enquadrar na época. Sou contra a caça no mundo ocidental.”

Como mora em Sassoeiros, Carcavelos, e não gosta de apanhar trânsito, sai cedo. Antes, ainda tem tempo de comprar o pão, estender a roupa, tomar banho, pôr a mesa para o pequeno-almoço da família, que inclui a mãe, que vive com ela, e sair às 7h15, para o Hospital das Forças Armadas, no Paço do Lumiar, onde chega às 8h00. “Fardo-me e começo a trabalhar.” Falando um pouco sobre vestuário militar, e começando pelas botas: quando chegou à Força Aérea, estávamos em 27 de Setembro de 1993. “Começámos a recruta na Academia da Força Aérea, em Pêro Pinheiro. Não havia 36. O meu número aliás é 35,5 e por vezes é um problema: não serve o 35 nem o 36. Mas isso resolveu-se com duas meias grossas. As calças não tinham cós, como a das senhoras têm agora, e eram de um tecido muito mais espesso do que o actual.” O equipamento com que faziam a recruta era diferente da farda de saída, adaptado ao exercício físico. Mas, no ano seguinte, já havia botas 36, e rapidamente também se fizeram calças com cós. Quando chegou à Academia, já havia mulheres naquela Força. Por exemplo, Dinah Azevedo, Tenente-Coronel Piloto-Aviador, que é, actualmente, Assessora do Presidente da República. No quarto ano, estava já Paula Costa, que foi a primeira piloto feminina das Forças Armadas Portuguesas. O curso na Academia, para os pilotos, é de cinco anos. É uma licenciatura em Ciências Aeronáuticas. Como já era licenciada em Medicina, Regina Mateus fez apenas o Estágio Técnico-Militar e começou a trabalhar como médica militar. Nessa qualidade, visitou já vários palcos de conflito. Esteve no Afeganistão duas vezes, em 2008 e 2009. “Estive a prestar apoio sanitário aos 70 militares da Força Aérea que estavam destacados. Nessa unidade em que estávamos destacados (2009/10), havia um hospital da Organização do Tratado do Atlântico Norte [NATO], onde tínhamos uma equipa portuguesa com pessoal de saúde dos três ramos das Forças Armadas. A NATO pediu a Portugal que colaborasse num hospital que foi instalado no aeroporto de Cabul, para os militares da NATO vítimas da guerra. Nesse hospital, recebiam as vítimas que eram evacuadas por via aérea, por helicóptero, vítimas do combate directo; depois de estabilizados eram evacuados para o país de origem.”

Regina Mateus participou também numa missão de cooperação técnico-militar em São Tomé e Príncipe, em 1994, durante dois meses, dando apoio sanitário aos nossos militares, mas também à população, à prisão, aos militares são-tomenses e à polícia. “Ao tentarmos ajudar as populações nos seus territórios, estamos a evitar a guerra.” Nas outras missões em que participou, na Lituânia em 2007, por exemplo, de policiamento aéreo, não havia conflito. Trata-se de uma colaboração que prevê uma escala rotativa de presença de esquadras de voo, entre os vários países da NATO, para a qual Portugal tem contribuído regularmente.

Em tempo de paz, a prioridade é o seu trabalho, o dia-a-dia e a famí- lia. “Se houver uma guerra, e formos enviados para teatro operacional, o desígnio é defender o país e proteger a população portuguesa. A nossa missão é defender a pátria e temos a nossa vida dedicada exactamente a isso. Como está escrito no juramento de fidelidade, mesmo com o sacrifício da própria vida.”