SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número41Elvira Fortunato: Vice-Reitora da Universidade NOVA de LisboaRegina Mateus índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

ENTREVISTAS

Lucinda Costa Fernandes*

De Moçambique a Setúbal Uma antropóloga goesa fala sobre o seu trabalho e sobre a vida das Mulheres

Ana Ribeiro da Silva**

* Coordenadora do Museu do Trabalho Michel Giacometti em Setúbal.

** Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, anaribeirodasilva@gmail.com


 

 

 

Numa fábrica conserveira de Setúbal do início do século XX, Lucinda Costa Fernandes, antropóloga de formação, faz soar a sirene que nos impõe um silêncio de espanto enquanto propaga pela cidade um apelo rotineiro: foi, durante décadas, o chamamento das mulheres ao trabalho nas fábricas. Está criado o cenário para receber Faces de Eva no Museu do Trabalho Michel Giacometti, etapa do nosso percurso pela cidade do Sado, em dia dedicado a evocar Ana de Castro Osório (1872-1935). Repetimos a visita, desta feita para conhecer melhor a nossa anfitriã. Tendo iniciado funções aqui há vinte anos, é atualmente responsável-técnica deste espaço museológico, um dos mais visitados do país e uma referência de boas práticas e inovação, premiado pelo Conselho da Europa.

Ostentando um sorriso que nos abraça, Lucinda acolhe-nos pontual, ao final do dia, depois de ultimar os preparativos de uma exposição a inaugurar brevemente. Ainda assim, é com um entusiasmo que não acomoda fadigas e sem pressas que nos concede uma entrevista. Ficámos a conhecer este projeto museológico e também a sua história de vida. Em resultado, apresentamos uma narrativa pontuada pelo discurso direto.

Uma fábrica num bairro junto ao rio

Estamos na fábrica Perienes (nome do último proprietário), edifício situado junto à Porta do Sol, uma das entradas da muralha medieval da, então, vila, de onde se vislumbra o rio. É também amplamente visível de vários pontos da cidade a chaminé em tijolo, altíssima e bem conservada, que identifica o edifício de quatro andares. Aqui se encontra instalado o Museu, projeto inicialmente liderado pelas museólogas Ana Duarte e Isabel Vítor, e atualmente coordenado por Lucinda.

A antiga fábrica de conservas de peixe, indústria onde as mulheres representavam o grupo mais numeroso, presente na maioria das etapas de produção das conservas, permitiu ao Museu a singularidade de contar uma história pouco ouvida, a do acesso das mulheres ao mundo do trabalho. De facto, ainda que a maioria das mulheres tenha, desde sempre, trabalhado (no campo, no comércio, nas fábricas… e/ou em casa), raras vezes surgiram nos relatos de quem tinha por ofício construir a Memória.

O imóvel foi adquirido pela Câmara Municipal de Setúbal para albergar a coleção etnográfica de Michel Giacometti (1929-1991), reunida, em 1975, por alunos do Serviço Cívico Estudantil, sob a supervisão do etnomusicólogo corso, que, no final da década de 50 do século passado, adotara Portugal. Giacometti acompanhou pessoalmente a organização da exposição “O trabalho faz o homem”, que em 1987 apresentou mais de mil peças e definiu a vocação do futuro Museu do Trabalho de Setúbal. O projeto da sua criação estava em curso quando o seu mentor morreu, e, em sinal de homenagem, passou a denominar-se Museu do Trabalho Michel Giacometti.

O edifício beneficiou de um processo de recuperação e requalificação para se adaptar à nova funcionalidade. Em 18 de maio de 1995 (Dia Internacional dos Museus) é inaugurado. “Integrado num antigo bairro de salineiros, pescadores e operárias conserveiras, um dos nossos primeiros projetos ‘Olá, vizinhos’ surgiu ao registarmos o desinteresse das gentes das Fontainhas em visitar o Museu, instalado na fábrica ao abandono por tanto tempo. Então, batemos literalmente à porta das pessoas para compreender a sua falta de curiosidade em conhecer o espaço agora renovado. Por um lado, confirmámos a opinião corrente sobre os museus enquanto ‘depósitos de objetos’, mas, por outro, ouvimos também histórias de dor contadas pelas mulheres que trabalharam na fábrica e que não queriam rememorar esses tempos de dificuldades”. Alguns desses relatos encontram-se agora plasmados nas paredes do Museu.

As mulheres da fábrica

“Por coincidência, 1995, o mesmo ano em que o Museu foi inaugurado, marcou o fim da última fábrica conserveira de Setúbal, a Vasco da Gama. Nós já tínhamos iniciado a recolha de vários equipamentos de fábricas em processo de encerramento. Ou seja, o que hoje apresentamos neste espaço corresponde à sua função original, mas resulta de uma recolha que abrange diversas fábricas. Quando o Museu se instalou aqui, permitiu-nos contar de outra forma a história da indústria conserveira.”

A indústria conserveira de Setúbal tem uma existência secular, foi um dos maiores centros conserveiros da Europa e chegou a ter 140 fábricas a laborar em simultâneo. “Esta indústria iniciou-se em 1855 e beneficiou da chegada dos franceses, que trouxeram, de Nantes, as novas técnicas de conservação e de soldadura, que viriam a conhecer um grande impulso com as duas Guerras Mundiais, já que as conservas de Setúbal faziam parte da ração de milhares de soldados.” Entre os demais capítulos que Lucinda acrescentou à história da cidade, refiram-se ainda as lutas laborais, “icónicas, porque, por exemplo, as greves dos soldadores faziam parar tudo, já que eles eram responsáveis pelo fechamento das latas. Sem a sua intervenção, o peixe acabava por apodrecer, provocando um prejuízo enorme”.

Lucinda destaca, porém, as reivindicações das mulheres, por terem sido pioneiras. “Alguns direitos ainda estão por cumprir, mas devemos-lhes muitíssimo, porque elas foram as primeiras a lutar por melhores condições no meio laboral, depois de viverem situações inimagináveis: trabalho precário, noturno e mal remunerado, trabalho muito duro, mãos rasgadas no esviscerar das sardinhas e geladas na água até ficarem insensíveis, assédio sexual. Recordo um dos testemunhos gravados no nosso Centro de Memórias[[1]], o de uma mulher que esteve na fábrica até às três da manhã, e às quatro estava a ter o filho no Hospital.”

Para assinalar a temática das reivindicações laborais, encontra-se, junto ao vasto mural que exibe fotos e frases das “Mulheres da Fábrica”, uma réplica miniaturizada de uma estátua erguida num largo da cidade que representa Mariana Torres: “Esta conserveira, juntamente com outro jovem operário, foi baleada, em 1911, na primeira greve republicana em que as mulheres se empenharam, sendo estas as primeiras vítimas da recém-criada Guarda Nacional Republicana, no ‘Outubro Vermelho’ de Setúbal”. Para entender a vivência das operárias “que passavam os dias a correr entre fábrica e casa, porque acumulavam as tarefas relacionadas com o cuidado da casa, do marido e dos filhos”, é necessário compreender o processo produtivo de conservas de peixe, numa época em que não se fazia o congelamento dos alimentos. O Museu explica-o, exibindo utensílios e maqui- naria utilizados em cada fase de preparação das conservas até à fase final de litografia (impressão patente na lata, da imagem que identifica produto e fábrica de origem), e apresenta também a própria evolução tecnológica que se foi operando, substituindo o trabalho manual (sobretudo executado por mulheres). “As exposições têm o potencial de ampliar, aprofundar e reestruturar esquemas conceptuais e mentais dos visitantes, bem como interpretar, procurar significados. Permitem analisar, refletir e sintetizar.” Lucinda complementa a imagem mental que a exposição nos produz:

“Não existia um horário de trabalho fixo, a jornada era determinada pelo momento da entrada do peixe nas fábricas e pela quantidade de pescado;

1. Centro de Memórias: “trata-se de dar lugar ao imaterial no Museu, através da construção de arquivos de história oral”.

assim, poderia começar de dia ou de noite. Nem havia dias certos, porque a faina piscatória dependia das condições do tempo e do período de defeso que condicionavam a captura de peixe. Portanto, as mulheres eram avisadas através da sirene, diferente consoante a fábrica, que assinalava a entrada de peixe e marcava o início da laboração, que era contínua enquanto houvesse peixe para embalar. As que tinham filhos pequenos traziam-nos com elas.” Na exposição, está patenteada esta realidade: duas caixas de madeira - daquelas onde se transportava o peixe - estão dispostas lado a lado; uma, voltada para cima, contém um xaile (“ali se acomodavam as crianças pequenas”); outra, voltada para baixo, servia de apoio para “as raparigas que, muito novas, por volta dos dez anos de idade e sem altura para chegarem às bancadas de trabalho, iniciavam a vida ativa, trabalhando ao lado das mães e avós, ajudando na magra economia familiar”.

Outras memórias: “Mercearia Liberdade” e “Tardes Interculturais”

Uma página mais recente deste Museu, escrita em 2002, diz respeito à doação da “Mercearia Liberdade”, que se encontra instalada num piso inter- médio do edifício. Trata-se do estabelecimento fundado por José e Júlia Coluna Gonçalves, no início do século XX, para servir a elite lisboeta que habitava a recém-criada Avenida da Liberdade. Inclui, não só toda a estrutura em madeira (estantes e balcão), como a magnífica caixa registadora, utensílios, vasilhame e embalagens da época, “permitindo salvaguardar um precioso património, relacionado com os hábitos quotidianos de comércio e sociabilidade da sociedade portuguesa ao longo do século passado e, dar a conhecê-lo, de uma forma pedagógica, através das visitas guiadas e das visitas efetuadas pelos nossos Serviços Educativos”.

O ano seguinte, 2003, marca o início de uma atividade, cara à coordenadora do Museu, as Tardes Interculturais, “programadas para o último sábado de cada mês, para criar uma rotina museal”. São a expressão da vocação deste projeto museológico como Museu participado: “Os Museus foram, ao longo da História, instrumentos de poder, com comunicação assimétrica, hierarquizada e unidirecional, sem participação dos utentes, reduzidos à condição de ‘públicos’. Aqui, pretende-se exatamente o con- trário, transformando o que poderia ser um instrumento de poder num instrumento comunitário, a programação em participação, a erudição em informação e a presença passiva em debate e convívio.”

Lucinda sublinha que a geografia humana da cidade, que acolhe dezenas de etnias e nacionalidades (“ciganos, naturais dos países africanos de língua oficial portuguesa, franceses, romenos, brasileiros, goeses, timorenses, chineses, etc.”), potencia esta vertente, que descreve como “implícita na própria génese do Museu, na sua função social de articulação das suas diversidades, de animação cultural e de estimulação da convivialidade e de museologia social”. Assume ainda que as Tardes Interculturais, enquanto projeto “democrático e participativo com as comunidades locais, realizado em coprodução e coautoria com instituições e associações culturais, ao longo de 15 anos, tendo já chegado quase à centena”, encontram-se em permanente fase laboratorial. Como exemplo destas “pontes de comunicação com a comunidade”, refere as aulas de português lecionadas no Museu a estrangeiros residentes na cidade, que depois transportam “para cá a música, as danças ou a gastronomia dos seus países de origem, como foi o caso, logo no início, da comunidade russa”.

O grande entusiasmo com que Lucinda se entrega a estas atividades em particular, confessa, derivam da sua história pessoal. A sua família, originária de Goa, chega à Beira, Moçambique, terminada a II Guerra Mundial, “com largas dezenas de outras famílias goesas”. Quatro décadas mais tarde, “voltámos a fugir, agora não apenas da fome, mas também dos conflitos políticos locais, rumo a Lisboa, muito depois da descolonização, em 1985, onde chegámos tendo perdido todos os nossos haveres”. São vivências de mudanças, de novos lugares, de contínua adaptação e superação, que ajudam a explicar, retomada a possibilidade de estudar, o interesse pelas diferentes sociedades humanas, optando por Antropologia Cultural, formação que complementou com o mestrado em Museologia e Património, “sempre na Universidade Nova”.

A sua atividade enquanto investigadora é reveladora da vocação e motivação intercultural e denota a valoração de uma metodologia etnográfica que implica proximidade e comprometimento, tendo resultado em diver- sas publicações: “Muitos fios tecem a imaterialidade de uma festa” (artigo em colaboração, resultado de uma investigação de cinco anos dedicada ao Círio de Nossa Senhora do Rosário de Tróia), “Biografias de cinco gerações de pescadores do Tróino”, “O sal no cerne da identidade setubalense”, “A identidade marítima de Setúbal”, “A Primeira Revolução industrial de Setúbal, “O cante alentejano”, “Os encontros anuais dos Goeses da Beira e seus amigos, na Grande Lisboa - Património Identitário e sua reconstrução cultural pós-colonial” (dissertação de mestrado).

Lucinda define-se assim: “A diversidade habita-me, faz parte de mim, assim como esta necessidade de pôr as pessoas em contacto, em diálogo. Vejo o diálogo como uma ferramenta para a descoberta e para a interpretação, através do levantamento de questões e da procura conjunta de respostas, porque cada pessoa transporta a sua luz, mas todas juntas iluminam mais. Somos como pequenos pontos, só fazemos sentido quando nos encontramos, como numa renda.”

A propósito, a antropóloga lembra uma Tarde Intercultural dedicada à renda de bilros de Setúbal, um dos ex-libris do Museu e tema da exposição “Rendas de Bilros, fios que tecem rendas do mar”. “O título da exposição evoca uma manifestação identitária das comunidades piscatórias, onde se verificava a feitura das redes, dominantemente masculina, e a urdidura da renda de bilros, um ofício feminino. Representou também a nossa singela homenagem à última rendilheira residente, Fernanda Ventura, que integrou a Oficina de Rendas do Museu, juntamente com outras quatro rendilheiras já falecidas. Prestes a reformar-se, deixa-nos um legado maravilhoso.”

Em permanente evolução, as Tardes Interculturais foram introduzindo novas perspetivas temáticas e “diferentes escalas identitárias, do bairro ao município e do distrito ao país, o que nos tem permitido, por exemplo, promover o convívio nos bairros sociais de Setúbal, onde vivem milhares de imigrantes e portugueses ciganos, com quem trabalhamos semanalmente”.

“Velhas profissões, novas mulheres - o que mudou?”

Lucinda relata-nos um dos contributos recentes do Museu para a leitura social do mundo do trabalho na perspetiva das mulheres, integrado na comemoração do Dia Internacional da Mulher (2018). “Tratou-se de debater o modo como as mulheres se enquadram e são encaradas quando se inserem em profissões e atividades tradicionalmente associadas aos homens. Reunimos testemunhos tão diversos como o da única mulher motorista, entre oitenta profissionais, de veículos pesados do nosso município, ouvimos uma poetisa que também trabalhou na construção civil, quatro mulheres tatuadoras, uma intérprete de guitarra portuguesa, uma militar da GNR e fadista, uma pescadora, uma agente da PSP…”

Esta Tarde Intercultural incluiu uma palestra sobre a evolução da empregabilidade das mulheres em Portugal desde a I República a 2012, por Mónica Leitão, representante do Movimento Democrático das Mulheres. Lucinda esclarece que se tratou de uma comemoração no âmbito de “Março, Mulher”, iniciativa com várias manifestações nos equipamentos culturais do município, e acrescenta ser intencional a visibilidade que dá às mulheres e aos seus temas - preocupação que encontra eco na sua equipa, constituída por vinte pessoas, mulheres e homens, que se traduz em iniciativas realizadas durante todo o ano.

Lucinda recorda outro exemplo relacionado com a notoriedade devida às mulheres: “Gravámos o testemunho de Maria Arminda Santos, setubalense que integrou o primeiro grupo de seis mulheres enfermeiras-paraque- distas, formado nos anos 60 do século passado, e a primeira mulher militar em Portugal. Este encontro inspirou-nos a apresentar o seu nome como candidata à Medalha de Honra da Cidade na categoria ‘Paz e Liberdade’, o que veio a acontecer, tendo recebido a devida homenagem a 15 de setembro [2018].”

A terminar a nossa conversa, fala-se de futuro. Lucinda menciona a vontade de criar a nível da equipa um site próprio para o Museu, “uma montra para o mundo, com grande impacto no trabalho que desenvolvemos de divulgação da nossa história e atividade, muito útil quando apresentamos o Museu em conferências”. Mostra-nos também a programação já aprovada pela autarquia para 2019: “[Está] tudo preenchido, mas encontra-se sempre um espaço para as vossas propostas.”

Obrigada e até sempre, Lucinda.

Entrevista realizada a 4 de outubro, 2018