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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

DIÁLOGOS

Natália Correia entre a ilha e a utopia*

António Vilhena**, Deolinda Adão***

* O texto conjunto que aqui se apresenta resulta do diálogo havido entre dois conhecedores de Natália Correia, a quem pedimos que elegessem alguns aspectos relevantes na sua vida e/ou obra. (N.E.)

** Curador. Casa da Escrita, 3000-225 Coimbra. antonio.m.vilhena@gmail.com

*** Executive Director. University of California - Berkeley, Center for Portuguese Studies, CA 94720, Berkeley, USA. deoadao@berkeley.edu


 

Natália Correia atravessou o século XX como se a miopia do seu tempo lhe reservasse as janelas de um templo vindouro, onde a palavra fosse a chama poética. Viveu rodeada de gente que a admirava mas não a compreendia, de críticos invejosos e mesquinhos, de jovens que prometiam amá-la num “futuro que houve dantes”. Viveu entre a ilha e a utopia, emergiu para mostrar o avesso da contemporaneidade, foi feminina e não feminista, assumiu causas e agigantou-se pelas liberdades. Este é o século da sua desocultação, onde o preconceito académico lhe deve abrir as portas e estudar a sua obra. Se podemos afirmar que a poesia é uma presença constante em Natália Correia, que permeia toda a sua obra literária, também é certo que a sua ideologia político-social sistematicamente norteia a escrita, seja esta poesia ou prosa. Esta escrita revela-se tão rebelde e audaz quanto a própria autora e transporta-nos desde o momento inicial da descoberta poética, que coincide com o momento de construção do eu lírico timidamente presente naquele que conhecemos como o seu primeiro poema publicado “Manhã cinzenta (à partida de S. Miguel)”, até ao apogeu do engajamento político, com o seu poema satírico destinado ao deputado João Morgado, elaborado e lido na Assembleia da República a 5 de abril de 1982, quando do debate sobre a despenalização do aborto.

Assim, a audácia levou Natália Correia a compilar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica que viria a publicar em 1965, em pleno Estado Novo, e sobre a qual escreveu David Mourão-Ferreira:

“Finalmente!” “Até que enfim!” “Já não era sem tempo!” - Com exclamações como estas, e outras semelhantes, será decerto recebido o aparecimento da presente Antologia por todas aquelas pessoas de boa vontade, de consciência límpida, que já existem neste país… ninguém melhor do que Natália Correia com a profundidade e com a extensão da sua cultura, com a indiscutível garantia do seu génio poético, com as provas exemplares da sua coragem cívica poderia superiormente desempenhar-se desta empresa. (Correia, 1965, badana)

Foi esta mesma coragem cívica que levou Natália Correia a participar ativamente em movimentos de contestação político-social desde os tempos de liceu e em movimentos estudantis contra o conservadorismo dos professores e do sistema, passando pela sua atividade antirregime como cidadã e como artista, culminando na sua militância partidária que a levaria à Assembleia da República, em primeira instância com afiliação ao Partido Social-Democrata (PSD), por convite de Sá Carneiro, e posteriormente como deputada independente.

O seu descontentamento político-social revela-se na sua obra, por exemplo em Cântico do País Emerso, publicado em 1961, em cujo texto de abertura (“Memória da minha comunhão poética com a saga do cavaleiro da Nossa Senhora da Liberdade”) a autora utiliza o poema “O Mostrengo” de Fernando Pessoa para fazer um elogio a Henrique Galvão:

E o Mostrengo que estava no país de breu que era o povo em chaga do Capitão três vezes rodou imundo e disse:

- Quem vem pedir o que só eu posso

Que os medos escorro desta nação?

E sem do leme as mãos erguer

Dentro de um relâmpago disse o capitão:

- Aqui ao leme sou mais do que eu

Que o nome tenho de Henrique Galvão.

Sou um povo que quer o país que é seu

e mais que o Mostrengo que me a alma teme

e roda nas trevas da nação cativa

manda a vontade que me ata ao leme

que no coração dos lusos está viva. (Correia, 1999, p. 199)

Como não poderia deixar de ser, o 25 de Abril de 1974 provocou em Natália Correia uma euforia, que desenvolveu em prosa e poesia (por exemplo, nos textos “Aprilis” (Correia, 1999) e “Ó liberdade brancura do relâmpago” (Correia, 1999)), e mais diretamente no seu diário, na entrada que corresponde ao dia 27 de abril de 1974:

Enchem-se as ruas de júbilo. Destemem-se os corpos. Apertam-se mãos desconhecidas. Trocas de sorrisos e cravos gravam a marcha da liberdade nesta hora de prata. (Vaz, 2003, p. 83)

Assim como na referente ao dia 1 de maio do mesmo ano:

Uma gigantesca manifestação rompe da Alameda Afonso Henriques e num só passo de dança, pelas ruas em festa a conduz com seu pífaro bêbado ao Estádio agora chamado 1.º de Maio… Funde a pluralidade ideológica expressa na diversidade dos dísticos. Uma única e exaltante vivência: liberdade… Qual Maio de 68! Ao pé disto, uma festarola de miúdos. Aqui não há idades. É o Povo. Sem gerações, sem classes. É o povo, repito, arrastado pelo vendaval da sua festa que já entra pela madrugada. (Correia, 2003, p. 85)

É pois este o legado sociopolítico de Natália Correia - a celebração da liberdade na sua plenitude de igualdade e dignidade humana.

NATÁLIA CORREIA UNIVERSALISTA

Mas Natália Correia era universalista, no sentido em que Thomas Mann era alemão - “Onde estou, está a cultura alemã” - quando chegou aos EUA em 1938, e na mesma linha de George Steiner quando diz que “Onde estou, está a cultura europeia”. Natália reforça a sua convicção:

Toda a nossa relação cultural com o Mundo

é perspetivada no universalismo atlantista. (Correia, 2003, p. 12)

O Atlântico é, assim, a janela que abriu caminho aos descobrimentos - no seu entender, o começo da Idade Moderna dos povos ibéricos -, o horizonte que desnuda a bruma com vocação épica e trágica. O lugar de Portugal não foi ser menos terra, antes mais longe através da maritimidade - expressão sua -, a qual se “agiganta n’Os Lusíadas sem, contudo, silenciar as tonificações do Mediterrâneo e da interioridade” (Correia, 2003, p. 10). Para a escritora, “interioridade” é sinónimo de lágrimas, de sofrimento, de dor, cristalizada na figura do Velho do Restelo. Para ela, a voz da maritimidade encontra o seu mais sonoro eco na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. É sempre com olhar crítico que Natália Correia desoculta a lâmina para afirmar o húmus cultural de Portugal. Com Miguel Torga, com profundas afinidades políticas na defesa do iberismo, tece o manifesto da defesa de uma visão que una o Mediterrâneo e o Atlântico.

Natália não era nacionalista, era patriótica. O nacionalismo apouca a universalidade que há em nós, o patriotismo é o diálogo maritimista, a “inserção do mar português numa visão metafísica e profética”, lembrando que a “Ode marítima”, do heterónimo Álvaro de Campos, não pode ser lida fora do conjunto da obra de Pessoa, numa claríssima comparação com o que considera alienar “a mística nacionalista dos Descobrimentos”, “atrofiando as proporções da mediterraneidade e da continentalidade, nas quais se afundam as raízes da nossa identidade original” (Correia, 2003, p. 12). O seu olhar universalista leva-a a reconhecer que a nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no universalismo atlantista, ou seja: “daqui eu vejo o Mundo que habita dentro de mim”.

Mas a sua visão ibérica, a sua hispanidade, perseguia-lhe os passos rumo a uma comunidade ibero-afro-americana ecuménica, atlantista e pluricontinental. Esta comunidade, centrada nas línguas portuguesa e espanhola de setecentos milhões de falantes, serviria para exorcizar os medos de Portugal e Espanha, valorizando o muito que nos une para fazermos frente a uma União Europeia onde a solidariedade cultural é frágil.

O pensamento visionário de Natália faz jus à mulher que recusa a anorexia cultural e se revê em Shelley: “Somos todos gregos”.

NATÁLIA CORREIA E A CONSTRUÇÃO PÓS- MODERNA DO FEMININO

Natália Correia é uma das escritoras portuguesas (poeta, romancista e ensaísta) que aborda diretamente a construção e definição do feminino, tanto na sua obra literária, como na sua atividade civil e política. Natália nasce a 13 de setembro de 1923, em Fajã de Baixo, ilha de São Miguel, onde reside até à idade de 11 anos, quando se muda com a mãe e a irmã para Lisboa. Publica o seu primeiro poema em 1946 e desde esse momento até à sua morte em Lisboa, a 16 de março de 1993, publica vários livros de poesia, ensaio, romances, textos dramáticos, chegando a escrever o libreto de uma cantata.

A produção literária de Natália é numerosa e inovadora dentro de uma estrutura política ditatorial, que consistentemente controlava a pro- dução cultural portuguesa. Vários dos seus textos, como é o caso da peça O Encoberto ([1969] 1977), são apreendidos pela censura, e em 1970 a autora é julgada pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, vindo a ser condenada a três anos de prisão, embora a pena tenha sido suspensa. Paralelamente à sua atividade literária, Natália também desenvolve uma atividade política que a leva a assinar as listas do Movimento de Unidade Democrática em 1944, a apoiar a candidatura de Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958, a integrar a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática em 1969, e a ser eleita deputada à Assembleia da República em 1979 e em 1987.

Em Natália a construção do feminino passa necessariamente pelo corpo e pela sensualidade. Aliás, no seio duma sociedade moralista e legisladora do corpo feminino, sujeita à censura do Estado Novo, a produção literária de Natália ousa construir uma mitologia feminina, especificamente na coleção poética Mátria (1967), em que o feminino não oscila entre os padrões de identidade da dicotomia mulher-anjo - mulher-demónio, mas consiste na fusão destes - “Mulher! Oh rito de Anaíta / mistério de ser virgem e puta” (Correia, 2002, p. 125) -, e se autoconstrui incorporando o místico no humano - “Para os anjos és talvez a alternativa / de em ti encarnar a graça que eles têm no ar” (Correia, 2002, p. 125). Em Natália o feminino não ocupa um espaço mítico e efémero deslocado da esfera do humano, e por extensão da sociedade, pois está inserido na natureza e ancorado no físico, o que é evidenciado pela quase obsessão da autora com o corpo e os sentidos, assim como com a forma como a mulher se relaciona com a natureza, ou mais propriamente se insere na natureza, como podemos ver no poema “A rapariga do sweater vermelho”:

Para os que gostam de fruta tu tens o gosto almiscarado.

Entre os balubas serias uma fêmea baluba cor de cera.

No Egipto era uma flor de lótus o teu penteado

para os insectos serás outra variedade de pêra.

Na cama dos solitários andrenídeos

és um corpo apetecido pelas abelhas

e se em teus dedos nascer a flor dos suicídios

és um pecado venial de unhas vermelhas,

venial volumosa e branca muito odorífera

dando claridade à sobra dos quartos de aluguer.

Para os assassinos serás uma arma mortífera

para os pederastas a raiva de não serem mulher.

Para os anjos és talvez a alternativa

de em ti encarnar a graça que eles têm no ar.

É de ti mesma que estás arborizada e viva

ou serás como as rosas apenas para ver e cheirar? (Correia, 1999, p. 250)

Assim, em Natália a mulher faz parte da natureza tal como uma flor, um fruto, um animal, a luz, a água ou o vento. No entanto, no que concerne ao amor, segundo Fernando Pinto do Amaral, a autora segue os padrões de feminilidade comuns, pois “o Amor (com maiúscula) ultrapassa as habituais fronteiras que limitam a consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: Indemne atravessou as laba- redas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor” (Correia, 2002, p. 24). Natália é uma sacerdotisa, uma deusa, mas uma deusa que se insere no humano e que constrói e gera o feminino: “Mãe prisioneira de palavras mortas. / Transmitido é o segredo. Abrem-se as portas. / Deus inconcluso, falta-te ser mulher” (Correia, 2002, p. 267). Em resumo, a mulher que surge em Natália não é virgem nem pecadora, não é Maria nem Eva, mas sim Maria Madalena, uma mulher de carne e osso que se autodefine através do seu próprio corpo e dos seus próprios sentidos.

A noção de pertença sobre o seu próprio corpo, que Natália desenvolve na sua obra literária, é transportada para os seus ensaios político-sociais, como podemos evidenciar num dos diversos textos que elaborou em defesa da despenalização do aborto, apresentado numa sessão pública realizada no Teatro Aberto promovida pela Comissão de Mulheres pela Legalização do Aborto e Defesa de uma Maternidade Responsável, o Movimento Democrático das Mulheres (MDM), a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto e Contracepção (CNAC), a Cooperativa Editora de Mulheres (IDM) e a revista Mulheres. Entre outros objetivos e direitos, este documento defendia que “A interrupção voluntária da gravidez deve respeitar a livre decisão da mulher no total respeito pela sua opção e pelo direito ao sigilo relativamente a esse acto” e apelava à movimentação generalizada das mulheres portuguesas e ao seu apoio à campanha a favor desse direito: “só a acção decidida das mulheres poderá tornar realidade a legalização do aborto; apelamos para que as mulheres se unam e mobilizem para que esta luta se transforme numa vitória”.

A ILHA COMO TOPOS LITERÁRIO

Apesar do cosmopolitismo cultural e político de uma Lisboa que a viu renascer içando a palavra e a tolerância pelas diferenças, em Natália estava escrito o que ainda era matéria em construção e se desenhava ao largo num amplexo de viagem. Assim, em Rio de Nuvens (1947), surgem sinais em busca de um eu que interroga o destino: “Que este destino em que venho” (p. 41), não se surpreendendo com a mão invisível de uma vontade que não comanda. Esse olhar orientado para uma entidade superior, sem nome, haveria de assumir na sua obra um território profícuo, onde o sagrado foi um conceito em expansão.

Desencantada com uma infância de insegurança e instabilidade fami- liares, a autora recria o ambiente que deixa transparecer no seu primeiro poema, “Manhã cinzenta” (1946), um envolvente saudosismo insular que há de acompanhá-la ao longo da sua obra:

Só uma estrada resta - mais nenhuma:

Na ilha que o passado envolve em bruma

um lenço branco que me acena ainda. (Correia, 1946)

São palavras que hão de sair da bruma criativa para iluminarem a corda de cumplicidades que atravessam o texto poético. Aos poucos, adensa-se o romantismo configurado numa geografia de lugares, ícones de uma imagética remissiva para vocábulos perenes que se fixarão à pele da poeta. Assim, a ideia de viagem e movimento surge nos primeiros textos poéticos, quer em “Manhã cinzenta” (1946), quer no livro Rio de Nuvens (1947), como se a viagem de uma vida tornasse urgente a existência de uma ponte, confidente de um monólogo a que a poeta concede a honra de escutar:

Mas quando me aproximava,

da fonte logo ela falava

coisas que só eu entendia. (Almeida, 1994, 30)

Estamos perante uma matriz oracular, um espelho sonoro do eu poético que Natália Correia se predispõe escutar, como se carecesse dessas fontes, simbolismo de uma renovação necessária ao encontro consigo própria, para encontrar o significado oculto do mundo e o converter em palavra poética. Este é um topos clássico, que já vem da Grécia, o da fonte ligada à inspiração poética, sob a égide de um deus.

Nesse monólogo da poeta esboça-se uma tímida iluminura em busca da luz que há de salvar a voz perdida da menina desenraizada através do olhar imperativo da mulher, para quem ser feliz era apenas:

Não haver necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida. (Sousa, 2004, p. 45)

Assim, a autora escreve para encontrar outras perguntas, como no livro Poemas (1954), onde estão as sementes de O Sol das Noites e o Luar dos Dias (1993). Só o pensamento pode libertar os que estão cativos das suas origens, espécie de asas sem forma que ajudam a encontrar a rota, mesmo quando os ventos são adversos. Nessa busca das origens, onde o absoluto concentra as trevas e as fontes anunciam a renovação, emerge, ainda timidamente, um topos da sua escrita: luz-treva.

Em “Poeta” (Correia, 1999, p. 64), anuncia-se já um pórtico com vista para a temática de matriz clássica, de que é exemplo o texto edipiano: água, fonte, noite, claridade e olhos. Estão aqui alguns elementos/palavras que abrem o horizonte a um assunto poético em que o drama é sinónimo de conflito, culpa, conhecimento e rutura. Podemos ver nesta obra um espelho da infância refratária da autora, em oposição a uma homogeneidade social doentia; ou seja, a água que servirá para lavar o sangue dos olhos de Édipo, a fonte com a sua carga primordial, iniciática e purificadora, a noite como extensão das trevas e da ignorância, a claridade como expressão do conhecimento e da liberdade, e os olhos como constructos de expiação e castigo. Na introdução à edição da obra poética O Sol nas Noites e o Luar nosDias (1993), Natália Correia afirma:

Mas se não alcanço esse “outro” que entre as minhas intrínsecas pluralidades me provoca com palavras a ordená-las em imagens que libertem a linguagem escondida no silêncio, nem por isso cairei na cilada que, logo no raiar das Artes Poéticas, Platão no “Íon” armou aos poetas dizendo serem os deuses que põem a inspiração nas suas palavras. (p. 29)

Lúcida e esclarecida, Natália inicia a sua caminhada, deixa a Ilha - qual semelhança com Tebas! -, elege a Liberdade como a causa das causas. Ninguém lhe é indiferente, por isso, onde esteja, as circunstâncias fazem dela a notícia da notícia. Em 1991, Mário Soares, Presidente da República, condecora-a com a Ordem da Liberdade, grau de Grande Oficial, muito justamente.

Nunca deixou que os mestres a escolhessem, foi sempre ela quem os escolheu. Apaixonada pelo mundo clássico, traduziu de Ésquilo: Os Persas, As Suplicantes, Sete contra Tebas; de Eurípides: Electra, Ifigénia em Áulides, As Bacantes; e ainda, com David Mourão-Ferreira, A Arte de Amar, de Ovídio. E por que razão insisto em que era conhecedora do melhor da nossa tradição clássica? Porque a sua obra O Progresso de Édipo: Poema dramático confirma a sua paixão e inovadora abordagem temática, ao reescrever o mito edipiano, simultaneamente como espelho do reencontro com a sua história pessoal e como uma assunção de discordância com a Trilogia de Édipo, de Castro Osório. Ao pôr em destaque o incesto, quiçá, em oposição ao tratamento que Castro Osório dera ao tema, Natália Correia assume que o reencontro do Homem só pode ser feito através dessa viagem às origens. Num ambiente político de ditadura, a autora quis também assumir que Portugal precisava de escolher o seu próprio destino sem preconceitos e sem vergonha da sua história. O Progresso de Édipo: Poema dramático parece surgir numa clara resposta a Castro Osório, politicamente comprometido com o regime, pouco facilitador de novas linguagens e cativo de costumes conservadores.

A temática assumidamente de rutura foi seguida por Bernardo Santareno, na peça António Marinheiro: Édipo de Alfama (1960), onde António (Édipo) se assume contra uma sociedade, neste caso Portugal, moralmente doentia e a necessitar de mudanças. Nesta peça, a personagem principal é uma mulher, Amália (Jocasta), o que confere uma nova dimensão social e moral à personagem e à peça. Trata-se de uma personagem que assume o seu destino contra a moral estabelecida, recusando o suicídio e os castigos.

Sempre o destino, a inquietação existencial que Natália não quer deixar nas mãos dos deuses, mas sem os quais não consegue viver. Os deuses permitem-lhe um universo literário de envolvência e de sugestão:

Não expulsarei os deuses e os demónios

Que discutem a posse da minha alma. (Correia, 1946)

Estão traçadas as linhas que hão de antecipar-lhe os passos: o conhe- cimento dos clássicos, a liberdade como a causa das causas, Portugal como cais a olhar o Atlântico e o Mediterrâneo, a Mátria como “amor sublime inventado pela liberdade da linguagem surrealista”.

Podemos dizer que, na obra de Natália Correia, as matrizes greco-latinas são a nobilitas literaria, a fonte primordial onde todas as sedes se abeiram para renascerem, no que Cícero dignou por cultura animi, ou seja, o espírito, a alma que devolve à cultura a dimensão humana e universalista. Quem leu Natália Correia sabe que uma das razões porque a sua obra é ainda considerada eclética e, quiçá, difícil de compreender reside exatamente no código clássico, as suas constantes remissões à Atenas de Vitrúvio e Péricles, de Ésquilo, Sófocles e Eurípides , que constitui ainda um biombo inacessível a muitos. Espera-se que as universidades abram as portas ao estudo e investigação da sua obra, trilho necessário para devolver ao mito a dignitas que só um estudo sério e partilhado confere à obra de Natália Correia.

Continuemos a busca de nós através do espelho da melancolia, da bruma ou da saudade para escapar à morte, de que falava Eduardo Lourenço. A busca da identidade ou do destino, desde a aventura das Descobertas, é ainda a mimese com marcas do trágico. Sim, porque “no plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida” (Lourenço, 2005, p. 16). E Natália Correia era esse ser divido e que nos dividia, como escreveu Dacosta:

Não se tornava fácil compreendê-la. Nem amá-la. Fazê-lo, exigia disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos. (Dacosta, 2008, p. 87)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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