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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

ESTUDOS

Irada na alva beleza se excede: Quatro momentos com Natália

Angry in her white beauty she exceeds herself: Four moments with Natalia.

Luiz Fagundes Duarte*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Estudos Portugueses, IELT - Instituto de Estudos de Literatura e Tradição, 1069-061, Lisboa, Portugal.
Director Regional dos Assuntos Culturais (de 26-11-1996 a 24-10-1999) e Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura (de 2-11-2012 a 8-7-2014), no Governo Regional dos Açores. Deputado à Assembleia da República eleito pelos Açores (de 25-10-1999 a 16-6-2011). Presidente da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência (de 15-10-2009 a 16-6-2011). lmfd@fcsh.unl.pt


 

RESUMO

É difícil separar, em Natália Correia, a escritora da mulher de causas que, aos mais diversos níveis, influiu muito profundamente na vida cultural portuguesa da segunda metade do século XX. Tendo assumido a sua condição de açoriana, mas sempre integrada no contexto nacional, encontramos na sua obra um conjunto de temas e de preocupações relacionados com a defesa da identidade cultural, política e espiritual da sua ilha natal, que, fatalmente, haveriam de marcar a sua vasta produção literária. Neste artigo são revelados alguns episódios e momentos significativos, mas pouco conhecidos, da sua história de vida.

Palavras-chave: Natália Correia, Vitorino Nemésio, Açores, manuscrito literário, identidade cultural.


 

ABSTRACT

Considering Natália Correia, it is difficult to put in different sides the writer and her role of a «causes defender», that in a diversity of levels influenced deeply Portuguese cultural life during the second half of the 20th century. Born at Azores islands, she assumed early this condition, but always with the major concern of integration at the sets of a comprehensive national contexts. We can find in her work a whole of issues, themes and concerns related with cultural, political and identity spirituality rooted in her native Island, a printing of her tremendous production. This article intends to present and reveal some not known, or not well known, significant episodes and moments of her life story.

Keywords: Natália Correia, Vitorino Nemésio, Azores, literary manuscript, cultural identity.


 

PRIMEIRO: AS TRÊS NATÁLIAS

Foi diversa a Natália que eu conheci. Na verdade, para mim, ela era como se fossem três. E tudo se passava como se as três se olhassem entre si como se fossem outras. Todas elas assinavam Correia e se afirmavam como açorianas, portuguesas e europeias.

Uma, a primeira, era a mulher pública, conhecida, de referência - aquela que já tem direito a meia dúzia de linhas na história da literatura portuguesa e a um busto nos claustros do Palácio de São Bento, assinado por João Cutileiro, que tanto dá um retrato dela como de outra qualquer. É a Natália menos interessante, a que cabe dentro de meia dúzia de livros e de umas poucas folhas do Diário da Assembleia da República. Acerca dela já se escreveram páginas e páginas de exegese (raramente com alguma utilidade), dela já se retiraram frases para ornamentar os discursos de políticos, e a dado passo dos Sonetos Românticos (1990) ela própria se descreveu, e à sua inevitável entrada na História, como

Coroada de mirtos

visto a túnica de linho branco e aberta a porta,

caminho para o lugar onde cai o véu

do mistério final. (Correia, 1999, p. 613)

Outra, a segunda, era a mulher privada, desconhecida, equívoca - aquela que recordarei como quando, depois de sairmos de um serão cultural, dei por ela a olhar distraída para montras de lojas fechadas e que, ao perguntar-lhe se queria que a levasse a algum lado, me respondeu que queria ficar só com a sua solidão. É a Natália menos conhecida, aquela com quem ocasionalmente convivi, que já tinha consciência de que ia chegando o fim do tempo da personagem que de si própria criara, mas julgando ainda que seria capaz de gerar epígonos que lha mantivessem viva: e, dela, lembro aquele serão do Café Concerto que eu, com mais dois amigos, durante algum tempo, organizei num restaurante de Lisboa, reunindo, de cada vez, um poeta que oferecia os seus poemas, um actor que os declamava, um artista plástico que expunha as suas obras e um realizador de televisão que de tudo isso fazia documentário - lembro o serão que foi o de Natália e em que ela, à mesa do jantar, me tentou convencer a ficar-lhe com o Botequim como única maneira de salvar aquele que era o palco da derradeira tertúlia lisboeta. Eu respondi-lhe, como dizendo não à proposta, que o Botequim era ela. Como lembro aquela Quinzena de Cultura Açoriana que uma vez se fez no Pátio Alfacinha, de que foram organizadores, já não me lembro porquê, entre outras pessoas, o Eduíno de Jesus, a Natália e eu; e lembro a reacção da Natália ao afastar-se da organização quando lhe disseram que ela, como todos nós, não poderia levar para o jantar inaugural mais do que um acompanhante: «- Eu levarei quantas pessoas quiser!», declamando de seguida: «Porque há pessoas notáveis a quem não se impõe limites!»...

E a última Natália, a terceira, era a mulher que trazia dentro de si um vulcão que ninguém jamais apagara, e que só conheci verdadeiramente quando percebi que ela era, afinal, a vera encarnação do busto em bronze policromado, da autoria de Mestre Martins Correia, em cujo pedestal apenas se lê, em vez do nome, a palavra Poéta, assim, com acento. É a Natália, a Natália metonímica que por si só representa a poesia feita mulher, aquela que encontrei na casa que fora dela e que vi a ser esvaziada em obediência das disposições testamentárias de Dórdio Guimarães, logo após a morte dele em 2 de Julho de 1997: nos milhares de livros que hoje constituem um fundo especial da Biblioteca de Ponta Delgada; nos milhares de manuscritos literários, que foram tratados na Biblioteca Nacional; nas centenas de obras de arte, que eu em tempos quis que constituíssem o núcleo fundador do nunca concretizado Centro de Arte Moderna de Ponta Delgada; nas peças de mobiliário, que os documentários televisivos de Dórdio Guimarães, especialmente o seriado Mátria, transformaram em peças vivas do imaginário português acerca do que seja a casa de um escritor, e que também já se encontram em Ponta Delgada. E aquela que vislumbro na sua Poesia Completa. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1999), um livro que nos diz tanto acerca de Natália como o busto de Martins Correia diz da Poeta: estão lá inteiras, e assim ficarão para todo o sempre, ad usum lectorum.

Chamasse-se ela, esta Natália, também Marquesa de Alorna, ou Florbela Espanca, ou Sophia de Mello Breyner - mulheres de quem se pode falar e tudo dizer pronunciando, apenas, a palavra Poeta. Ou Bocage, antepassado próximo de Natália na criação de um novo paradigma para a Poesia: se um, fugindo às malhas e aos esbirros de Pina Manique, trouxe a poesia dos salões bafientos para os cafés da cidade, Natália, depois de haver declarado, no poema «A Defesa do Poeta» publicado em A Mosca Iluminada (1972) -

ó subalimentados do sonho!

a poesia é para comer. (Correia, 1999, p. 331)

- trouxe a poesia para o Parlamento, que, tal como os cafés do século XVIII, deveria ser o local onde a voz do Povo, depois de coada por quem a melhor entendesse, por todos se fizesse ouvir.

Esta Natália - a derradeira, a síntese de todas - repousa nos papéis, nos livros, nas obras de arte que nos legou. Entrelê-se nas pequenas histórias que todos aqueles que a conheceram se sentem, como eu me sinto aqui, tentados a contar acerca dela. Sobrevoa-nos nas asas daquela misteriosa pomba que, pouco antes da inauguração em Lisboa da grande exposição Natália, Arte e Poesia. Colecções de Arte do Espólio de Natália Correia e Dórdio Guimarães (Azevedo & Madeira, 1999), entrou, vá lá saber-se como, pelo Palácio Galveias adentro e, perante o arrepio de quem a tudo assistiu, foi pousar no alto de um candeeiro da sala principal, ali ficando por algum tempo a ver, cá em baixo, expostos ao público, os quadros e esculturas que de antes lhe povoavam as paredes de casa, lhe atafulhavam os armários, ou se escondiam debaixo da cama de dossel que era, ao mesmo tempo, o tálamo da mulher trágica e a oficina da mulher poeta.

É a Natália que é necessário que os literatos estudem, que a Universidade investigue, que a comunicação social divulgue - e que o Povo receba como algo de seu, que foi ao céu e voltou. É esta a Natália que nos falta: a Poeta (Duarte, 2017).

SEGUNDO: A REVOLUCIONÁRIA ROMÂNTICA

No poema «Corsários à Vista» - «Duas amigas telefonam-me de Lisboa de urgência» (Nemésio, 1976) -, datado de 31 de Março de 1976, Vitorino Nemésio refere um episódio ocorrido no âmbito da discussão parlamentar dos textos de dois documentos estruturantes da Autonomia Regional dos Açores: o do Título VII da Constituição da República Portuguesa - Regiões Autónomas - e o do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. O primeiro fora apresentado pela 8.ª Comissão parlamentar no dia 18 daquele mês, e viria a ser aprovado, com modificações, no dia 26, após uma acalorada discussão entre os partidos de esquerda e os de centro-direita; e o segundo, baseado em duas propostas, uma oriunda da Junta Regional dos Açores (Janeiro) e outra do Conselho da Revolução (Março), sê-lo-ia, em versão provisória, a 30 de Abril.

Subjacente a tudo isto, encontramos neste poema ecos da agitação separatista açoriana, verificada sobretudo na ilha de São Miguel, em reacção à situação política vivida em Portugal na sequência do chamado Verão Quente de 1975 - e de posições do próprio Nemésio que, num dos seus programas televisivos «Se bem me lembro...» de finais de 1974, já adiantara: «E porque não a independência dos Açores? Pois, viva a República Independente dos Açores!», o que lhe valeria a honra de ver a sua efígie num projecto artesanal de nota de 100 escudos da futura República açoriana…

Mas vamos então ao poema de Vitorino Nemésio.

Nemésio encontrava-se em Barcelona, sofria de ciática, e na noite de 30 para 31 de Março de 1976 foi acordado por «duas amigas» que, ao telefone, lhe pediam que regressasse de imediato a Lisboa, onde seriam recebidos - elas e ele - pelo recém-graduado General Ramalho Eanes, «herói» saído do 25 de Novembro de 1975 e futuro candidato à Presidência da República. Pretendiam expor ao general a situação que então se vivia no Arquipélago e os receios perante os debates parlamentares em curso, e pedir apoio para a causa da independência dos Açores. No imaginário delas, romanticamente aceite por ele (embora disso não dê eco neste poema), Nemésio seria o primeiro Presidente da República Independente dos Açores. Em resposta ao pedido das duas amigas, e provavelmente sem uma noção muito objectiva do que realmente se passava, o poeta regressou a Lisboa, de maca, e de maca terá sido levado ao Palácio da Cova da Moura, sede do Conselho da Revolução, onde, segundo consta, expôs as suas preocupações ao general - e dele recebeu palavras de sossego.

Neste poema, as «duas amigas» aparecem como as «últimas Briandas do Arquipélago» - numa alusão a Brianda Pereira, a lendária mulher da Ilha Terceira, heroína da Batalha da Salga travada a 25 de Julho de 1581, em que foram lançadas manadas de gado bravo contra os invasores espanhóis. Daí o facto de o brasão de armas da Região Autónoma dos Açores ter dois toiros como suportes e como divisa a frase «Antes morrer livres que em paz sujeitos», retirada de uma carta de Ciprião de Figueiredo, Corregedor dos Açores, ao rei Filipe II de Espanha, datada de 13 de Fevereiro de 1582, em que se fundamentava a recusa da população da Terceira em se sujeitar aos espanhóis; daí também, neste poema e no seu contexto, o verso «E lá vamos bater o pé de Ciprião a Filipe»… Duas amigas que, no dizer do poeta, o emprazam para tudo, «pelos gados, nuvens, calhetas» das ilhas - sendo que esse tudo implicava, no horizonte imaginado pelas duas mulheres e exacerbado pelo próprio Nemésio, a «libertação» dos Açores dos grilhões «que nos queiram enfiar à socapa nos pulsos duros da canga». Neste cenário revolucionário (ou contra-revolucionário, conforme a perspectiva...), as duas «Briandas» são referidas apenas por traços físicos e de personalidade. Porém, existe no espólio de Nemésio uma versão deste poema, com a mesma data mas algumas diferenças importantes, que só viria a ser publicada, postumamente, muitos anos mais tarde, e que vale a pena recordar

aqui:

Margarida e Natália falam-me de Lisboa, de urgência

Alta noite, dormindo em catalão, num salto as oiço

A perfídia extremista outorga carta de colónia às Ilhas

Sofro as minhas dores de coxo, pràs do sabote falta-me a paciência.

Os fios telefónicos, como fogo de lagoa, vibram.

Aquelas são das últimas Briandas do Arquipélago:

Uma pobre mulher com traços de fogo nos olhos

A outra, irada na alva beleza se excede.

Ambas me emprazam a tudo pelos gestos, nuvens, calhetas.

O Conselho da Revolução espera-nos amanhã:

Mesmo de maca, ao general compareço

Um rumor de aguilhadas, de bulldozers velhos, latas de leite corre as ondas.

Chamam-nos os mortos, o mulherio, os baleeiros mansos com o cabo do (arpão nas unhas.

As minhas velhas primas desamparadas esmolam dos senhores do MEIC[1] (a renda dos vidros por que espreitam o mar que sempre foi nosso.

Confiam no Velho coxo, e o Velho corre a acudir

É como um fogo posto ou briga de arruaceiros de fora.

As furnas são nossas.

As pipas de vinho são nossas, As carroças do peixinho nossas,

O leite das tetas que ordenhamos, As pontas com poucos faróis,

Os caminhos seculares mal calçados.

Os chafarizes com um tapete de bosta quente cheiram bem.

Vamos revoltar as ilhas: eu tenho lá ossos de pai e mãe

Sujo seria se não acudisse ao chamamento, rufo ou roqueiras, fogueira acesa

(aos gravetos,

Urro de caldeira arrebentada.

Qualquer aperto de dedos na goela serve para a porrada.

Natália, espera-me com as tuas inesgotáveis reservas exoftálmicas,

Arregalar os olhos é um privilégio oportuno.

Margarida, conta comigo na tua domage repentina (pois que és sempre menina)

E lá vamos bater o pé de Ciprião a Filipe.

O Marquês de Santa Cruz era uma ovelhinha comparado a estes carnívoros.

A sala das Batalhas no Escorial explica tudo.

E agarro uma insónia, além de perder a noite a berrar da ciática

Mas estes filhos de mamã hão-de-nos pagar tudo o que nos fizeram.

Estes filhos da cerva hão-de afinal entrar na linha

E levar nas canelas,

Metidos nos porões

(As moças às janelas)

Os grilhões

Que nos queriam enfiar à socapa nos pulsos duros da canga, Esses insulsos rufiões de ganga.

Barcelona, 31.3.1976

(Nemésio, 2003, pp. 212-213)

As «duas amigas» afinal tinham nome e chamavam-se Natália e Margarida. O primeiro verso do poema é «Margarida e Natália falam-me de Lisboa, de urgência», e ainda não a versão que o poeta viria a publicar:

«Duas amigas telefonam-me de Lisboa de urgência»; uma das duas amigas do poeta, que ele refere como «pobre mulher com traços de fogo nos olhos» e que é «sempre menina», era Margarida Vitória, Marquesa de Jácome Correia; e a «outra, irada, (que) na alva beleza se excede» e aguarda o poeta com as suas «inesgotáveis reservas exoftálmicas», porque «arregalar os olhos é um privilégio oportuno», era, naturalmente, Natália Correia.

Por esses anos, Nemésio andava apaixonado por Margarida Vitória (que, segundo ela própria me confirmou, tivera escondido, numa das suas vastas propriedades em São Miguel, armamento da FLA, Frente de Libertação dos Açores…) e escrevia-lhe fogosos poemas de amor (Nemésio, 2003), e Natália compunha os terríveis libelos de desilusão pós-25 de Abril de 1974 que são os sonetos do livro Epístola aos Iamitas (Correia, 1976) - onde são verberadas várias das personalidades da esquerda comunista e revolucionária que terão inspirado, em sede dos referidos debates parlamentares (embora Natália o não afirme em concreto), as posições mais radicais contra o processo autonómico dos Açores e da Madeira.

O resto é História.

TERCEIRO: OS PAPÉIS E AS CINZAS

Na Primavera de 1997, estando eu a desempenhar funções como Director Regional dos Assuntos Culturais nos Açores, constou-me que, em Lisboa, estariam a ser vendidos, ao desbarato, papéis do espólio de Natália Correia, falecida quatro anos antes (16 de Março de 1993). Temendo que isso fosse verdade, entrei em contacto com Dórdio Guimarães, viúvo de Natália e seu herdeiro, propondo-lhe a compra imediata, pelo Governo Regional, do espólio da escritora, a fim de com ele se dar início àquilo que poderia ser a «Biblioteca Natália Correia», na Fajã de Baixo, localidade do seu nascimento, ou em Ponta Delgada. Soube, em resposta, que não só não se estava a vender o espólio de Natália, como até, pelo contrário, o mesmo tinha sido acrescentado por meio da aquisição de peças até então dispersas; porém, Dórdio Guimarães aceitava vender todo o espólio ao Governo Regional dos Açores, pelo que desde logo acertei com ele as linhas gerais para a operação de compra e transporte dos documentos, bem como as modalidades e condições de pagamento.

Mas, pouco tempo depois, Dórdio Guimarães adoeceu gravemente, vindo a falecer no dia 2 de Julho seguinte. Por isso, procurei a sua primeira testamenteira, Helena Roseta (seguia-se-lhe Ramalho Eanes), a quem comuniquei aquilo que tinha sido acertado - vindo a ser informado que, por testamento datado do dia 14 de Janeiro anterior, Dórdio Guimarães constituíra a Região Autónoma dos Açores como legatária de diversos bens, a saber:

«O integral recheio da sua casa de habitação, em Lisboa, a fim de se criar o Museu Natália Correia», a que se acrescentaria a colecção inteira de pintura e de escultura, propriedade de ambos, bem como a biblioteca, os manuscritos e originais das obras já publicadas, e o acervo da exposição de Homenagem Nacional a Natália Correia, inaugurada em Lisboa em Setembro de 1993.

Finalmente, o viúvo de Natália determinava que as suas cinzas deveriam ser juntas às de Natália Correia, que se encontram no Mausoléu dos Escritores do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, e trasladadas para o interior do Jardim sito em frente da sala de leitura da Biblioteca Natália Correia, na Fajã de Baixo, em local próprio, com a devida inscrição alusiva e réplica em bronze do busto de Natália Correia, da autoria de Martins Correia.

(Guimarães, 1997)

Da colecção de arte faziam parte obras de arte religiosa antiga, e de artistas como Abel Manta, Almada Negreiros, Artur Bual, Camarinha, Cassiano Branco, Cruzeiro Seixas, Salvador Dalí, Albrecht Dürer, Mário Cesariny, Francisco Relógio, Gracinda Candeias, Hansi Stäel, Isabel Meyrelles, Júlio Pereira, Júlio Pomar, Júlio Resende, Júlio de Sousa, Lima de Freitas, Manuel de Lima, Martins Correia, Nikias Skapinakis, Sam, Stuart de Carvalhais ou Vieira da Silva, entre muitos outros.

Havia, porém, um problema: em 1993, o mesmo Dórdio Guimarães tinha realizado a escritura de constituição de uma «Fundação Natália Correia», à qual doara todo o espólio da escritora. Ou seja, depois de tudo somado e verificado, verificou-se que Dórdio Guimarães, naturalmente por esquecimento, legava em testamento aos Açores - e a outras instituições, como a Sociedade Portuguesa de Autores (direitos de autor), a Escola Superior de Belas Artes do Porto (quadros de seu pai, o pintor Manuel Guimarães), o Governo Regional dos Açores (recheio da casa, incluindo a pinacoteca, esculturas, biblioteca, manuscritos de obras publicadas em vida, e o acervo da exposição de 1993), e a Biblioteca Nacional (manuscritos inéditos, hemeroteca, e vídeos e filmes da sua autoria sobre Natália Correia) - um conjunto de bens que já havia doado a uma outra instituição, que por sua vez contava com avultadas dívidas à data da morte do seu fundador.

Depois de um complicado processo judicial - em que não faltou a intervenção da Polícia Judiciária e um processo no Tribunal da Comarca de Leiria por causa do «desvio» de algumas obras de arte (dois quadros da autoria de Natália Correia, um conhecido auto-retrato e um retrato de sua Mãe), que viriam a ser encontradas na casa de um dos credores das dívidas da Fundação Natália Correia, que entretanto se viria a verificar não ter existência legal em virtude de os seus órgãos sociais nunca terem tomado posse… -, mandou o tribunal, por sentença de 24 de Março de 1998, que se cumprissem os legados do testamento de Dórdio Guimarães, tendo a sua herança jacente, que incluía todo o espólio de Natália Correia e as obras de arte, sido declarada vaga a favor do Estado em 14 de Abril seguinte - na sequência do que a Região Autónoma dos Açores passou a integrar, no seu património cultural, a parte mais preciosa da herança material de Natália Correia e Dórdio Guimarães (incluindo aqueles dois quadros que tinham sido «desviados»): centenas de obras de arte, milhares de livros e de fotografias, os manuscritos rasurados de obras que deixou inacabadas, e milhares de cartas de personalidades importantes do mundo cultural da época, tudo isto constituindo um verdadeiro tesouro de cultura europeia e de memória universal que agora se encontra disponível para consulta, em instalação própria, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada - ao lado dos espólios bibliográficos de José, Ernesto e Eugénio do Canto, de Teófilo Braga e de Antero de Quental, bem como do manuscrito das Saudades da Terra, do historiador açoriano do século XVI, Gaspar Frutuoso.

No entanto, nem mesmo esta integração do espólio de Natália Correia nos bens do Património Cultural dos Açores foi pacífica: antes da sua deslocação para São Miguel, os papéis e a biblioteca de Natália Correia e Dórdio Guimarães foram depositados na Biblioteca Nacional, onde durante cerca de dois anos uma técnica especializada, paga pelo Governo Regional, procedeu à arrumação e classificação das peças, com vista a separar, para que se pudesse cumprir a determinação do testamento de Dórdio Guimarães no que aos manuscritos autógrafos dizia respeito, os de obras inéditas, que deveriam ficar na Biblioteca Nacional, dos de obras publicadas em vida, que deveriam seguir para os Açores. Porém, feito esse trabalho, acabou por seguir tudo para Ponta Delgada, não tendo a Biblioteca Nacional assegurado a posse e guarda dos preciosos documentos que, por disposição testamentária, lhe pertencem.

Por outro lado, e a contrario sensu do disposto no mesmo testamento, verificou-se que a casa da Fajã de Baixo, onde Natália nasceu e viveu até aos dois anos de idade, não reunia as condições necessárias, mesmo fazendo-se obras de adaptação, para albergar um património tão rico e diversificado, constituído por papéis e obras de arte que carecem de especiais condições de conservação, consulta e exposição - mas acabara de ser inaugurada, em Ponta Delgada, o novo edifício da Biblioteca Pública e Arquivo Regional, esse sim com as condições, equipamento e pessoal técnico adequados.

Vale a pena lembrar que a colecção de arte era tão boa e tão completa que, antes de ser encaixotada e enviada para Ponta Delgada, foi exposta em Lisboa, ocupando seis salas do Palácio Galveias. Dessa exposição, feita em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, fez-se um magnífico catálogo (Azevedo & Madeira, 1999). Como não havia então, em São Miguel, nenhum edifício com as condições necessárias para expor a colecção, ficou a mesma à guarda da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, até se encontrar um local condigno para a depositar e onde a expor ao público. Mas, antes de se definir esse local, era necessário criar um organismo público que assumisse, legal e juridicamente, a propriedade e a gestão da colecção, em nome da Região. Criou-se então, por Decreto Legislativo Regional, o Centro de Arte Moderna de Ponta Delgada, que teria como núcleo fundador esta mesma colecção de arte - o qual, no entanto, não teve qualquer seguimento: as obras de arte (incluindo algumas das peças de mobiliário mais icónicas do ambiente doméstico da escritora, como a cama de dossel, em que habitualmente escrevia, e a mesa de estilo «império» muito frequente nos filmes de Dórdio Guimarães sobre Natália) foram integradas nas colecções do Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, enquanto os livros e os papéis o foram na Biblioteca Pública.

Quando, em 2013, regressei ao Governo dos Açores, agora na qualidade de Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura, entendi que era tempo de se cumprir a última determinação testamentária que ainda se encontrava em falta: a trasladação das cinzas do casal - o que culminaria, já depois da minha saída do Governo, na construção de um pequeno monumento funerário no jardim da Biblioteca Pública de Ponta Delgada, em cujo interior foram, finalmente (Maio de 2016), depositadas as cinzas de Natália e Dórdio. O monumento, que fica junto de um grande tanque em cuja beira se encontra uma escultura em mármore da autoria de João Cutileiro, que representa uma menina deitada a ler um livro, é coroado por uma réplica em bronze do busto de Natália por Martins Correia.

QUARTO: OS «ERROS MEUS…»

Ao contrário do que foi determinado no testamento de Dórdio Guimarães, a parte do espólio de Natália Correia que é propriedade da Biblioteca Nacional foi levada para Ponta Delgada; nada de mal nisso, sabendo-se que os papéis, ainda que em situação irregular, estarão devidamente tratados e protegidos. Mas existe na Biblioteca Nacional, por aquisição ou por doação - para além de uma boa colecção de fotografias que documentam o processo de desmontagem da casa, de reconhecimento de peças, e de assinatura de instrumentos legais, após a morte de Dórdio Guimarães e a decisão do tribunal acerca do destino da sua herança jacente -, o original autógrafo da peça de teatro Erros meus, má fortuna, amor ardente, encomendada a Natália pelo Teatro Nacional D. Maria II, no âmbito das comemorações do IV Centenário da morte de Camões (1980); um conjunto de recortes de jornais com entrevistas e textos diversos da escritora; e algumas fotocópias, sem grande valor documental ou filológico, de obras originais de Natália dactilografadas (peças de teatro), bem como de um documento autógrafo que me parece precioso pelo que revela acerca da personalidade de Natália.

Só por si, a peça de teatro Erros meus, má fortuna, amor ardente tem uma história que justificaria um estudo aprofundado: obra de características operáticas, com muitas personagens, inúmeros figurantes e sugestões cénicas de grande impacto, mas também dotada de um discurso mais adequado à leitura do que à representação teatral (Brilhante, 1983), ter-se-á revelado de grande dificuldade de produção em palco, o que, aliado a factores de ordem política e circunstancial, terá impedido que fosse levada à cena no contexto para que fora encomendada e escrita.

O manuscrito autógrafo desta peça, que foi oferecido por Natália à sua amiga Ana Maria Adão e Silva, que mais tarde o viria a doar à Biblioteca Nacional, onde integra o Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, tem por título integral

Erros meus, má fortuna, amor ardente

(peça em três actos sobre a grandeza e danos do Português Luís de Camões,

em que todos, dolorosa e magnificamente, nos achamos)

e a dedicatória

Ana Maria:

Quem melhor do que tu, amor de Irmã e lindíssima Vestal, pode guardar estas chamas do fogo que me há-de consumir?

No aroma da Rosa que nos une,

Tua

Natália Correia

Natal de 1981

(Correia, 1981)

Publicada a peça em livro (Correia, 1981), nele podemos ler, em texto de badana assinado por David Mourão-Ferreira, a seguinte afirmação:

esta peça de Natália Correia, sem tão-pouco abdicar do intrínseco barroquismo da sua autora, teria sido, em 1980, sobre o tablado de um Teatro Nacional que pudesse a um tempo ser «nacional» e ser «teatro», a mais condigna homenagem da criatividade contemporânea ao nosso maior poeta de todos os tempos, no 4.º centenário da sua Morte. Assim o não quis, no entanto, o sombrio e sinistro soba que «reinou», em 1980, na esfera oficial da cultura portuguesa.

E, na contracapa, este aviso:

Esta peça foi encomendada à autora pelo Teatro Nacional D. Maria II, para celebrar em 1980 o 4.º Centenário da morte de Luís de Camões. A «má fortuna» que, em vida, perseguiu o poeta, atravessou-se neste projecto impedindo a sua concretização, por critérios que deslustram quem os assumiu.

Embora David Mourão-Ferreira não tenha identificado o «sombrio e sinistro soba» a quem se referia, recorde-se que o titular da pasta da Cultura em 1980 era Vasco Pulido Valente (VI Governo Constitucional, 1980-1981, de Francisco Sá Carneiro) - que sucedera, no exercício das mesmas competências governativas, a Hélder Macedo (V Governo Constitucional, 1979-1980, de Maria de Lurdes Pintasilgo). Provavelmente, David Mourão-Ferreira estaria a referir-se, metaforicamente, ao contexto geral e crónico da política do governo português para o sector cultural...

Quanto ao outro documento (em fotocópia), é a resposta de Natália, manuscrita, a um daqueles «jogos da verdade» muito frequentes em certos círculos privados. O questionário, dactilografado, é constituído por vinte perguntas, tendo três delas ficado sem resposta. Aqui ficam, na sua crueza e sem comentários, as respostas de Natália às perguntas que lhe fizeram:

1. Qual é o seu nome?

(sem resposta)

2. Que idade tem?

(sem resposta)

3. Acha que tem competência para desempenhar o lugar que ocupa?

De mais.

4. Qual o seu prato preferido?

Cozido à portuguesa.

5. Qual a obra literária que mais o impressionou?

Vermelho e Negro (Stendhal).

6. Qual a figura histórica que mais admira e a que mais detesta?

(sem resposta)

7. Qual é a sua sensação ao ser reconhecido na rua?

Aflição (primeiro escreveu Timidez, que riscou).

8. Com que idade fez amor pela primeira vez?

17 anos.

9. Qual a sua actriz de cinema preferida?

Não tenho esse género de preferências.

10. Na sua vida de que mais se orgulha e de que mais se envergonha?

De ter desafiado. De ter tido paciência para aturar imbecis.

11. Qual a sua posição perante a homossexualidade?

Acho-a natural.

12. Como gostava de morrer?

A rir.

13. Quando está nervoso qual o seu tique?

Fumo.

14. Tem vícios? Quais?

Fumo desalmadamente.

15. Seria capaz de matar alguém?

Não: mandava matar.

16. Que pensa dos militares?

A generalização é incorrecta. O que penso de alguns militares é a pergunta a que dou a seguinte resposta: Entre eles há homens ordinários e extraordinários como em todos os agrupamentos.

17. roubou?

Nunca. Por vergonha.

18. Acredita em Deus?

Sim.

19. Acha-se uma pessoa interessante?

Acho.

20. Qual a sua frustração?

Não ser homossexual.

(Correia, n.d.)

Natália era mesmo assim: como Vitorino Nemésio a descreveu, por breves pinceladas, naqueles momentos de revolucionários românticos; como ela se autodescreveu, por pinceladas igualmente breves, neste questionário privado mas que alguém recolheu e guardou; e como todos nós a podemos ler na vasta e diversificada obra que nos legou, e que bem precisada anda de um estudo atento e desapaixonado, que consiga destrinçar a escritora lúcida e interveniente, a aniquiladora de certezas que é capaz de, a qualquer momento, abalar pela ironia, pelo sarcasmo e pela frontalidade, mas sobretudo pela inteligência de observação e pelo poder, dela decorrente, de transformar em discurso as dúvidas que nos abalam as certezas - da mulher plena, ao mesmo tempo vivida e barroca, ingénua e desassombrada, lírica e excessiva, que há-de ficar na História como uma das figuras mais perturbadoras do século XX português, e que sempre recordaremos como uma mulher poderosa, por vezes irada contra os imbecis mas sempre envolta na alva beleza em que se excede. Uma beleza que lhe vem de dentro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recepção: 28/03/2019

Aceite para publicação: 04/04/2019

 

[1]Ministério da Educação e Investigação Científica. Designação utilizada no VI Governo Provisório (1975-1976) e no I Governo Constitucional (1976-1978).