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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa June 2019

 

HOMENAGEM

Um país para Natália Correia

Fernando Dacosta*

* Escritor


 

No final da vida, Natália Correia afirmava que a sua obra só seria entendida duas a três décadas depois de morrer. Já lá vão, fê-los agora, 25 anos.

Ela era um ser tocado pelo absoluto, um ser que não cabia no espaço que lhe foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos comportamentos, nem nos sentimentos.

Poetisa, dramaturga, romancista, ensaísta, conferencista, deputada, editora, pintora, tradutora, marcou a vida portuguesa como poucos entre nós.

A literatura (através da escrita e do teatro), a política (de intervenções parlamentares e cívicas), a comunicação social (da rádio, jornais, televisão), o convívio (de conferências e tertúlias, como as do Botequim) foram os grandes campos onde se excepcionalizou.

Nunca foi, no entanto, uma escritora fácil, de enredos, de estórias, de acção, mas de pensamentos, de reflexões, de ousadias. O seu golpe de asa não tinha rede. Há quem considere Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia os mais arrojados pensadores do século XX português. Eu acrescento-lhes, pelas suas avançadíssimas concepções, Jorge de Sena.

Nada era gratuito em si, consequência da sua exigência, do não ceder ao facilitismo, ao compromisso, ao modismo, ao marketing, à desterritorialização que condicionam tantos dos autores actuais. Daí a sua atroz solidão intelectual, agravada por anedotários mundanos que se lhe colaram, e para os quais ela contribuiu com exotismos, exibicionismos, poses, provocações. “Fala-se muito da minha personalidade, transformando-a num espectáculo”, reconhecia, “para abafar a minha obra”

POETA PROFETA

Os que a não aguentavam combatiam-na, não pelas suas ideias mas pelos seus tiques, não pela sua criatividade mas pelas suas distracções, reduzindo-a a esboços de efeitos fáceis e levianos. É, aliás, pecha portuguesa fazê-lo: quando não conseguimos enfrentar os outros, tentamos ridicularizá-los, achincalhá-los.

“Eu pareço exótica, exuberante”, confidenciava, “mas é só por fora. É a minha forma de me libertar das tensões que as pessoas mordem dentro de si. Interiormente, tenho a imobilidade de um ídolo oriental. Mas não sou fria. Sou até um ser profundamente afectivo”.

Enraizada no húmus português e na universalidade portuguesa, de que era permanentemente defensora, entendia, na linha de um Pascoaes e de um Antero, “a poesia como profecia” e “o poeta como profeta” - o que ela, superiormente, era.

Nos últimos tempos, quando o Botequim se esvaziava, constrangia-se. “Os contentinhos desta democracia estão a destruí-la. Democratas de aviário tomaram conta do país e não perceberam que a democracia é um ponto de partida, não de chegada, uma fase para novos saltos em frente, não um pretexto para corrupções e impunidades sob a protecção dos partidos do centrão que domina o País como outrora o dominou a União Nacional”.

Maria de Lourdes Pintasilgo, que por pensar o mesmo fora afastada da política, e humilhada, e perseguida, apoiava-a no canto de cisne das suas utopias, sabendo que o fim (o pessoal e o das utopias) se aproximava. “Vêm aí tempos tenebrosos, de verdadeiro recuo civilizacional”, vaticinava, sem que a percebessem, a autora de Não Percas a Rosa: “Uma nova inquisição enegrecerá as primeiras décadas do próximo milénio, e eu não quero assistir-lhe, já não estarei cá!”, acrescentava.

Isto era dito há 30 anos, numa altura em que Portugal embolsava fundos comunitários, reverenciava hipotecadores do País, lavava feliz os pés à CEE.

A pressão dos mercados irá impor, alertava, “o gosto rasteiro do público, futebol, telenovelas, literatura light, música pop, passagens de modas, tudo açucarado, tudo servido como cultura, como modernidade. As preferências da burguesia, do proletariado e de uma certa intelectualidade confundem-se cada vez mais num plebeísmo degradante rumo a precipícios em que vão cair todos juntos”.

DIVERTI-ME NO FASCISMO

Agoniada com os optimismos então generalizados, desabafava, discordando de Pessoa: “Quase nada vale já a pena mesmo para as almas que não são pequenas. Aliás, só as almas grandes são capazes de escolher o muito pouco que ainda vale a pena”.

Indignada com os que tentavam pressioná-la, execrava-os: “Nunca ninguém me controlou! Nem antes nem depois do 25 de Abril, que totalitaristas existem em todos os regimes, e opositores a eles também. Mas não sou nenhuma dessas vítimas profissionais do fascismo e da PIDE. Repugna-me que se cobre pelas opções feitas, fazem-se, assumem-se, pronto! A longa noite do fascismo não foi para mim nenhuma longa noite porque não deixei que o fosse, pessoalmente até me diverti bastante nela. As pessoas que pertencem ao mundo da cultura resistem a deixar-se deformar, por isso é que ela (cultura) é tão combatida, tão iludida por todos”.

Acerada crítica dos que se jogavam à conquista do poder - como sucedeu com certa esquerda nos abrasados meses de 1975 -, Natália Correia foi de uma coragem galvanizadora, recusando (com Miguel Torga, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, Vergílio Ferreira, Fernando Namora e poucos mais) aceitar os que tentaram repintar ditaduras com outras paletas.

A passagem de Natália Correia pela Assembleia da República, como independente pelo Partido Social-Democrata (PSD), primeiro, e pelo Partido Renovador Democrático (PRD), depois, depressa a desiludiu das formações políticas existentes entre nós. Note-se que não foi por ideologia que ela entrou no Parlamento, foi por admiração, por afectuosidade com Sá Carneiro e Ramalho Eanes, que lhas retribuíam sempre.

Interesses lobísticos, jogos pessoais, disciplina partidária, rigidez burocrática não se coadunavam com as suas posturas de defesa da liberdade, da cultura, do bem comum. O PSD instaurou-lhe mesmo dois processos disciplinares por desrespeito das normas internas.

A LIBERTAÇÃO SEXUAL

A libertação sexual era para Natália Correia o ponto de partida para a libertação das pessoas, isto é, para a sua dignificação como seres humanos; quem se liberta sexualmente liberta-se de todas as outras opressões, políticas, ideológicas, religiosas, militares, jurídicas, culturais, grupais, familiares, etc.

Daí todos os poderes, ditaduras, democracias e afins imporem, ou pela força ou pela sedução, normas sexuais para dominarem os outros.

Não podia alhear-se desses temas, eleitos prioritários na sua actuação. A defesa dos direitos das mulheres e das minorias tornou-se-lhe causa assumida na comunicação social, na poesia, na ficção, no ensaio, no teatro, na política, na edição, no Parlamento, nas intervenções privadas e públicas. É a primeira pessoa a defender, num debate no Centro Nacional de Cultura, após o 25 de Abril, a homossexualidade.

Não tolera violência nos opressores nem resignação nos oprimidos, lutando em simultâneo contra a tirania de uns e a passividade de outros. Desvairava-a a maneira como mães e educadoras inculcavam nas crianças modelos de submissão da mulher ao homem, da aceitação do seu papel de parideiras de proles e de serventes de lares. Tornou-se implacável com as mulheres que, chegadas ao poder, actuavam nele como homens, piores que homens (travestis lhes chamava), em vez de contagiarem esse poder com a afectuosidade do feminismo.

UM SOCIALISMO PORTUGUÊS

Os nossos mitos, as nossas utopias tiveram nela celebrante incomum, caso do Desejado (o que contém a resistência, não a desistência), caso do culto do Espírito Santo (ela foi, em festividades de São Miguel, sua imperadora quando criança), caso de concepções que avançou, como a de Frátria (modelo pós-Pátria e Mátria), a de Ibericismo (a transformação da Ibéria numa comunidade de países independentes, de línguas portuguesa e espanhola - Somos Todos Hispanos é uma das suas obras de referência), dedicando-lhes trabalhos próprios, inovadores, polémicos e praticamente desconhecidos.

A reformulação de um socialismo português, baseado no municipalismo e no simbolismo do Espírito Santo, introduzido por D. Dinis, passou a privilegiar-lhe a atenção, sobretudo após a implosão do império soviético.

Não precisamos, na sua óptica, de importar teorias socialistas de Marx e Lenine, que não resultaram, basta retomarmos os antigos pilares do culto do Espírito Santo para evoluirmos, pilares que significam comida partilhada (o banquete gratuito), governo justo (entregue a uma criança), liberdade generalizada (desactivação das cadeias).

MASCULINIDADES APAVORADAS

Natália criou e reformulou conceitos que a projectaram para sempre, o do Femininismo (a valorização do feminino que existe tanto na mulher como no homem - que Marguerite Yourcenar internacionalizou), o do Andrógino, o ser inicial, completo, divino a que iremos retomar em futuro a vir.

A alquimia não significava para si (apenas) a transformação do ferro em oiro, nem a obtenção da eterna juventude; significava também a fusão dos sexos em cada ser humano, considerando a homossexualidade e a transsexualidade manifestações antecipadoras dessa androginia.

Com invulgar ousadia, acompanha Jorge de Sena no defender a prostituição (sagrada no início), no reivindicar a liberdade do amor, de todo o tipo de amor desde que mutuamente consentido, independentemente do sexo, da idade, do número, do parentesco dos amantes. O seu último romance, As Núpcias, é, por exemplo, um veemente cântico ao incesto.

Um dos grandes fenómenos do futuro vai ser, antevia, o do cansaço do homem e o da revitalização da mulher. Disfunções crescentes estão a levá-lo, como consequência, a agredir em vez de amar, a carregar a violência doméstica, o bullying, o assédio, a impotência, a híper-musculação, expressões de masculinidades apavoradas.

Quando o corpo da mulher esmorecer, subirá à cena o do homem; depois, o da criança; a seguir o do robot. Caminhamos para sagitários, metade pessoas, metade máquinas.

Natália bate-se pela recuperação do politeísmo, do paganismo, do barroco, do ecológico, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do produtivismo, do tecnocracismo, do excesso da natalidade.

A crucificação e a demografia mereceram-lhe tomadas de posição desassombradas. Aceitar a crucificação, em vez de a repelir, como acontece na nossa religião, é aceitar, pela resignação, os holocaustos, os holocaustos das guerras, das inquisições, dos terrorismos, das desigualdades, dos racismos. Sobre eles escreveu um notabilíssimo Armistício.

VERGONHOSAS EMIGRAÇÕES

O excesso demográfico foi tema que desmontou enfrentando as “mentalidades coelheiras”, como as designava, à direita e à esquerda, a norte e a sul, que agora voltam a emergir. Ela foi das grandes vozes contra o embuste da baixa natalidade. O marechal Costa Gomes, que a apoiava, avisava que era “mais ameaçador o perigo da explosão demográfica do que o da explosão nuclear”. Produto desvalorizado pelo excesso, “o homem só deixará de ser um desperdício, uma coisa, se escassear”, enfatizava ela: “A maioria dos nascidos hoje não encontrará amanhã emprego decente, nem autonomia, nem habitação, nem comida, nem família, nem cultura, nem lazer. É preciso reduzir a população do planeta antes que a natureza o faça por nós”.

Grande parte dos jovens não conseguirá emprego digno, não será financiadora da Segurança Social, como se apregoa, mas financiada por ela, o que se escamoteia. Aliás, é imoral querer que a Segurança Social seja sustentada pelos impostos dos trabalhadores, quando tem de o ser pelos orçamentos dos Estados.

A produtividade, sublinhava, depende cada vez mais da sofisticação tecnológica e cada vez menos do esforço humano. Portugal foi grande quando tinha três milhões de habitantes. Como não possui capacidade para mais de seis milhões, entrou, durante séculos, de exportá-los como mercadoria, através de vergonhosas emigrações.

“A fecundidade de uma pessoa, de um povo”, repetia, “não está já no reproduzir-se, está, sobretudo, no que melhora nos outros, no que faz evoluir nos outros.”

Urgente se torna, por isso, tirar o amor do jugo das igrejas, dos Estados, dos governos, dos tribunais, das seitas, das instituições que arvoram o inaudito direito de se meterem na cama das pessoas.

TRÊS METROS DE ALTURA

Natália Correia criou o Botequim para “antecipar um espaço que simbolizasse um Portugal a haver no futuro, espaço de convívio, de debate, de elegância, de subversão, de liberdade, de afectuosidade, de diversidade, de criatividade”. O Botequim foi isso.

“Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?” - interrogava. E acrescentava: “O importante não é haver ou não deuses, haver ou não milagres, é acreditar que os há”.

Natália Correia não tinha uma religião, um partido, um clube, uma escola literária, um lobby. Não era de associações mas de convívios, não de exclusões mas de acrescentamentos. Pensava pela própria cabeça, decidia pelas próprias convicções. Era uma mulher com três metros de altura num meio ponteado, à direita e à esquerda, por anões. A sua admiração ia para os que saltavam sem rede, os incultos conhecedores de mistérios, os seres de sagrados indizíveis, os fracturantes de hipocrisias sebosas.

Os notáveis textos satíricos - o escárnio e mal dizer constituem patrimónios preciosos na nossa literatura - que Natália deixou (como o poema ao deputado Morgado) visavam mais do que a pilhéria, visavam a mentalidade retrógrada que a afligia e que combateu - e que a venceu.

“Tenho perdido o melhor do meu tempo”, reconhecia, “com seres que execram o que os liberta e exaltam o que os enche de imundície. Há cada vez mais pessoas a viver bem no mal e mal no bem”.

NÃO SE SUBMETEU

Enfadava-se com os que criticavam imprecisões (em lugares, em datas, em nomes, em desinteresse por contraditórios) nos seus escritos, desdenhando de quem “só sabe esquartejar o trabalho alheio”, de quem “só sobrevaloriza pormenores e ignora essências; ora quem quiser ir ao interior, à alma das pessoas e dos acontecimentos tem de se socorrer de outros meios, como os da poesia, os da criatividade! Por isso escuso-me à exactidão”.

Cercada se encontrará com a perda crescente dos amigos, no final da vida, e a insensibilidade cultural dos novos poderes. Um partido político recusa-a como deputada independente, escamoteando-lhe a reforma a que, por mais cinco meses de exercício, tinha direito; jornais e televisões negam-lhe colaboração, universidades discriminam-na, instituições desamparam-na, a doença imerge-a. Recua, mas não se desalenta. Recusa mesmo pedir uma pensão de mérito, justificando que, “se o Estado português entender conceder-ma, aceito-a e agradeço-a, mas pedi-la, não peço!”.

Escreve, escreve febrilmente, deixando um espólio de originais riquíssimo. Anota: “Hoje concebe-se a cultura como utilidade, o que torna a utilidade cultura. O produzir, o consumir alienam, porém, as faculdades para o trabalho criativo. Eu prefiro desaparecer a submeter-me”.

Desapareceu e não se submeteu..