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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.41 Lisboa jun. 2019

 

NOTA DE ABERTURA

Isabel Henriques de Jesus*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva - Estudos sobre a Mulher. misabeljesus@fcsh.unl.pt


 

Homenagear Natália Correia é uma honra e simultaneamente um dever da revista Faces de Eva. Se qualquer uma das mulheres que trazemos semestralmente à capa da revista, já lá vão quase 21 anos, detém razões imensas para a sua apresentação, Natália Correia permanece no nosso imaginário como um ser surpreendente, cuja arte ultrapassa o que é reconhecido enquanto tal, para se confundir com a própria vida: extravagante, misteriosa, solidária, corajosa, mundana, solitária, apaixonada, Mulher!

E, no entanto, é como “Poéta” que é representada por mestre Martins Correia e é como poeta que provavelmente menos conhecida é. Desde já, a própria escolha da palavra poeta ou poetisa, qualificando Natália, não recolhe unanimidade. Se o escultor a identificou num masculino pretensamente “neutro”, e pessoas próximas reconhecem essa sua preferência, no prefácio a Breve História da Mulher e outros escritos, Teresa Horta defende precisamente o contrário, afirmando que Natália lhe terá dito: “Somos poetisas e não poetas. Teresa, nunca se esqueça. Para fazermos boa poesia não necessitamos de tomar para nós o que é do masculino.” Não pretendendo acentuar esta contradição, sendo para mim desconhecidos os contextos de tais afirmações, a poesia foi, para Natália, algo essencial, algo que ela fruía com a paixão e a inquietação de quem tudo fazia por inteiro, sem ceder a nenhum poder ou a causas que não as que considerasse válidas e, nesse caso, veementemente defendidas.

Solidária e praticante activa dos direitos das mulheres, tornou-se um modelo para muitas, contaminando-as com a energia e a exuberância de quem nada teme. Não se lhe conhece, contudo, adesão ou identificação a movimentos feministas, talvez porque a sua natureza fosse avessa a rótulos ou pertenças emanadas do exterior, porque não se revia numa concepção superficial de feminismo: “eu não sou feminista no sentido clássico de que a mulher é que vale e o homem não, nem pensar!”, e porque ela mesma conceptualizou a Mulher de um modo algo transcendente. O feminino, simbolicamente empoderado na ideia de Mátria, representa uma utopia libertária, para além do confronto com o patriarcado.

Maria Teresa Horta refere que em Natália existia um “feminismo encoberto, que jamais assumiu”, e são evidentes as referências às mulheres em vários textos seus, assim como uma aguda e implacável crítica à subordinação das mulheres face aos seus parceiros, estando essa questão bem presente, quer na escrita jornalística ou ficcionada, quer no exercício da sua cidadania. São conhecidas as suas intervenções a favor da despenalização da homossexualidade e despenalização do aborto, esta última protagonizada por movimentos feministas, mas recolhendo também a solidariedade de outras mulheres não afectas a esses movimentos.

Natália proclamava uma individualidade feminina liberta do mimetismo do universo masculino, realçando a importância da liberdade económica como condição indispensável para a autonomia e para a iniciativa das mulheres. Essa consciência, alicerçada num contexto sócio-histórico pautado por uma crescente escolarização, pelo acesso ao mercado de trabalho e pela possibilidade real e simbólica de autodeterminação das mulheres, encontrou eco em muitas outras vozes femininas que se lançaram na aventura da escrita no Portugal de meados do século passado. A consequência foi o surgimento de uma escrita em que as mulheres, além de sujeitos, passaram a ser as protagonistas da diegese. Muitas vezes representadas num processo de construção de uma vontade autónoma, em outros casos, denunciavam caminhos interrompidos, ou nunca iniciados. Estes textos reflectiam uma vivência feminina, contada pelas mulheres, assim evidenciando algumas características novas que os agruparam num tipo de escrita por muitos considerada “literatura ou escrita feminina”.

Os rótulos são sempre passíveis de discriminação, e muitas escritoras o recusaram, negando a virtualidade de uma separação artística genderizada. Em Solidão: Notas do Punho de uma Mulher, Irene Lisboa demarca-se claramente dessa designação: “Mulheres! Nos tempos que correm, de vós as mais lidadas e as mais ouvidas, a uma tarefa vos devíeis dar: a de derrubar o preconceito de que há uma arte feminina, arte de mulheres, diferente da dos homens.”

É sempre útil contextualizar, num determinado tempo e espaço, a emergência de novos fenómenos e entender as leituras que esses fenómenos engendram, também elas historicamente situadas. A maior proximidade com o surgimento de uma escrita feita por mulheres, sabendo como a ocupação de um lugar maioritariamente masculino tem sido árdua e penosa para as mulheres, pode mobilizar emoções fortes, tendencialmente a favor de uma pertença mais restrita e identificadora ou valorizando a neutralidade da condição artística, como é o caso de Irene Lisboa.

A esta questão não é também alheia a crença numa “natureza feminina” que suportaria essa “escrita feminina”, sabendo como hoje a maioria dos estudos de género recusa a rigidez dessa compartimentação. Interrogada sobre se a escrita tem sexo, a escritora Mafalda Ivo Cruz respondeu: “penso que o ser feminino ou o ser masculino não existem, ou não me interessam a mim na arte, nem na literatura, senão na multiplicação constante e selvagem de olhares. Que a crise da identidade é permanente e necessária. E que todos, homens e mulheres, vamos sempre na direcção do desconhecido conhecido.” Evocando argumentos diferentes e num espaço de cerca de seis décadas, ambas as autoras recusaram a bondade do epíteto “escrita feminina”.

E, no entanto, independentemente dos rótulos, a produção literária de sujeitos femininos não apenas ampliou as formas de olhar o mundo e de o representar, como encorajou as vozes que as condições sociais permitiram fazer emergir, ao mesmo tempo que o contexto cultural e histórico silenciou, desvalorizou ou esqueceu a maioria delas.

Tal não foi o caso de Natália Correia, a quem não foi possível silenciar, apesar dos esforços nesse sentido. Mas é necessário resgatá-la de algum apagamento que o tempo foi provocando, permanecendo realçados os aspectos mais mundanos da sua personalidade, enquanto a complexidade da sua obra poética está ainda muito por explorar.

Amigos e estudiosos de Natália aceitaram contribuir com os seus textos para este número de Faces de Eva, assim desafiando outros para a imersão na sua obra literária, plural e intensa. Penso que ela gostaria do desassossego deste repto!