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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.40 Lisboa dez. 2018

 

LEITURAS

Terceto para o fim dos tempos. Dal Farra, M. L. (2017). São Paulo, Brasil: Editora Iluminuras.

Rejane Vecchia da Rocha e Silva *

* Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, CEP: 05508-010 - Cidade Universitária, São Paulo, Brasil..


 

“Penso que a gente morre

tal qual o frango no prato que destrinçamos

(alheadamente)

em prosa com os convivas.

Às vezes sem ruído, outras esmagados

Sob o pecado, a falta não redimida -

como um trem que atravessasse as vísceras.”

Publicado em 2017, Terceto para o fim dos tempos, de Maria Lúcia Dal Farra, organiza-se em torno de um conjunto - profundamente afetivo - de lembranças, cujo percurso comovente entre passado, presente e futuro (ou a expectativa dele) revela-se ao longo das três partes que o compõem: “Casa Póstuma”, “Parque de diversões” e “Circo de Horrores”. Logo no início de sua apresentação, a poetisa adianta ao leitor seu ponto de partida, “- eu, concentrada neste contemporâneo campo nacional do adiado, tenho apenas a mim mesma. E por isso me multiplico três: para registrar a miséria (e a magnitude) das nossas idades e cataclismos”. Assim e desta forma, serão organizados e dispostos os poemas que integram cada uma das partes de Terceto e que guardam, inevitavelmente, muitas confluências entre as vidas dispostas nos poemas e as nossas próprias vidas, nós, leitores de Dal Farra, no auge de nossas experiências, desencadeando também a possibilidade de perceber e sentir o desolamento das perdas, a tristeza das ausências e o vazio deixado pelo que não existe mais, a não ser como fragmento, às vezes longínquo, da memória em uma espécie de aprendizado da própria vida. A começar pelos poemas “Visita à casa paterna”, “Oh mãe!”, “Mãe!” e “Visita à casa materna”, cernes da existência filial em que assomam a sombra e a luz do passado, é possível observar o rastro profundo de um denso entrelaçamento das ruínas deixadas que, contraditoriamente, entretecem-se com as intransponíveis saudades.

No entanto, e talvez paradoxalmente, trata-se de uma leitura que acaba por nos impor um saudável enfrentamento, uma vez que convoca uma atenção detida para tempos que não voltam mais e para as inconsoláveis lembranças, mas também uma atenção que faz emergir, ao mesmo tempo, um passado em que as potencialidades da existência e da experiência humana foram construídas e, portanto, vividas. A escrita de Dal Farra se propõe a uma releitura dos movimentos dessa experiência e acaba por revelar um profícuo entrosamento entre as formas diferentes de ser e de estar no mundo que se concatenam na medida em que se revelam, em suas especificidades, as experiências cotidianas no círculo sempre marcado dos afetos.

Na primeira parte, “Casa Póstuma”, vislumbram-se outros tempos em que a exposição a diversos conflitos da vida também foi capaz de nos fundar como seres humanos. As cicatrizes parecem marcar negativamente a existência e, nesse movimento dialético na tessitura dos sujeitos, vamos aprendendo com Dal Farra a enfrentar o passado e dele retirar além das cicatrizes a nossa própria história, identidade composta pela narrativa de todos nós, e assim: “o amor persiste ainda/ na sombra que se estende// pela cadeia eterna das montanhas.”

Já na segunda parte, “Parque de diversões”, a experiência da escrita, do fazer literário, desvenda-se em interlocução afinada com poetas de outros tempos cujas especificidades da vida ainda incidem no presente deste “contemporâneo campo nacional do adiado”. Assim, evocados estão, por exemplo, Camões, Dante, Beckett, Shakespeare, Florbela Espanca, Jorge de Lima, Herberto Helder, Fernando Pessoa, entre ironia, tristeza, alegria e, às vezes, uma certa brincadeira com as palavras e seus sentidos, confirmando assim a refinada leitora e crítica literária que é Dal Farra e que se afirma também, com maestria, na arte da produção poética.

Se os tempos passado e presente, nas partes um e dois, estão imbricados com a rotina da vida, com a rotina da existência humana, na parte três, “Circo de Horrores”, o leitor segue em direção a projeções antes futuras, mas agora já ultrapassadas e também irrealizadas, a olhares milimétricos ao redor do cotidiano da vida, a pequenos detalhes do dia a dia, a lamentos da mãe que vela o filho jamais nascido, vivendo, no entanto, a mesma dor de perdê-lo. Esses poemas parecem sofrer a ausência delicada de alguém que deveria fazer parte da vida e que sequer na lembrança consegue se materializar, pois é uma existência construída apenas ficcionalmente e é nessa margem, e somente nessa margem, que pode permanecer. Portanto, a terceira parte abarca, com diferentes intensidades, os conflitos e as amenidades entre as sofridas e cálidas experiências diárias, somadas ao desejo de realização do que permanece no campo dos sonhos e das possibilidades, daquilo que não foi vivido plenamente ou experienciado de fato. Decorrem dessa parte ambíguos sentimentos de desejo e de lamento, desenhando um movimento difuso por vezes, mas que está intrinsecamente relacionado à constituição do cotidiano das experiências simples da vida que compõem, indubitavelmente, todas as identidades, sejam elas pessoais e/ou coletivas. E são essas experiências cotidianas e simples, ora tristes, ora emblemáticas, ora contundentes, que alimentam Terceto para o fim dos tempos e convocam os leitores para uma reflexão sincera da existência humana.

“Descanso sobre uma página ainda

por escrever. Orgia de odores

na cozinha. Tanto crime por cometer.

Meus cabelos apertados nos bobs

e que suntuosa baixa vida

essa

de miúdas medidas metidas na [garrafa!

Os mastros do navio veleiro [desvirginam

o respectivo horizonte.”