SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número40Maria Emília Brederode Santos: “A Educação é aprender a tornar a vida mais significativa e bela”Ana Passos Ramos índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.40 Lisboa dez. 2018

 

ENTREVISTAS

Elvira Fortunato

Vice-Reitora da Universidade NOVA de Lisboa

Fernando Ribeiro*

*Investigador Integrado. Professor. Universidade NOVA de Lisboa, UAÇ - Universidade dos Açores, FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM-NOVA, Centro de Humanidades, DLCLM-NOVA-FCSH, Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas, f.ribeiro@fcsh.unl.pt


 

 

 

Elvira Fortunato, Professora Catedrática e Vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa, é Doutora em Engenharia dos Materiais, investigadora e cientista inventora. Trata-se de uma personalidade por demais conhecida nos meios académicos mas, também, na sociedade em geral, pelo reconhecimento que tem granjeado nacional e internacionalmente na área da ciência dos materiais.

Lamentavelmente, por razões estritamente editoriais, não podemos publicar na íntegra a entrevista gentilmente concedida pela Professora Doutora Elvira Fortunato. Associando-nos à celebração dos 40 anos da NOVA FCSH, e sendo a Doutora Elvira Fortunato um nome incontornável na Universidade Nova de Lisboa, a cuja direção pertence, iniciamos neste número a publicação da referida entrevista, sendo a segunda parte da mesma publicada no n.º 41. Desta forma, honraremos por duas vezes a nossa Revista com as palavras da professora e cientista.

(Direcção de Faces de Eva)

1. Foi Presidente das Comemorações do Dia 10 de Junho de 2015, nesse ano do segundo mandato do Presidente da República, Prof. Aníbal Cavaco Silva. Enalteceu então a criação da política de investigação científica levada a cabo pelo Professor Mariano Gago, assinalando a passagem de nível no campo da ciência que a comunidade científica portuguesa começou a experimentar e de que é exemplo a Sra. Professora. Gostaria de nos ilustrar o seu percurso universitário até à cátedra?

Sim, o ano de 2015 ficou marcado pela morte do Prof. José Mariano Gago, e eu não podia deixar de assinalar esse facto nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, estando eu até em parte a representar a investigação. Aliás, ele foi uma das individualidades homenageadas nesse dia a título póstumo.

O Prof. José Mariano Gago colocou a ciência na agenda de Portugal, e eu própria até costumo dizer que o que sou hoje, em muito a ele o devo; eventualmente, se não tivesse tido as oportunidades que ele proporcionou aos investigadores em Portugal, não seria o que sou. Gostaria ainda de dizer que, para além de colocar a ciência na agenda do dia, organizou e reformulou a ciência e a forma como se faz ciência em Portugal criando um sistema de avaliação transparente e internacional, possibilitando desta forma uma avaliação justa e competitiva. Mas, mais do que isso, fez-nos ser competitivos em termos de padrões internacionais! Não devemos esquecer que ele está na génese da criação do Conselho Europeu de Investigação! Costumo dizer que a ciência não avança se não for competitiva, do lado positivo entenda-se.

2. Em 2010, recebeu uma condecoração. O Presidente da República tornou-a Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo valor que tem sabido granjear como cientista de reconhecimento internacional. Investigação, Ciência, Inovação e Invenção são esteios do seu caminho. Qual o segredo de tal conjugação?

Não tenho segredos e também não trabalho para ganhar prémios. Esse nunca foi o meu objetivo. Faço o que faço porque gosto muito e acima de tudo porque sempre gostei de trabalhar em equipa. Com isto quero mostrar ao mundo que em Portugal também somos muito bons e fazemos muito boa ciência, criativa e com aplicabilidade! Não temos é por vezes as mesmas oportunidades que os nossos colegas de outros países têm, em especial na Europa. Mas, se olharmos para o mundo na sua globalidade, podemos dizer que não estamos assim tão mal. Voltando ao segredo, quero dizer que não há segredo! O que posso dizer é que o sucesso conquista-se com muito e muito trabalho, amor e muita dedicação, não de um mas de uma equipa excecionalmente motivada. É claro que os prémios sabem muito bem, e é sempre muito gratificante ver o nosso trabalho ser reconhecido pelos nossos pares, e também pela sociedade, em termos gerais.

3. Aceitaria, como Diretora do CENIMAT (Centro de Investigação de Materiais) descrever-nos o escopo deste Centro de Investigação? E como sua Diretora qual o papel que tem desempenhado na continuação da atividade de investigação congregando e potenciando as capacidades de estudantes pertencentes à Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa (UNL)?

O CENIMAT foi criado em 1991 no âmbito do Concurso para Infraestruturas para Ciência e Tecnologia do Programa Ciência e desde 2006 que integra o Laboratório Associado i3N (Instituto de Nanoestruturas, Nanomodelação e Nanofabricação, www.i3n.org).

O i3N é uma unidade de investigação nacional financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com o estatuto de Laboratório Associado, tendo sido a única unidade de investigação na área dos Materiais e Nanotecnologias a obter a classificação máxima de Excecional em todas as áreas científicas aquando da última avaliação.

O CENIMAT/i3N (www.cenimat.fct.unl.pt) está organizado em três grupos de investigação: i) Materiais Estruturais; ii) Materiais Moles e Biofuncionais e iii) Materiais para a Eletrónica, Optoeletrónica e Nanotecnologias. Possui laboratórios de investigação dotados dos mais modernos equipamentos de produção e caracterização na área dos materiais, dispositivos e nanotecnologias, capazes de servirem interesses e aplicações multissectoriais, sendo de destacar o recente laboratório de Nanofabricação, primeiro do género instalado numa Universidade em Portugal; possui ainda a primeira câmara limpa em Portugal para atividade na área da Microeletrónica de Processos. Para além disso, focados nas nossas atividades estratégicas de futuro, montámos o primeiro laboratório destinado ao processo de fabrico através de tecnologias por impressão de sistemas eletrónicos integrados autossustentados e de biossensores em papel.

Os investigadores que integram o CENIMAT/i3N demonstraram nos últimos anos uma elevada taxa de sucesso na obtenção de projetos financiados pela Comissão Europeia, indo das ideias (seis bolsas ERC, caso único numa universidade portuguesa) às aplicações inovadoras (em curso dez projetos do programa H2020, quatro diretamente com empresas e 37 da FCT-MCTES/PT2020, à data de outubro de 2018), demonstrando uma excelente capacidade científica e tecnológica na área da ciência dos materiais, materiais avançados e nanotecnologias, bem como nas suas aplicações a dispositivos, sistemas e produtos.

Tudo isto está disponível num campus universitário. Tal possibilita aos nossos alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento que tenham contacto com o que de melhor se faz em investigação e desenvolvimento. Tal permite a realização de trabalhos de tese com uma qualidade ímpar, em termos internacionais, fruto da riqueza científica e tecnológica que conseguimos trazer e implantar para a FCT NOVA. Na sua grande maioria, tudo isto se fez e se faz não com verbas do Orçamento do Estado, mas sim com o resultado dos projetos que conseguimos ganhar ao longo dos anos.

4. Não investiga, nunca investigou, isoladamente. Quer-nos mostrar como os centros de que é Diretora, CENIMAT e I3N, funcionam na potenciação do valor acrescido que o Departamento de que o seu marido, o Professor Doutor Rodrigo Martins, é presidente também acolhe?

Nós fazemos um trabalho de equipa, pois não é o singular que faz o todo! Particularmente nas áreas onde trabalhamos, é impossível fazermos coisas de forma isolada! Isso não funciona na área de ciências e engenharia, onde privilegiamos uma formação transversal, envolvendo várias áreas do saber. Esse é um dos nossos grandes segredos, que nos permite pensar coletivamente, e com isso pensar grande, em meios laboratoriais de grande envergadura assim como de grandes equipamentos, que não são compatíveis com atividades singulares de investigação. Aliás, não acredito muito no conceito de que cada Professor deva ter o seu próprio grupo de investigação. Ainda há tempos, um investigador português me dizia em Barcelona exatamente isso: como é que era possível em algumas áreas existirem por exemplo no mesmo centro trinta grupos de investigação singulares e terem várias vezes repetidos os mesmos equipamentos! Simplesmente não funciona e destrói uma visão de excecionalidade do nosso futuro.

5. Recebeu mais distinções no âmbito da sua investigação científica. Quais as que valoriza mais?

Sim, tenho recebido (e é muito bom). Gostaria de destacar duas distinções de Academias de Ciências: fui eleita neste ano de 2018 membro da Academia de Ciências de Lisboa, assim como fui eleita para membro da Academia Europaea, que é uma associação europeia não governamental, tendo por objetivo a promoção da excelência na Ciência e na Educação e promover uma maior ligação entre o mundo científico e a sociedade. Para além disso, quero destacar o facto de ser membro da Academia Europeia de Ciências, que me distinguiu com a Medalha Pascal em 2016, bem como em 2017 a Medalha Czochralski, atribuída pela Sociedade Europeia de Investigação em Materiais, que tem premiado excecionais investigadores mundiais e que muito me honrou.

II

1. Qual o mais importante de entre esses galardões no sentir da mulher cientista, professora, administradora de política de investigação a partir da Universidade Nova de Lisboa: a Medalha Pascal da Academia Europeia das Ciências ou a Medalha Czochralski concedida pela Academia de Ciências Polaca, em conjunto com o E-MRS (European Materials Research Society)?

Todos estes reconhecimentos são importantes, como já referi, e por vezes é difícil dizer qual deles é o MAIS IMPORTANTE. Para mim têm todos muito significado. Contudo, se quisermos ser mais objetivos, talvez a Medalha Czochralski tenha um impacto maior, pois abrange uma comunidade de cientistas muito grande, não só na Europa, mas no Mundo, e em especial na área em que trabalho que é a Ciência e Engenharia dos Materiais. Muito me honra saber que vários nomeados vieram depois a ganhar o Prémio Nobel. Por outro lado, estas distinções ainda se tornam mais importantes, pois acabo por ficar com uma responsabilidade muito grande, uma vez que fui o primeiro português que as recebeu, ainda por cima, mulher!

2. Afinal a sua invenção, o «transístor-de-papel», é como o ovo de Colombo. Do Silício para o Papel como suporte para o óxido de zinco metálico enquanto semicondutor. Explicar-nos-á a vantagem desta invenção, não só para a indústria internacional como para a nacional e respetivos campos de aplicação?

Sim, parece um ovo de Colombo, mas o que é verdade é que nunca ninguém o tinha pensado e feito a nível mundial e, tal como o ovo de Colombo, depois de ser feito é muito fácil. Na verdade, o que provámos, e no fundo é isso que acaba por ser mais disruptivo, foi que o papel ou melhor a celulose pode ser utilizada como um material de eletrónica, o que é completamente novo. É claro que o transístor de papel não é só papel, qualquer dispositivo de eletrónica ou circuito integrado conjuga muitos materiais diferentes, desde os semicondutores aos isolantes passando pelos condutores; neste caso em particular o papel tem a função de material isolante, muito embora, com o decorrer do trabalho de investigação que temos vindo a realizar, se consiga também funcionalizar as fibras de celulose e dotá-las de outras propriedades. Esta é uma mais-valia que serve um sector muito importante do nosso futuro, associado aos sistemas e dispositivos descartáveis! Ficamos todos muito felizes ao sabermos que o transístor de papel foi o tópico das Olimpíadas de Física 2018, organizadas pela primeira vez em Portugal, o que significa o reconhecimento total da academia; nestas olimpíadas participaram mais de 400 alunos de 90 países dos cinco continentes.

Os mais de mil transístores de papel e respetivos circuitos impressos também em papel foram projetados, produzidos, testados e validados antes das provas, nos laboratórios de microeletrónica e eletrónica impressa do CENIMAT|i3N da Nova FCT e CEMOP/Uninova, tendo por base o trabalho pioneiro que temos desenvolvido na área do papel eletrónico.

Em termos de aplicações são de destacar as da eletrónica de baixo custo, como sejam as embalagens inteligentes, testes rápidos de diagnóstico, etiquetas inteligentes para identificação e rastreamento, segurança e localização de documentos, entre outras.

Por outro lado, é relevante sabermos que este evento mereceu destaque no editorial de agosto de 2018 de uma revista altamente prestigiante, como é o caso da Nature Electronics.

3. De acordo com a sua experiência no campo da conquista e consequente defesa do valor acrescentado nacional, no campo da investigação científica internacional aplicada em meio universitário, como consegue Portugal defender-se de uma putativa apropriação de invenções nacionais?

Esta questão é muito pertinente e deve merecer a atenção redobrada dos nossos decisores políticos e das indústrias que temos! Na verdade, acontece que a ciência é global e é bom que seja repartida e utilizada por todos, como forma de gerarmos mais e melhor conhecimento, que sirva globalmente todos e a sociedade em particular! Outra coisa é a geração de riqueza tecnológica, traduzida em ideias inovativas, disruptivas ou não, que acrescentam valor ao que fazemos em termos económicos! Neste caso, existe concorrência, que passa muito pelo mérito das empresas em reconhecerem o futuro que pretendemos transformar e a forma como o mercado irá receber essas nossas ideias! Dou-lhe dois exemplos. Quando produzimos no laboratório o primeiro transístor totalmente transparente baseado em óxidos metálicos produzidos à temperatura ambiente, a Samsung foi a primeira empresa que de nós se aproximou para a explorar e globalmente utilizar. Hoje a tecnologia está introduzida, não só nos novos mostradores de televisão, como nos nossos telemóveis e numa miríada de interfaces flexíveis. Nada disto foi explorado a nível nacional, nem europeu! Espero que, com a eletrónica do papel, possamos tirar vantagem e implementar uma indústria de futuro, nascida e a enraizar em Portugal, para servir todos e, em particular, a Europa. Para isso estou muito confiante no laboratório colaborativo que acaba de ser aprovado, o AlmaScience, envolvendo a indústria do papel, como a Navigator, as empresas beneficiárias da tecnologia, como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, líder do projeto, as empresas de diagnóstico médico, como a Clara Saúde, e a autarquia da Almada, como mola motora e promotora da literacia científica. Acredito neste consórcio, na sua expansão como dinamizador de uma indústria estratégica e de futuro para Portugal.

Mas, para de facto se defenderem os interesses que se veem aparecer de forma notável em Portugal, será bom que os órgãos financiadores auxiliem no patentear das ideias e na sua exploração/comercialização, como forma mesmo de gerar fontes de receitas que o próprio Estado/agência financiadora poderá usar para reinvestir na sociedade, para termos mais e melhor ciência!

4. Tem protocolo institucional estabelecido com a Samsung para os mostradores planos. Quer ilustrar-nos em que medida a aproximação da investigação científica em meio universitário só tem a ganhar com a indústria de grande dimensão internacional?

Sim, trabalhamos com a Samsung desde 2006, e foi precisamente porque estávamos a desenvolver um trabalho pioneiro a nível mundial e de extrema importância para a Samsung, no que diz respeito à nova tecnologia OLED que já está a ser incorporada nos mostradores planos (ver comentário acima). O facto de fazermos uma investigação inovativa aplicada, muitas vezes disruptiva, também nos possibilita chegar de forma mais rápida junto das indústrias. Daí termos vários contratos e projetos que envolvem empresas não só nacionais como internacionais. Esta aproximação é muito boa, pois, além de aproximarmos mais a investigação do mundo real e permitirmos que o conhecimento se transforme em inovação, faz também com que os nossos alunos se possam envolver cada vez mais com empresas e mesmo nós, professores, podemos ir adaptando as matérias curriculares às necessidades reais. Não nos podemos esquecer de que estamos a formar futuros engenheiros e que os queremos incorporar no mercado de trabalho, não da realidade atual, mas do que esperamos acontecer daqui a pelo menos três a cinco anos!

5. E como estão a funcionar semelhantes protocolos entre os «seus» Centros de Investigação, o Departamento e a Faculdade a que pertence e a indústria, por exemplo farmacêutica, e/ou outras como a das embalagens, no caso da Tetrapak, uma vez que o futuro será sempre esse : o da gestão da inteligência e sua capacidade inventiva em função dos ganhos respectivos em prol da comunidade a que estão alocadas ?

Penso que estamos a ir no bom caminho. Ainda agora acabámos de ter um grande projeto aprovado na área dos Projetos Colaborativos (iniciativa do atual governo), em que fizemos uma associação entre empresas, a universidade e a sociedade através da Câmara Municipal de Almada, no sentido de trabalharmos de mãos dadas e lado a lado. O AlmaScience a que acima me referi.

(continua no nº 41 de Faces de Eva)