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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.40 Lisboa dez. 2018

 

ENTREVISTAS

Maria Emília Brederode Santos

“A Educação é aprender a tornar a vida mais significativa e bela”

Carla Cibele de Figueiredo*, Ana Rosa Mota**

* Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação, 2914 - 504, Setúbal, Portugal, carla.cibele@ese.ips.pt

** Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, 1069-061, Lisboa, Portugal.


 

 

A vida profissional de Maria Emília Brederode Santos sempre decorreu entre a educação, os media e a intersecção dessas duas áreas profissionais.

É licenciada em Ciências da Educação pelo Institut de Psychologie et des Sciences de l’Éducation da Universidade de Genebra, onde também leccionou, e mestre em Análise Social da Educação pela Boston University (EUA). Foi condecorada, em 2004, com a Ordem da Instrução Pública - grau de Grande Oficial e agraciada com o Prémio da Boston University’s General Alumni Association, em 1994 e o Prémio Rui Grácio da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, em 1992. É actualmente presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE). Maria Emília foi casada com José Medeiros Ferreira, tem um filho, Miguel Medeiros Ferreira, e dois netos.

Onde nasceu e como foi a sua infância?

Em Lisboa. A minha mãe era de uma família aristocrática, mas o pai dela tornara-se militante republicano na sua juventude, em Coimbra, e foi mesmo ministro da República duas ou três vezes. A minha avó paterna acreditava profundamente na educação. Não havia empregada analfabeta que entrasse lá em casa que não saísse a saber ler e escrever. Conjugando isso com o facto de ela ter sido escolhida pela Carolina Beatriz Ângelo para madrinha da filha (Maria Emília Barreto, mãe do advogado oposicionista Jorge Humberto Fagundes), sou levada a pensar que ela estaria próxima das “sufragistas”. Tanto o meu pai[1] como a minha mãe, oposicionistas ao regime ditatorial, não quiseram que eu pertencesse à Mocidade Portuguesa, nem que tivesse Religião e Moral. Na escola, quando diziam: “Quem é que não é baptizado?”, eu era quase sempre a única que me levantava; acho que aprendi a ser minoritária. Também queriam que eu soubesse línguas, e por isso fui para o Colégio Inglês, depois para o Liceu Francês, onde havia uma secção portuguesa que, entretanto, deixou de existir e cujo director acolhia e protegia os professores que, pela sua actividade política de oposição à ditadura, não podiam ensinar no oficial.

Foi criada com dois irmãos. Sentiu alguma diferença em relação a eles?

Certamente. Por exemplo, fomos todos para o Colégio Inglês, mas, quando acabámos a escola primária, os rapazes foram para o Liceu e eu continuei no ensino privado. Enquanto fomos miúdos, não dei por isso, e era muito contraditório porque, por exemplo, aos 16 anos deixaram-me ir para os Estados Unidos passar um ano com outra família. Quando voltei, passaram a ser mais vigilantes comigo; ir ao café, por exemplo. Gostava de ir aos cafés em Campo de Ourique, mas os meus pais diziam sempre aos meus irmãos para um deles ir comigo. E à noite eles podiam sair quando quisessem; eu, para ir ao cinema, tinha de ser sempre com alguém. Apesar de os meus pais serem republicanos, modernos, abertos, eram muito conservadores nessa matéria. A minha mãe era uma mulher moderna, foi das primeiras mulheres a guiar um carro, mas no fundo, lá em casa, o meu pai é que era a “star”.

E esse ano nos Estados Unidos, como foi?

Era bem nova, mas ficou imensa coisa. Acho que foi uma das grandes experiências da minha vida. Era um programa de intercâmbio, e foi a primeira vez que foram raparigas. Dessa experiência recordo três aspectos. Fui para uma casa “muito católica” e andei amargurada a pensar “como é que eu vou dizer que não sou sequer baptizada?”. Pensei que ia ser uma coisa complicada e, quando eu disse à senhora, ela respondeu: “O que interessa é a bondade interior e genuína”. Gostei muito da família, apreciei o seu ascetismo numa sociedade tão consumista. No aspecto social, era uma sociedade mais democrática. Os amigos da família tanto eram a empregada doméstica como um físico da NASA que tinha casado com uma refugiada húngara. Havia relação entre diferentes classes sociais: o que me impressionou bastante. O terceiro aspecto foi a cultura. Quando cheguei, levava presentes e um deles era uma capa de livro de couro. Quando lhes dei a capa, eles não tinham nenhum livro, e eu, que tinha vivido numa casa que era uma biblioteca de várias gerações, pensei: “Não vou conseguir viver aqui, como é que é possível?”. Depois percebi que era perfeitamente possível, eu trazia os livros da escola e o senhor lia-os entusiasticamente e passávamos noites a discutir. Também percebi que a cultura literária não é a única coisa e que as pessoas se podem entender para além disso.

E em relação ao estatuto da mulher?

Em relação à mulher, os Estados Unidos eram muito conservadores. Havia muito a ideia de que as raparigas eram educadas para casar. Quando foram os 50 anos do meu curso liceal, há cerca de 10 anos, houve uma festa e eu fui. As raparigas mais interessantes do meu curso tinham casado e não tinham feito nada profissionalmente. Uma, que se tinha revelado como actriz no teatro do liceu e ido para a universidade estudar teatro, chegou a dizer-me: “Encontrei um marido rico e casei-me”. Outra, que dirigia a redacção do jornal do liceu, também se tinha casado e abandonado essa prometedora carreira profissional.

E depois veio para Portugal?

Sim, vim para Portugal. Ainda fiz um ano no Liceu Francês, porque na altura não havia equivalências. Fui estudar Direito, mas só estive lá um ano. Fiquei muito chocada porque nessa altura o meu pai começou a falar em “profissões de senhoras”: educadora de infância, intérprete… Então decidi ir mesmo para Direito, mas confesso que não gostei nada do ambiente. Éramos muito poucas raparigas, cerca de 14 para 200 rapazes, e todas se sentavam à frente.

Gostei foi da Associação de Estudantes e do Teatro. Aí aprendi muito. Como eram na cave, chamo-lhes “os subterrâneos da Liberdade”. O grupo cénico de Direito estava a consolidar-se. Foi interessante, porque assisti à luta que foi conseguir uma peça que a censura deixasse passar. Uma das peças em que entrei foi “A Cantora Careca”, de Ionesco, que era uma repetição e por isso não houve problema. Mas a escolha da peça principal foi complicada. Começaram por “O Bailarino”, de Bernardo Santareno, que foi chumbada. Depois, uma peça de Ingmar Bergman, que viria a dar origem ao filme “O Sétimo Selo”, que a censura proibiu por duas razões: “tinha uma linguagem desbragada e uma visão derrotista da vida”. Acabou por ir para a frente uma peça do Yeats, “A terra que o meu coração deseja”, em que eu fazia o papel principal. Depois fui para a Faculdade de Letras. Eu gostava do raciocínio de Direito, mas era muito formalista e redutor, dando pouco espaço à criatividade. Por outro lado, havia poucas saídas profissionais para mulheres: não podiam ser juízas, nem ir para o corpo diplomático. No primeiro ano da Faculdade de Letras, ano da crise de 1962, praticamente não fui às aulas; estive sobretudo na vida associativa, a fazer greves, a debater, aprendi muito.

E as raparigas participavam?

As raparigas participavam, mas não dirigiam nem falavam em público. Só há uma que me lembro que falou uma vez, a Isabel do Carmo. Elas participavam como a maioria dos rapazes, iam aos comícios, aos plenários, faziam greve, discutiam… Na altura havia um grande receio por parte dos dirigentes associativos do que iria acontecer em Letras, pois, quando o Salgado Zenha ganhou as eleições para a Associação Académica em Coimbra, permitiu o voto às mulheres e, na votação seguinte, elas votaram todas contra ele. O José Medeiros Ferreira, que depois viria a ser meu marido, era quem estava à frente do movimento em Letras e acreditou sempre que as raparigas o iriam apoiar e de facto isso aconteceu.

Mas não assumiam a liderança...

Pois não, embora em Letras houvesse duas na direcção, a Benedita Monteiro e a Teresa Amado, o presidente e o vice-presidente eram homens. Nos anos seguintes, fui eu para a direcção, mas continuavam a ser os homens a liderar.

Pensa que a esquerda portuguesa, durante muito tempo, desvalorizou a questão feminina?

Era uma questão secundária! E não era só a esquerda portuguesa, lembro-me que o mesmo se passou em França, com a Argélia. Havia muito essa linha, primeiro a independência ou primeiro a revolução social, e depois essa questão das mulheres que havia de se resolver quase automaticamente. As mulheres trabalhavam e estavam envolvidas nos movimentos independentistas, por isso iriam, com certeza, ser valorizadas; depois verificou-se que não era bem assim. Nós não sentíamos que não nos deixavam falar; pelo contrário, estimulavam-nos para falarmos e, às vezes, éramos mesmo nós que não queríamos, não nos sentíamos confortáveis. Quando muitos foram presos, em 1965, eu senti-me na obrigação de falar em público, para me solidarizar com eles, mas vesti um sobretudo e pus um lenço na cabeça… Tapei-me o mais que pude, com receio ou vergonha de me expor.

Quando voltou a sair do país?

Em 1968 fui para Bristol e em 1969 para Genebra. O meu marido saiu por questões políticas. Quando ele saiu, nós não sabíamos para onde ele ia e, portanto, aceitei um lugar na Universidade de Bristol; no fim desse ano é que fui para Genebra. Em Bristol leccionei Língua e Cultura Portuguesas e, além disso, aproveitei para frequentar um seminário de Sociologia da Educação. Foi lá que descobri que em Genebra existia o Piaget. O Instituto de Psicologia e Ciências da Educação pertencia à Universidade de Genebra e tinha dois cursos; um de Psicologia e outro de Ciências da Educação; optei por este último, que também tinha ênfase na Psicologia, dada a importância científica e o prestígio internacional de Piaget. Eu era mais velha do que a maior parte dos meus colegas, tinha outra formação e experiência e ao fim de um ano convidaram-me para assistente, mas eu não quis. Estava a gostar tanto de estudar! Tinha uma bolsa da Fundação Gulbenkian, queria estudar a sério pelo menos mais um ano. Só no ano seguinte é que aceitei e foi uma experiência excelente que durou até 1974.

Depois regressou a Portugal

E fui para o Instituto de Tecnologia Educativa (ITE). O Rui Grácio convidou-me a mim, ao Bártolo Paiva Campos, ao Alberto Melo e ao Viegas Abreu. Vínhamos todos de fora! O desafio era fazer um curso de formação à distância para professores, porque havia falta de professores e muitos em exercício não tinham formação pedagógica. Nessa altura, o Bártolo e eu fizemos um programa de televisão que passou na RTP sobre educação que se chamava “Falar Educação”. Depois e com outros colegas, porque se dizia que a Educação Cívica Politécnica ia acabar, fizemos uma série chamada “Cá fora também se aprende”. Ainda quando estava no ITE, o Mário Mesquita convidou-me para dirigir uma página de Educação no Diário de Notícias

Depois começa a aventura do ensino?

Sim, primeiro na Faculdade de Ciências, no Ramo Educacional, de 1976 a 1984. Com a Ana Bettencourt, e depois também com a Odete Valente, o Mário Azevedo e outros, organizámos aulas em conjunto, um seminário interdisciplinar, fizemos trabalho de projecto, aprendizagens transversais a partir de problemas identificados e escolhidos pelos estudantes; tínhamos uma relação mais próxima do que o habitual em Portugal com os estudantes.

Em 1984 fui fazer o mestrado em Boston, que se inseria no âmbito do projecto de abertura das Escolas Superiores de Educação (ESE). Gostava da ideia das ESE, de ter a possibilidade de criar uma Escola de novo e de dar importância ao 1.º Ciclo do Ensino Básico e à Educação de Infância. A seguir foi a instalação da Escola Superior de Educação de Setúbal com a Ani [Ana Maria Bettencourt], um ano muito interessante e muito rico em que conseguimos conceptualizar o que queríamos da escola.

Em 1987 entra para a RTP. Como é que foi?

Eu saí de Setúbal e estava sem saber muito bem o que fazer e encontrei o Fernando Lopes que me disse que iam fazer a Rua Sésamo. Achei uma ideia óptima. A maioria das crianças não frequentava qualquer jardim-de-infância nem recebia uma atenção mais estimulante, mais educativa. E a TV tinha uma enorme influência! Estive lá 10 anos, de 1987 a 1997. Na Rua Sésamo tínhamos muito a preocupação com a igualdade de género. Quando deixámos de fazer a Rua Sésamo, fizemos outro programa para crianças pequenas, O Jardim da Celeste; eram apenas bonecos mas a educadora de infância era “humana”. As personagens eram sempre um par (um “rapaz” e uma “rapariga”), um do mundo urbano, outro do mundo rural e outro de uma vila piscatória. Quando analisámos a caracterização das personagens, vimos que as meninas eram todas iguais, estudiosas, tímidas, curiosas… Os rapazes tinham características mais diversificadas. Primeiro pensámos: vamos trocar, atribuir as características das personagens femininas aos rapazes e vice-versa. Mas ficava muito forçado. Então acabámos por colocar as características das personagens em papelinhos e tirar à sorte. Mas achei graça constatar como os estereótipos nos saem “naturalmente”, involuntariamente.

Deve ter sido uma experiência riquíssima, jáescreveu sobre isso?

Escrevi um livro sobre a Rua Sésamo, chama-se Aprender com a Televisão - O Segredo da Rua Sésamo, que foi traduzido para inglês. Dirigi também a revista da Rua Sésamo, que perdurou uns cinco anos para além do programa.

Foi presidente do Instituto de Inovação Educacional (IIE). Foi uma boa experiência?

Foi óptima, gostei imenso e percebi muita coisa, comecei a apreciar muito mais os professores.

No IIE havia algum trabalho sobre as questões de género?

A partir de certa altura começou a ser uma preocupação, não digo só ali, mas no geral da sociedade portuguesa.

A partir do IIE sempre foi líder. Nunca sentiu maior pressão por ser mulher?

Acho que nunca me senti discriminada, esse problema colocou-se na altura mas não o levei a sério. Lembro-me de uma situação em que fui admitida com vários colegas masculinos para determinado cargo e de eu ter ficado com um nível salarial abaixo - mas na altura achei que devia ter menos currículo…

Nunca deixou a escrita, pois não?

Escrevi sempre para jornais e revistas. O livro Os aprendizes de Pigmaleão teve como base a experiência do Ramo Educacional, mas, embora fosse a tese de mestrado, acho que ainda hoje é, dos que escrevi, aquele de que as pessoas mais gostam.

E o blogue “As Inquietações Pedagógicas”?

Isso é um colectivo, sou parte de um grupo, constituído pela Ana Bettencourt, a Maria José Rau, a Margarida Graça, a Teresa Vasconcelos, a Armandina Soares e a Lurdes Serrazina; actualmente coordeno com a Maria José a página do Jornal de Letras. As Inquietações Pedagógicas incluem ainda um blogue, uma página de Facebook, uma no Youtube e sobretudo uma tertúlia mensal na ESE de Lisboa.

Numa entrevista recente disse que uma das obras mais inspiradoras na sua vida tinha sido O Segundo Sexo da Simone de Beauvoir.

Sim, lembro-me de [essa obra] ter muita importância. Li-o entre o liceu e a universidade. Foi um livro que me fez tomar consciência da questão de género e sobretudo me deu força. A própria Simone de Beauvoir era um modelo, um exemplo.

Ultimamente a Maria Emília tem pensado e escrito sobre o envelhecimento. Gostávamos de a ouvir falar sobre isto…

Lembro-me de que na televisão havia uma realizadora que era muito gorda; contava-me que tinha sido uma mulher muito bonita e que, quando envelheceu e engordou, percebeu que isso a prejudicou nas relações profissionais. O meu marido costumava dar o exemplo da Natália Correia como uma mulher que tinha conseguido dar a volta. Era uma mulher muito bonita, mas que depois encontrou outra maneira de se impor, na poesia, na política, com uma voz fantástica. No meu caso pessoal, tenho a imensa sorte de, por um lado, ter uma grande paixão pela Educação e poder continuar a trabalhar nisso e, por outro lado, também ter interesses culturais bastante diversificados e viver num meio onde está constantemente a acontecer qualquer coisa.

Considera-se feminista?

Quer dizer, eu acho que sim. Não foi uma coisa prioritária durante muitos anos, um bocadinho naquela linha que eu tinha dito de ‘primeiro a luta política, depois a luta social e o género logo se vê’… Hoje já não penso nada disso, acho que as pessoas são mesmo determinadas pelos modelos que lhes dão. Lembro-me, em miúda, de andar à procura de livros com mulheres interessantes e não encontrar. Isso já mudou muito, mas no meu tempo eram três, sempre as mesmas: Madame Curie, grande cientista; Florence Nightingale, a enfermeira a salvar vidas… E a terceira, a Joana d’Arc… Um bocadinho limitado e maçador…

 

[1]. Nuno Rodrigues dos Santos, advogado republicano e democrata.