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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.40 Lisboa dez. 2018

 

DIÁLOGOS

Mulheres e Ciência

Anabela Rolo*, Iola Duarte**

* Universidade de Coimbra, Departamento de Ciências da Vida, Centro de Neurociências e Biologia Celular, 3000-456 Coimbra, Portugal, anpiro@ci.uc.pt

** Investigadora Principal, Universidade de Aveiro, CICECO - Instituto de Materiais de Aveiro, Departamento de Química, 3810-193 Aveiro, Portugal, ioladuarte@ua.pt

*Anabela Pinto Rolo (AR) é Professora Auxiliar no Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra e Investigadora no Centro de Neurociências e Biologia Celular da mesma Universidade. Licenciada em Biologia (1999) e doutorada em Biologia Celular (2003) pela Universidade de Coimbra, foi bolseira de pós-doutoramento em projetos conjuntos entre a Universidade de Minnesota - Duluth, a Universidade de Davis - Califórnia e a Universidade de Coimbra. Entre 2013 e 2015, foi Professora Auxiliar no Departamento de Biologia, Universidade de Aveiro, sendo Professora Auxiliar convidada na mesma Universidade desde 2007. Publicou vários capítulos de livros e é autora de mais de 70 artigos em revistas especializadas indexadas na sua área de investigação, envolvendo a regulação da homeostasia mitocondrial e o desenvolvimento de patologias metabólicas. Integra o corpo editorial de revistas internacionais e participa regularmente em atividades de divulgação de ciência. Em 2007 recebeu o Prémio L’Oréal de Mulheres na Ciência.

**Iola Duarte (ID) é Investigadora no CICECO - Instituto de Materiais de Aveiro, Departamento de Química da Universidade de Aveiro. Após a licenciatura (1997) e o Doutoramento (2003) em Química, na mesma Universidade, foi bolseira de pós-doutoramento em projetos conjuntos entre esta Universidade, o Imperial College of London e a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Em 2007, ano em que recebeu uma das Medalhas L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência, foi contratada como Investigadora Auxiliar, sendo, desde 2015, Investigadora Principal ao abrigo do programa “Investigadores FCT”. Ao longo destes anos, tem-se dedicado ao estudo do metabolismo celular em diferentes contextos toxicológicos e fisiopatológicos, sendo especialista na caracterização metabolómica de células, tecidos e fluidos biológicos por espetroscopia de Ressonância Magnética Nuclear (RMN). Publicou nove capítulos de livro e cerca de 70 artigos científicos em revistas indexadas, os quais contam com quase 2000 citações. Apresentou mais de duas dezenas de comunicações orais por convite, em conferências nacionais e internacionais, para além de muitas outras comunicações orais e em painel. Coordenou vários projetos de investigação e orientou três bolseiros de pós-doutoramento, oito de doutoramento (cinco dos quais em curso) e vários estudantes de mestrado e licenciatura, colaborando regularmente em atividades de docência.


 

Porque é importante destacar as mulheres na ciência?

ID: Durante muitos anos, as mulheres não tiveram acesso à educação formal, nem ao ensino superior, permanecendo excluídas das descobertas e invenções científicas. Nas últimas décadas, esta situação tem-se alterado radicalmente, com uma crescente presença feminina no meio académico e na investigação. No entanto, para romper definitivamente com preconceitos antigos, tantas vezes presentes de forma subliminar, é importante que o trabalho desenvolvido por mulheres não fique na sombra. A visibilidade e o reconhecimento das mulheres cientistas contribuem para a necessária mudança cultural no sentido de uma maior igualdade de oportunidades e direitos. Ao mesmo tempo, quando uma mulher se destaca na ciência, passa uma mensagem importante às adolescentes e jovens: a de que devem acreditar nas suas capacidades e investir na sua formação, para terem máxima liberdade de escolha. E o género não tem de ser, não deve ser, um fator condicionante dessa liberdade nem do sucesso profissional. Hoje em dia, a conciliação entre a família, a gestão de uma casa, a educação dos filhos e uma atividade profissional exigente e intensa, como a que se tem na carreira de investigação/docência, é um desafio enorme, mas que deve assumido por todos, homens e mulheres. As mulheres não têm de sentir à partida uma responsabilidade acrescida em relação à vida familiar, nem achar que têm de ser sobredotadas para desempenhar com sucesso as suas funções e serem pessoas realizadas.

AR: Um dos maiores desafios que enfrentamos atualmente consiste em realçar para os mais jovens a importância da sua individualidade e de conseguir desenvolver uma opinião, saber debater e sustentar essa opinião com argumentos válidos. Assim, quer ao nível das comunidades locais, quer a um nível mais global, o destaque dado às mulheres na ciência pode fazer a diferença, não só cientificamente mas também nas questões de género. Investigar implica criatividade e curiosidade, com a análise constante de novos problemas, a apresentação de novas propostas fundamentadas e a discussão de estratégias inovadoras que permitam resolver a questão científica. A divulgação do trabalho das mulheres na ciência, não só dos resultados finais, mas também dos obstáculos ultrapassados ao longo do percurso, servirá com certeza como motivação em todos os segmentos da sociedade, como exemplo da importância da perseverança e do conhecimento para o desenvolvimento e a evolução. Estes exemplos concretos do impacto da investigação, independentemente da escala, são fortes modelos para jovens, particularmente em comunidades nas quais a educação das mulheres está rodeada por desafios.

A discriminação de género ainda se sente no mundo académico e da investigação científica?

ID: Com certeza que haverá maus exemplos, tal como infelizmente ainda acontece noutros setores da sociedade. Mas penso que a situação tem vindo a melhorar. A diversidade é hoje vista como uma característica fundamental de uma boa equipa de investigação, e o género é um dos fatores-chave dessa diversidade. Homens e mulheres têm muitas diferenças biológicas e comportamentais, e ainda bem que assim é. Numa equipa, estas diferenças trazem perspetivas e competências complementares que aumentam a massa crítica e estimulam a produtividade. Pessoalmente, ao longo do meu percurso na Universidade de Aveiro e nas outras instituições onde trabalhei em parceria, nunca senti que o desenvolvimento da minha carreira fosse afetado negativamente pelo facto de ser mulher. Tive até a sorte de trabalhar com mulheres muito fortes, do ponto de vista científico e humano, o que com certeza terá contribuído para a minha perceção sobre este assunto. De forma mais geral, fico bastante satisfeita por constatar que Portugal é dos países com maior igualdade de género na área da ciência e tecnologia. De acordo com um relatório publicado em 2017 pela Elsevier, 49% dos investigadores a trabalhar em Portugal entre 2011 e 2015 são mulheres, uma percentagem superior à média europeia (41%)[1]. É ainda interessante notar que, em 20 das 27 áreas disciplinares avaliadas, Portugal é o país com maior presença feminina, mesmo em áreas onde as mulheres estão tipicamente sub-representadas, como a Física e Astronomia (37%), as Ciências Planetárias e da Terra (43%), ou as Ciências Ambientais (52%). Mas claro que estes números não bastam para nos descansar e há dados menos positivos. Por exemplo, no campo do registo de patentes, as mulheres representam apenas um quarto dos inventores em Portugal, sendo que este valor é o mais alto entre os países comparados. Também ao nível da liderança de projetos internacionais e da chefia de cargos de gestão me parece existir ainda um grande desequilíbrio. Em parte, este talvez possa ser explicado por um efeito geracional, já que essas funções são normalmente desempenhadas por pessoas mais seniores, entre as quais ainda há menos mulheres. Para além disso, o tal preconceito subliminar também desempenhará com certeza um papel, já que a autoridade, a capacidade de liderança e o envolvimento em processos competitivos ainda são muitas vezes vistos como características intrinsecamente masculinas. Mas acredito que também esta realidade acabará por mudar e que o género deixará de ser um fator influenciador da progressão na carreira científica/académica.

AR: Sim, embora na nossa experiência individual não existam exemplos da discriminação de género, esta é ainda uma realidade universal claramente ilustrada pela menor representatividade de mulheres nos principais cargos universitários, ainda que, como diga a Iola, este fenómeno possa ser resultado do efeito geracional. É necessário promover a paridade de género na ciência, assim como em todos os sectores da nossa sociedade, não só porque, de uma forma simplista, é o único caminho lógico a seguir, mas também pelo enriquecimento e aumento da produtividade observado em equipas com maior diversidade.

Que medidas poderão ajudar a promover a paridade de género na ciência?

ID: Desde logo, penso que é fundamental promover uma representação mais equilibrada dos dois géneros nas diversas áreas científicas, em todos os graus de ensino. A ideia de que existem áreas científicas mais adequadas a homens ou a mulheres deve, a meu ver, ser ativa e consistentemente rebatida, fomentando-se as escolhas em função dos gostos e talentos de cada um. Nesse campo, os pais e formadores assumem um papel especialmente importante, desde a escolha dos brinquedos oferecidos às crianças (as meninas também gostam de legos e jogos científicos!) até às regras de convivência nas escolas e ao tipo de informação e aconselhamento vocacional proporcionados. Ao mesmo tempo, é importante apoiar o desenvolvimento de carreira das mulheres cientistas, seja diretamente, através de programas de incentivos e reconhecimento do mérito, seja de forma indireta, promovendo uma cultura de conciliação entre as várias dimensões da vida e apoiando uma organização familiar equilibrada, em que a partilha de tarefas domésticas e cuidados parentais sejam uma realidade.

AR: Alcançar a igualdade de género depende sobretudo da mudança de mentalidades, em todas as idades, e do compromisso em estabelecer mudanças sustentáveis e concretas na sociedade. Para tal, é necessário abordar a questão sob diferentes perspetivas, tornando evidentes e relacionáveis os obstáculos que de uma forma mais ou menos óbvia podem restringir o caminho profissional que uma mulher pretenda seguir na ciência. Esta mudança depende de cada um de nós enquanto educadores e formadores, capazes de apoiar o talento, feminino ou masculino, e de enaltecer a diversidade, apagando o que possa parecer o mais inofensivo dos preconceitos logo na infância. Mas claro que ao nível institucional devem ser promovidas as diferentes expressões do trabalho científico e excelência, com opções de escolha que não podem ser limitadas pelo género. É incompreensível que, mesmo num cenário distante do nosso, seja necessário ainda debater questões como salários menores para mulheres que desempenham trabalho igual a um homem ou políticas institucionais que falhem como sistema de apoio.

 

[1]. Relatório “Gender in the Global Research Landscape”, Elsevier, 2017. Disponível em: https://www.elsevier.com/research-intelligence/resource-library/gender-report.