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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.40 Lisboa dez. 2018

 

ESTUDOS

Käthe Kollwitz (1867-1945)

DR. Alexandra Von Dem Knesebeck* [1]

* Historiadora de Arte, Comissária dos Museus de Aschaffenburg, 53173 Bonn-Bad Godesberg, Deutschland, wolter.knesebeck@t-online.de


 

RESUMO[2]

Käthe Kollwitz, artista plástica alemã do século XX, está no centro deste artigo; também o seu compromisso ao desenvolver a sua criatividade em defesa da humanidade e de uma arte moderna alemã podem ser compreendidos através deste artigo que sublinha a sua condição de criador de crescente renome internacional.

Palavras-chave: Käthe Kollwitz, a mulher, resistente, artista, obras-primas, história da Alemanha, século XX.


 

ABSTRACT

Käthe Kollwitz german 20th century famous fine art creator is at the centre of this article; her commitment while developing her creativity in favour of a true humanity and of a german modern art can also be better understood by means of this article which underlines her condition as a creator of increasing international renown too.

Keywords: Käthe Kollwitz, woman, artist, political-activist, fine arts, masterpieces, german history, XXth century.


 

A gravadora e escultora Käthe Kollwitz é conjuntamente com Paula Modersohn Becker a artista plástica alemã mais conhecida do século XX. Nasceu em Königsberg em 1867. O seu desenvolvimento pessoal foi decisivamente marcado pela casa dos pais, a qual se contava entre as da burguesia liberal. Julius Rupp,o seu avô materno havia fundado a primeira «Comunidade Evangélica Livre» de Königsberg. Assente na «fé na humanidade», característica do Iluminismo, baseava-se entre outros na obra de Gotthold Ephraim Lessing Die Erziehung des Menschengeschlechts «A Educação do Género Humano», segundo a qual se haveria de concretizar num futuro próximo «o reino dos céus na Terra», no seio de um género humano único e sem classes. O pai de Käthe Kollwitz, empresário de construção civil que veio a substituir o avô no presbitério, havia tomado parte na revolução de 1848, vindo a educar os filhos nesta tradição ao ler-lhes poemas revolucionários de poetas do Vormärz como Die Toten an die Lebenden «Dos Mortos para os Vivos» de Freiligrath. Certas analogias entre as expectativas da «Comunidade Livre» e os ideais social-democratas levaram-no em 1887, ainda sob a lei contra os socialistas, e em conjunto com seu filho Conrad Schmidt, o irmão mais velho da artista, a ingressar no Partido Social-Democrata da Alemanha. Para Käthe Kollwitz, o pai foi assim, no sentido mais literal, «quem a introduziu ao socialismo» (Kollwitz,1948, p.143)[3].

Käthe Kollwitz ficou a dever ao pai a sua formação como artista: «Lamentavelmente era uma rapariga, mas mesmo assim ele quis fazer tudo o que estava ao seu alcance. Partia do princípio que, não sendo eu uma rapariga bonita, os assuntos do coração não se tornariam um grande entrave» (Bohnke-Kollwitz,1989, p.725).[4] Por detrás desta formulação, esconde-se a opinião então geralmente aceite de que, para uma mulher, emprego e família eram coisas inconciliáveis. Como escopo da formação de sua filha, Carl Schmidt tinha em mente a « grande história, segundo Lessing». Subentendido está o pintor de cenas históricas oriundo de Düsseldorf: Carl Friedrich Lessing, cujo prestígio no seio de círculos liberais lhe advinha de ser o pintor, por excelência, do Protestantismo devido às suas obras sobre a Reforma. Carl Friedrich Lessing terá sido especialmente estimado em casa dos pais de K.Kollwitz, pois as Comunidades Livres tinham-se na conta de defensoras da Reforma. A predilecção por este pintor revela de resto que Carl Schmidt colocava a arte ao serviço da finalidade religiosa e da mundividência da comunidade livre. Como objectivo de formação para uma mulher, a pintura histórica era claramente invulgar, por em finais do século XIX ainda continuar a ser considerada o mais exigente género de pintura e domínio exclusivo dos homens.

Logo aos treze anos, Käthe Kollwitz teve aulas particulares de desenho com um gravador da Academia de Königsberg, que dirigia as classes de desenho livre e de desenho de modelos de gesso. Embora este gravador não se contasse de modo algum entre as «melhores forças de Königsberg» (Bohnke-Kollwitz,1989, p.736), como mais tarde a artista haveria de referir, a escolha de um mestre das primeiras classes de desenho da Academia mostra bem em que medida Carl Schmidt se tinha esforçado por possibilitar uma formação adequada à filha, para quem, por ser mulher, quase todas as portas das Academias ainda estavam fechadas. Quando em 1886 enviou por um ano Käthe Kollwitz para a Escola de Mulheres Artistas de Berlim, uma das únicas três grandes instituições de ensino na Alemanha para promissoras mulheres artistas, Käthe Kollwitz apresentou ao seu professor local: Karl Stauffer-Bern um desenho, ilustrando o poema de Freiligrath Die Auswanderer «Os Emigrantes», mostrando pela primeira vez tipos de trabalhador. É de excluir uma intenção sócio-crítica do desenho, uma vez que o poema, muito anterior aos poemas revolucionários de Freiligrath,e por enquanto ainda completamente vinculado ao Romantismo, refere-se a camponeses emigrantes num porto. Inicialmente Käthe Kollwitz escolheu motivos oriundos da vida dos trabalhadores, por os achar simplesmente belos. O pitoresco porto de Königsberg com a sua colorida agitação atraía especialmente a jovem Käthe Kollwitz: «para mim, era particularmente belo o estivador de Königsberg, belos eram os Jimkies polacos nas suas Witinnen [canoas-com-vela], bela a nobreza dos movimentos do povo» (Bohnke-Kollwitz, 1989, p. 741).

Em 1887, Käthe Kollwitz recebeu novamente lições particulares em Königsberg. Desta vez dadas pelo pintor Emil Neide, enquanto mestre da academia de Königsberg para as classes de Gesso e Nu. Para além de as aulas particulares na terra natal não serem tão dispendiosas, aos olhos do pai Neide teria possivelmente a vantagem, face aos mestres da escola de senhoras de Berlim, de ser um conceituado pintor de motivos históricos da Prússia Oriental. Este aspecto caiu completamente no esquecimento, uma vez que hoje em dia de Neide ainda e só se tem ideia a partir das memórias de Käthe Kollwitz. Na suas memórias, ela situava-o erradamente como mero pintor de cenas e costumes do quotidiano, o que mostra quanto as suas concepções acerca da arte já nessa ocasião se afastavam das de seu pai. Käthe Kollwitz sentia o tempo passado sob a orientação de Neide como sem sentido e agradeceu aos pais quando estes em 1888 a enviaram por dois anos para a Escola de Mulheres Artistas de Munique. À época, esta cidade detinha, na Alemanha, justamente a liderança no campo da pintura de cenas históricas. Também o seu professor nessa escola bávara de mulheres artistas, Ludwig Heterich, havia-se destacado até esse momento apenas como pintor histórico.

Durante o período de estudos de Käthe Kollwitz em Munique, a pintura naturalista ao ar livre prevalecia, destacando-se Fritz von Uhde e Max Liebermann por reproduzirem a vida do dia a dia do povo simples. Uhde, o célebre pintor de crianças alemão, apresentou em Munique,1889, o seu muito afamado quadro de crianças, o qual foi igualmente também o seu primeiro quadro de temática religiosa : «Deixai vir a mim as criancinhas». Käthe Kollwitz apreciava-o de tal modo que das gravuras que fez, a primeira que guardou foi um estudo, uma água-forte, que reproduz vários dos seus motivos[5]. O sucesso do quadro não reside exclusivamente no facto de nele se ter transposto o encontro de Jesus com as crianças para o meio camponês coevo, mas sobremodo na profundidade e interioridade, com a qual Uhde retratava as crianças. O modo intensivo como a criança é tratada na obra de Käthe Kollwitz tem aqui uma das suas raízes[6] .Quando, pela primeira vez após os seus estudos em Munique, a artista decidiu em consciência reproduzir a vida dos trabalhadores em situações características e isentas de qualquer crítica social, Max Liebermann tornou-se para si própria como para muitos jovens e modernos artistas um exemplo importantíssimo. Verifica-se tal em dois pequenos esboços a óleo - sem data exacta - sobre o tema Biergarten «Jardim da Cerveja» (ilustração 1) entre outros bem como o confronto entre a obra a pastel «Selbstbildnis en face mit rechter Hand» [7] «Auto-retrato en face com mão direita» com obras a pastel de Liebermann dos inícios dos anos 90. Este auto-retrato é um dos cerca de 120 da artista. Importância igualmente grande, tinham os auto-retratos também para alguns dos contemporâneos de Käthe Kollwitz como Lovis Corinth, Edvard Munch, Max Beckmann ou Otto Dix (Hülsewig-Johnen, 1999).

Em 1891, a artista casou com o médico Dr. K.Kollwitz e foi viver para Berlim no Prenzlauer Berg na actual R.Kollwitz [8]. Aí não podia pensar em pintar:

Comecei a fazer águas-fortes e para isso realizei uma quantidade de desenhos preparatórios à pena. De todo o modo agora desenho incomparavelmente mais do que pinto, pela razão prática, segundo a qual em Berlim durante os primeiros anos de casamento mal terei dinheiro para alugar um atelier. E pintar a óleo (…) em salas apertadas, é uma ideia triste (Kollwitz, 1966, p. 20).

Nessa época, tematicamente falando, a artista debateu-se, intensivamente, com a literatura do naturalismo e com a problemática da mulher, aí discutida. A água-forte Frau an der Kirchenmauer «Mulher junto à parede da Igreja» de 1893 pertence ao conjunto de trabalhos, dedicados à questão do género (Knesebeck, 2002, p.17). A partir de um esboço representando mulher ajoelhada perante uma imagem de Maria, percebe-se a alusão a Gretchen grávida extraída do Fausto de Goethe, que na cena da Muralha se dirige à Mãe de Deus (Nagel-Timm,1980, p. 90) suplicando ajuda. Käte Kollwitz despertou para a problemática do género também através da obra do pintor, gravador e escultor Max Klinger. Em ambos os seus ciclos de águas-fortes criados nos anos oitenta Ein Leben «Uma Vida» e Eine Liebe «Um Amor», que causaram profunda impressão na artista, M.Klinger trata o destino de mulheres solteiras, vítimas da moral hipócrita. Em 1891, foi publicado o tratado de Klinger Malerei und Zeichnung «Pintura e Desenho». Neste, a artista encontrou uma fundamentação totalmente genérica para se confrontar com o lado negativo da vida como seja o conflito entre sexos e assim dar expressão ao seu ponto de vista completamente pessoal e subjectivo; todavia o mesmo não acontecendo para os seus trabalhos tardios de crítica social, uma vez que Klinger colhia a influência da perspectiva existencial pessimista de Schopenhauer, entendendo por crítica, a que o gravador deve praticar, e não uma crítica social (Knesebeck, 2007, pp.54-73).

Responsável pela orientação do seu trabalho para a crítica social, na origem do seu primeiro ciclo Ein Weberaufstand «Uma Revolta dos Tecelões» foi o contacto estreito com a miséria da grande metrópole através do consultório de seu marido no Norte de Berlim. Apesar do nascimento de ambos os seus filhos Hans e Peter, 1892 e 1896, a série «Os Tecelões» surgiu associada à estreia do drama de Gerhart Hauptmann «Os Tecelões» entre 1893 e 1897 (Knesebeck, 2002) (ilustração 2). O sucesso desta encenação foi extraordinário. Processos vários relacionados com a autorização para levar à cena «Os Tecelões» tornaram rapidamente este drama uma das mais conhecidas e mais discutidas peças de teatro naturalista da Alemanha. Em Kollwitz a realização cabal do ciclo não se prendeu no entanto com a ilustração do drama, nem com a representação do facto histórico ocorrido em 1844: revolta dos tecelões que deu origem ao drama. Aquele apresenta antes uma rebelião fictícia dos tecelões do presente, associando-se a representações coevas de greves nas artes plásticas e na literatura de referir em primeiro lugar o romance Germinal de Zola (Knesebeck, 1989). Em 1891/92, a fome atroz no seio dos tecelões da Silésia levou a uma campanha gigantesca por todo o império, tornando, no início dos anos noventa, esta temática actual. O ciclo «Tecelões» de Käthe Kollwitz era tão subversivo para as autoridades como o drama de Hauptmann. Por isso aquando da Grande Exposição de Arte em Berlim, 1898, o Imperador Wilhelm II recusou conceder-lhe uma medalha, justificando-se: «Seria o mesmo que desprestigiar cada alta condecoração; Ordens e Condecorações honoríficas pertencem ao peito de homens de mérito» (Knesebeck, 1998, p.9).

Wilhelm II não conseguiu impedir o imediato sucesso artístico conseguido por Käthe Kollwitz com o seu ciclo «Os Tecelões» este haveria de permanecer a sua obra mais conhecida (Bohnke-Kollwitz, 1989). Nesse mesmo ano, Max Lehrs, director do Gabinete de Gravação de Dresden, começou a coleccionar sistematicamente a obra de Käthe Kollwitz, tornando-se um dos seus maiores promotores (Kohlmann-Hodick, n.d.)[9]. Em breve muitos museus começaram a adquirir obras de Kollwitz; a par do Gabinete de Gravadores de Berlim entre outros, também o Albertina de Viena e o Museu Britânico de Londres [10]. Max Lieberman, a quem Käthe Kollwitz ficou a dever a proposta para uma medalha junto do júri, fundou ainda no mesmo ano, uma organização alternativa à «Grande Exposição de Arte de Berlim»: a «Secessão de Berlim», constituindo assim uma instituição em prol dos Modernos, a qual preparou o caminho ao Impressionismo alemão, mas também a artistas como Hans Baluschek, Hans Skarbina, Käthe Kollwitz e Heinrich Zille. Desde a primeira exposição em 1899, Käthe Kollwitz esteve sempre presente e desde 1901 como membro de direito, uma vez que a «Secessão de Berlim» foi a primeira associação de artistas de Berlim a acolher mulheres. Ser membro desta associação abriu-lhe inúmeras possibilidades de expor quer nacional quer internacionalmente como em Paris, Bruxelas, Londres, Viena e Veneza, agilizando-lhe contactos com membros equivalentes como Theophile Alexandre Steinlen e Auguste Rodin, com quem se encontrou em Paris. A maior parte dos trabalhos a cores da artista, em particular as litografias de 1904 auto-representando-se, aconteceram entre os anos de 1901 e 1904 os da sua estadia em Paris (ilustração 3).Como seu modelo surgia o norueguês Edvard Munch, que à época experimentava, como nenhum outro, a litografia, mas também artistas franceses como Eugène Carrière (Knesebeck, 2003). Decisiva para a continuação da evolução da artista, foi sobretudo a sua estadia de dois meses em Paris, 1904, motivo de mais obras em pastel retratando praças e locais de diversão nocturna em Montmartre: «Paris encantou-me. A parte da manhã, passava-a na velha Escola Julian: classe de escultura, para me familiarizar com os fundamentos da escultura. À tarde e à noite ficava nos museus da cidade, que me encantavam, nas caves, pelas praças ou por locais de diversão nocturna em Montmartre (…) Estive duas vezes no atelier de Rodin (…) No centro das suas estátuas de grande dimensão destacava-se o imponente» Balzac (Bohnke-Kollwitz 1941, p.742). As emoções , paixões, conflitos de que são expressão as esculturas de Rodin, impressionaram profundamente Käthe Kollwitz, como faz prova este obituário: «Para mim, nessa época, em toda a escultura contemporânea, só existia unicamente Rodin. (…) Onde residia o poder das suas criações, que se nos impunham, nos convenciam, arrebatavam apaixonadamente)? (…) Na sua capacidade de encontrar para cada conteúdo espiritual a forma plástica convincente, especificamente apropriada a esse conteúdo. (…) quer fosse então do seu par amoroso de grandes dimensões com as mãos maravilhosamente plenas de alma (…) quer dos burgueses de Calais ou da sua mulher acocorada, da sua obra passava sempre em torrente uma forte emoção directamente para mim» [11]. O par amoroso de Rodin, 1898, o «Beijo», inspirou Käthe Kollwitz possivelmente depois de ela própria ousar em 1909/10 a sua primeira experiência de maiores dimensões ainda existente: Liebespaar «Par Amoroso» (Seeler, 2016)[12] (ilustração 4). Se as figuras de Rodin são dominadas por um movimento fluído, de que o espectador só se consegue aperceber se as rodear completamente, o trabalho de K.Kollwitz concluído em 1915 assenta pelo contrário como bloco, como estatuária, para de modo algum ser apreciado de todos os ângulos. Também as suas esculturas mais tardias apresentam esta particularidade, o que denuncia o confronto com Barlach (Fischer, 2010)[13].

Em 1907, Käthe Kollwitz foi o primeiro gravador a receber o Prémio Villa Romana instituído por Max Klinger, que vem, até aos dias de hoje, oferecendo a artistas estadia anual em Florença. Käthe Kollwitz permanece apenas alguns meses em Florença, viajando posteriormente a pé com uma amiga até Roma. Em Florença, de onde lhe custa menos regressar do que de Paris, foram na sua maioria as Igrejas e as esculturas dos princípios da Renascença que mais a impressionaram: «Coisas maravilhosas nos frescos (…) Depois o Bargello , onde estão todos os Donatellos, deslumbrantes os efebos e os homens jovens, David é lindo. Até agora o mais marcante para mim foi Masaccio, num Fresco de Stª Maria del Carmine, no qual um efebo nu ajoelha no seio de um grupo de homens austeros e depois numa Maria, que tem o Menino ao colo por sua vez sentada ao colo de Stª Ana»(Kollwitz, 1948) [14]. Este tema haveria mais tarde de ser o ponto de partida para a última escultura de artista, do ano de 1943.

Depois de Käthe Kollwitz logo em 1899 se virar para a temática do seu segundo ciclo patente na folha isolada Aufruhr «Tumulto», começou os trabalhos da sua segunda série Bauernkrieg «Guerra dos Camponeses». Sofreu forte estímulo com a leitura da obra de W.Zimmermann Allgemeine Geschichte des Grossen Bauernkrieges «História Geral da Grande Guerra dos Camponeses» cuja primeira edição aconteceu em 1841/3. Zimmermann pertencia, como o pai de K.Kollwitz, aos círculos liberais do Vormärz e na sua obra tomava partido pelas reivindicações dos camponeses de 1524/25, que em parte em nada tinham perdido a sua actualidade. «Nessa época lia a Guerra dos Camponeses de Zimmermann, obra na qual se relatava sobre uma camponesa: “Ana, a Negra” que acirrava os camponeses. Criei então a enorme folha com a multidão dos inflamados Losbruch «Arremesso» (ilustração 5). A partir desta, recebi a encomenda para o ciclo.» Käthe Kollwitz refere-se a «Hofmännin, a negra», uma das poucas figuras femininas historicamente documentadas da guerra dos camponeses, que abençoou e acirrou os camponeses a assaltarem Weinsberg. Parece afinal que inicialmente quis dedicar todo o seu ciclo a esta figura feminina da guerra dos camponeses presente todavia nos romances de 1900, cuja existência não era de resto historicamente comprovada (Knesebeck, 1999). Esta figura fascinava especialmente Käthe Kollwitz por também ela própria, tal como «Hofmännin, a Negra», provocar sensações exactamente semelhantes.

Em 1920, o seu filho Hans Kollwitz relatou a propósito no seu diário:

Agora já não lhe [ à sua mãe - anotação da autora] seria possível sentir o ódio revolucionário, o querer vingar-se, olho por olho, dente por dente; já não tomava como essencial o ódio dos deserdados contra os possidentes mesmo que ainda o sentisse. O sentimento tornara-se cósmico. Quando criou Losbruch na Guerra dos Camponeses, estaria consciente do facto de já não poder proporcionar algo de revolucionariamente mais vigoroso e do facto de agora tal estar para si concluído (Kollwitz, 1966, p. 135).

Em 1904, Käthe Kollwitz recebeu a encomenda da conservadora «Sociedade para a Arte Histórica», para realizar o seu ciclo de Guerra dos Camponeses para ser oferecido aos seus membros. Entre 1905-08, e associada a Losbruch, uma série acabou por dar origem à «Guerra dos Camponeses» cuja estrutura se assemelhava fortemente ao ciclo dos tecelões, concedendo embora uma clara e maior importância às mulheres e às crianças, o que denota quão pouco Käthe Kollwitz estava interessada na representação de factos históricos. Relativamente à inclusão de crianças nas ocorrências da guerra, coloca-se a questão: em que medida Käthe Kollwitz tanto nesta série como já na do seu ciclo de os tecelões, não estaria a pensar em representar as greves ocorridas na sua época. Pelo menos, na época da Viragem-do-Século, o SPD tomava a época da Guerra dos Camponeses como comparável à sua época. No seu conjunto, as folhas do segundo ciclo têm um efeito mais monumental que as da primeira série. A aglomeração e concentração com a respectiva carga simbólica dos grupos de figuras em formas estruturantes simples deve remeter-se para o facto de a artista se ter intensamente confrontado ao longo do seu ciclo «Guerra dos Camponeses» com caricaturas da época. A primeira folha mostra logo uma imagem de opressão e injustiça bastante comum nas caricaturas: dois camponeses, seguramente pai e filho, que à falta de animais de tiro tiveram de se engatar ao arado. Também o invulgar motivo, em particular na arte, da folha seguinte Gewaltigt «Violada» surge nas caricaturas contemporâneas francesas. Com o ciclo da Guerra dos Camponeses, que, devido à sua divulgação enquanto oferta da «Sociedade para a Arte Histórica» aos seus membros, fez aumentar enormemente o grau de notoriedade de Käthe Kollwitz, o ciclo temático revolucionário da artista atingiu o seu auge e epílogo (Fischer, 2017).

Se se pensar, o quanto Käthe Kollwitz deve o seu ciclo Guerra dos Camponeses às caricaturas, já não nos surpreenderemos tanto com o facto de ter começado a trabalhar directamente em consociação com o «Simplicissimus». O «Simplicissimus» foi publicado entre 1896 e 1944 em Munique sendo em inícios do século XX o hebdomadário satírico mais conhecido da Alemanha. O seu grande modelo eram o «Charivari» das excelentes caricaturas de Honoré Daumier e o britânico «Punch». O «Simplicissimus», liberal de esquerda, devia o seu grande sucesso quer ao seu estilo brilhantemente polémico de tratar a actualidade política, quer igualmente à qualidade artística das contribuições literárias e das ilustrações. Ao lado de caricaturistas de valor como Thomas Theodor Heine e Olaf Gulbransson também artistas como Théophile Alexandre Steinlen, Max Slevogt, Ernst Barlach e Heinrich Zille contribuíam esporadicamente para a revista. Para um artista, tal colaboração era tida como altamente prestigiante e vista como um marco na carreira do autor de cada gravura. Entre 1908 e 1911, a revista publicou catorze desenhos de K.Kollwitz. Através deles a artista, dirige-se directamente aos problemas actuais do proletariado, fazendo da gravura cada vez mais um instrumento de empenhamento social e político. Nos seus trabalhos para o Simplicissimus, era nomeadamente de particular interesse a questão das mães proletárias (Knesebeck, 2007, pp.17ss.). A atenção de Käthe Kollwitz foi possivelmente dirigida para este grupo de mulheres devido, entre outros, à exposição Deutsche Heimarbeit «Trabalho-em-Casa na Alemanha», 1906, para a qual realizou o seu célebre cartaz (ilustração 6) (Knesebeck, 2002, p. 95). Das 100 000 mulheres trabalhadoras de Berlim entre 60 000 a 65 000 trabalhavam a partir de casa. Muitas delas eram casadas e mães de várias filhos. Por motivos financeiros e após o nascimento do segundo filho, a maioria delas tinha de trocar o trabalho na fábrica por trabalho a partir de casa; este começava após os filhos estarem na cama e frequentemente durava até altas horas da noite. Representar uma mulher adormecendo vergada sobre o trabalho ao lado de seu filho mais novo, tal como mostra no seu desenho Heimarbeit enviado para o Simplicissimus (Nage & Timm, 1980, p. 498), é assim algo particularmente característico desta actividade. Em 1906, à parte a exposição de Heimarbeit, Käthe Kollwitz deu naquela época especial atenção à sorte das mães proletárias devido ao movimento-de-mulheres.

Logo a seguir ao estalar da I Grande Guerra, o filho mais novo de Käthe Kollwitz caiu em combate a 22 de Outubro de 1914 em Dixmuiden na Bélgica. A sua morte significou para a vida e a arte da artista um corte profundo: “Para mim, a partir desse momento o Ser-Velho ficou datado. O aproximar-à-sepultura. Foi a ruptura. O curvar até a um nível, no qual é impossível o reerguer” (Bohnke-Kollwitz, 1989, p. 334). Devido a uma má avaliação das causas da guerra Käthe Kollwitz, apesar de sensações contraditórias, havia apoiado o filho na obtenção da autorização paterna, a fim de poder alistar-se como voluntário. Em 1948, Hans, o filho mais velho da artista, descreveu a atitude interior que motivara sua mãe a tal: «Quando a I Guerra Mundial estalou, uma terrível tristeza tomou conta de si. Mas a princípio esta tristeza foi por si superada através da atitude dos à época jovens, em particular de meu irmão Peter e de seus amigos. Na ocasião, ainda não tínhamos passado por nenhuma guerra, não fazíamos ideia alguma do que estava por detrás da guerra e vivíamos segundo o entendimento de Hölderlin «Morrer pela Pátria» e segundo a ideia do sacrifício. Ao filho que oferecesse a sua vida voluntariamente como vítima, a mãe haveria de querer manter-se fiel através por sua vez da disponibilização para se sacrificar até experimentar com a dor o facto de que ao longo dos anos haveria de ver a guerra com outros olhos.” (Kollwitz, 1948, p. 12ss.). Depois da morte de Peter, as entradas do diário de K.Kollwitz são testemunho eloquente da sua gradual mudança interior a favor do pacifismo, que culminou em 1918 com a sua posição pública contra à guerra. A 31 de Outubro de 1918, um pouco antes do fim da guerra, opôs-se ao apelo publicado no Vorwärts «Avante» de autoria do escritor Richard Dehmel, defendendo o envio de um derradeiro contingente militar. A sua resposta concluiu-se com as palavras: «Nestes últimos anos, reaprendemos profundamente (…) Já se morreu bastante ! Chega de mortes ! Insurjo-me contra Richard Dehmel baseada em alguém muito mais importante que afirma: “Grãos de semente não são para moer”». Muito mais tarde, 1941, Käthe Kollwitz utilizou esta citação de Goethe extraída da Epístola (Lehrbrief) do Livro VII do «Wilhelm Meister Lehrjahren» para título da sua penúltima litografia (Knesebeck, 2002, p. 274) (ilustração 7): «Pela terceira vez decido retomar o mesmo tema e relatei-o a Hans há alguns dias atrás: aqui a síntese do meu testamento: «Grãos de semente não são para moer» (…) esta exigência é igual a «Guerra, nunca mais» - não é desejo de ansiedade, mas mandamento. Exigência» (Bohnke-Kollwitz, 1989, p. 704). A transformação, pela qual K.Kollwitz passou durante a I Guerra Mundial a aderir ao pacifismo, está patente na sua primeira série de xilogravuras realizada entre 1921/22 intitulada Krieg «Guerra» (Knesebeck, 2002), concluindo se com o apelo inequívoco a todas as mães para não voltarem a entregar os seus filhos a uma guerra (Hülsewig-Johnen, 1999) (ilustração 8). Também o cartaz Die Überlebenden. Krieg dem Krieg! «Os Sobreviventes. Guerra à Guerra», 1923,(Knesebeck,2002) - é claro na sua mensagem. Possivelmente foi este trabalho que tornou K.Kollwitz conhecida como pacifista além fronteiras da Alemanha. O cartaz foi difundido por quase toda a Europa e nasceu da encomenda da Internationaler Gewerkschaftsbund «Liga Internacional dos Sindicatos» de Amsterdão. Originalmente a artista pretendia tanto no cartaz como na penúltima folha do ciclo Krieg mostrar uma configuração de mulheres aglomeradas num bloco negro, defendendo os seus filhos como os animais as suas crias. Como legenda deveria figurar: «Não demos as nossas crianças à luz para a guerra». A Liga Internacional de Sindicatos pediu no entanto à artista que representasse no placard as consequências da guerra a partir dos sobreviventes e assim Kollwitz desenhou Eltern Witwe und Blinde «Pais Viúvas e Cegos» e “em seu redor as crianças com os seus olhos cheios de medo, interrogação, perplexidade e de rosto lívido” (Bonus-Jeep, 1948, p. 134) (ilustração 9). O reconhecimento de Romain Rolland aquando do seu 60º aniversário em 1927 deixa claro em que medida Käthe Kollwitz era nos anos 20 conhecida muito para além da Alemanha devido a obras como estas: «Ela é a voz do silêncio dos povos imolados»[15].

O quão importante todos estes trabalhos dos anos 20 de propósito pacifista eram, está revelado na conhecida e várias vezes citada entrada do seu diário de 4 de Dezembro 1922: «Sempre que colaboro com um organismo internacional contra a guerra, experimento um sentimento de acolhimento, de integração, de serenidade. Na verdade, arte pura no mesmo sentido que a de Schmidt-Rottluff tal não é a minha. Todavia arte (…) concordo com o facto de que a minha arte tem objectivos. Quero influenciar esta época, na qual as pessoas se sentem tão perplexas e carentes de ajuda.»(Bohnke-Kollwitz, 1989, p. 542).Para além do seu empenhamento pacifista a partir de 1918, K.Kollwitz precisou de vários anos para chegar aqui. Com a proclamação da República por Philipp Scheidemann a 9 de Novembro de 1918 bem como a indigitação do presidente do SPD para chanceler provisório, a atitude da artista foi-se modificando de um dia para o outro: durante a fase do Império, deu de caras com a rejeição oficial não só devido ao seu ciclo de «Os Tecelões». Em 1906, o governo ficou possivelmente chocado com o cartaz para a Deutsche Heimarbeit Ausstellung -Exposição “Deutsche Heimarbeit”.Em 1912 o intendente da Polícia de Berlim proibiu, por motivos de incitamento ao ódio de classe, o cartaz Für Gross-Berlin (Knesebeck, 2002, p. 122) - «Para a Grande Berlim» atendendo a queixa oriunda da Haus- und Grundbesitzervereins «Associação de Pequenos e Grandes Proprietários» que chamava a atenção para a crassa miséria dos alojamentos e a escassez de parques de lazer. Em 1913, as autoridades universitárias de Berlim eliminaram um cartão postal com um motivo-Kollwitz de painel-de-anúncios. Em 1918, chega ao governo o partido, no qual o seu marido Karl Kollwitz e o seu irmão Conrad Schmidt tinham parte activa e do qual ela própria estava próxima. Karl Kollwitz havia fundado em 1913 a Sozialdemokratische Ärtzeverein «Associação de Médicos Social-Democratas», havendo-se tornado autarca de Berlim em 1919. Conrad Schmidt havia sido durante o império um dos maiores teóricos do SPD. Depois da revolução, foi lhe atribuído pelo ministro da cultura da Prússia, Konrad Haenisch, uma cátedra na Escola Técnica Superior de Berlim. Em 1919, Käthe Kollwitz torna-se ainda o primeiro membro feminino da Academia das Artes da Prússia sendo lhe atribuído o título de Professor, dando subitamente consigo, devido à mudança da situação política, no papel semelhante ao de «artista de regímen». Recebe não só mais encomendas oficiais logo no início da República de Weimar como fica assim simplesmente sobrecarregada com imensas encomendas com objectivos humanitários e sócio-políticos. O facto de este novo papel não ter inicialmente sido de desempenho fácil para a artista, mostram-no reflexões deixadas no seu diário ocorridas em 1920 e associadas ao esboço de um placard para uma acção de ajuda para com as crianças famintas de Viena (Knesebeck,2002): «enquanto desenhava e a angústia das crianças me fazia chorar com elas, sentia verdadeiramente o fardo que carregava. Todavia sentia que não podia eximir-me da tarefa: ser sua defensora. Tenho de dar voz ao tormento das pessoas, que nunca terá fim e que agora é gigantesco. Tenho esta missão, não obstante nada fácil de cumprir.» (Knesebeck, 2002, p. 449).Avocar-se tal direito trouxe-lhe confrontos crescentes também em artigos de jornal. Assim em 1919, esclarecia-se de modo patético no Illustrierte Zeitung «Jornal Ilustrado» de Leipzig que K. Kollwitz havia descido para o patamar dos «deserdados, dos sem remissão, do povo, de quem se teria tornado grande defensora» (Delpy,1919, p. 662).

Aquando do seu 60º aniversário em 1927, K.Kollwitz está no zénite da sua fama. 500 cartas e telegramas comprovam, que nesta altura a artista desfruta de enorme consideração em todos os círculos da arte. No seio dos congratulantes, encontram-se o ministro do interior do império, o ministro da cultura da Prússia, Provedor das Artes do Império, o Presidente da Câmara Municipal de Berlim e o embaixador da Rússia. As instâncias imperiais germânicas e o estado da Prússia ofereceram-lhe considerável soma pelo seu trabalho para o cenotáfio «Pais em Nojo» (Seeler, 2016) ilustração 10); a partir de 1914 ficou imbuída da missão de criar um monumento que corporizado na figura do seu filho prestasse homenagem ao martírio dos jovens voluntários apresentando o pai à cabeça e a mãe aos pés. A mudança na concepção do monumento corresponde à transformação interior dolorosamente consumada com vista à rejeição daquela guerra. No monumento, somente conseguido em 1931, recusou finalmente a heróicização dos caídos em combate e mesmo a imagem do filho; deu forma àquilo que a realidade ainda oferecia: o luto dos pais[16]. Quando em 1931, a artista expôs pela primeira vez na Academia de Berlim os modelos em gesso definitivos escreveu aliviada: «Um capítulo importante, um aspecto com um significado extraordinário. Trabalho neles, desde há anos em completo silêncio; ninguém, Karl e Hans mal tinham autorização para vê-los, agora franqueio as portas de modo a serem vistos pelo maior número de pessoas possível. Um grande passo que me causou emoção e inquietação que todavia me deu também felicidade devido ao reconhecimento unânime dos colegas.»(Bohnke-Kollwitz, 1989, p.654). Em 1932, ambas as figuras foram vertidas em granito belga por dois escultores e expostas mais tarde no átrio da Nationalgalerie «Galeria Nacional» de Berlim antes de Käthe Kollwitz superintender a sua instalação no cemitério militar belga de Roggevelde em Dixmuiden. Depois do fecho do cemitério em 1955, sepultados e cenotáfio foram transferidos para o cemitério militar de Vladsloo- Praedbosch. Em 1957, Joseph Beuys e Erwin Heerich, dois discípulos maiores de Ewald Mataré, realizaram em calcário-fóssil (Muschelkalk) uma réplica algo maior para o memorial da RFA Alt St. Alban em Colónia.

Em 1933,a situação da artista alterou-se profundamente com a tomada do poder pelos nacional-socialistas. Käthe Kollwitz foi conjuntamente com Heinrich Mann obrigada a sair da Academia da Prússia. Ambos tinham, como logo em 1932, apoiado com a sua assinatura uma campanha de cartazes após a tomada do poder pelos nacional-socialistas em Fevereiro, exigindo a união do KPD com o SPD tendo em vista as derradeiras eleições livres seguintes: 5 Março 1933. A artista recusou a tentativa de um amigo seu para a sua reabilitação através de uma petição dirigida a Göhring e Goebbels: «se o autor afirma que almas de inúmeros trabalhadores ansiavam por mim - seguramente que tal deixará de acontecer se voltar a obter reconhecimento honroso. Quero e tenho de permanecer junto dos castigados. O prejuízo económico (…) é uma consequência natural disso. Acontece isso a milhares. Não há razão para queixas» (Kollwitz, 1948, p. 150). A Karl Kollwitz, enquanto fundador da Associação de Médicos Social-democratas, foi-lhe, por vários meses, retirada a licença para exercer na caixa de previdência, o filho Hans, igualmente social-democrata e médico escolar, foi temporariamente dispensado. Uma busca à casa de Hans levou mesmo ao confisco de livros sobre a sua mãe. Depois da saída compulsiva da Academia e da entrega do atelier que aí tinha, K.Kollwitz regressou a sua casa e dedicou-se à sua última série de gravuras Tod «Morte» (Knesebeck, 2002), um tema quase natural para um artista da gravura, o qual não se encontra de modo algum apenas em Max Klinger. Tentou esclarecer-se o recorrente confronto com a morte presente na obra da artista, remetendo-o frequentemente para a não resolvida e altamente estilizada vivência infantil relacionada com a perda do irmão mais novo ou para uma atitude básica putativamente depressiva e melancólica da artista. Na verdade, K. Kollwitz tinha sem dúvida conhecimento de tais estados anímicos, todavia durante as festas também era conhecida pelo seu riso e jovialidade, exuberância mesmo. Numa festa de carnaval em 1914, beijou e deixou se beijar à vontade como confessa para o seu diário (Bohnke-Kollwitz, 1989). Possivelmente a abordagem da morte na literatura e arte coevas - este tema entre outros desempenhou um papel central no simbolismo - deveria ter contribuído muito mais para a compreensão da representação da morte em K. Kollwitz. Em 1934, a artista conseguiu ainda expor as primeiras cinco litografias da série «Morte» que deixou prontas para a mostra de Outono da Academia de Berlim. Em 1935, foi oficiosamente proibida de expor. A dolorosa via da emigração interior, começou para si o mais tardar em 1936 depois de as suas obras terem sido afastadas da exposição do jubileu da Academia de Berlim, embora tenha encontrado ligação aos colegas artistas mais jovens no lendário e, em sua forma, único Ateliergemeinschaft klosterstrasse «Complexo de Ateliers da Klosterstrasse». Aí toda uma série de artistas, mais ou menos persona non grata para as autoridades, podia alugar um dos 40 ateliers com o assentimento do ministério da Ciência, Educação e Cultura Popular. Käthe Kollwitz era de longe a mais velha artista do Complexo. Estava a uma distância de duas gerações de pintores como Werner Gilles e Werner Heldt ou de escultores como Ludwig Kasper, Hermann Blumenthal, Gerhard Marcks e Richard Scheibe. Até 1938, Käthe Kollwitz esteve sempre regularmente representada nas exposições anuais do Complexo. Uma vez que em 1937 foram anulados todos os planos para a realização na Alemanha de uma exposição-jubileu comemorativa dos seus setenta anos, só nas próprias salas do seu atelier da Klosterstrasse lhe foi possível apresentar a um pequeno círculo de pessoas uma visão panorâmica, ainda que com lacunas, dos quarenta anos de trabalho [17].

Käthe Kollwitz teve de deixar a Academia, na qual orientava também uma Masterclass desde 1928, no ano de 1933 a meio do trabalho na sua escultura de grandes dimensões Mutter mit zwei Kindern Mãe com dois Filhos. Não foi apenas esta escultura que foi terminada no atelier do «Complexo da Klosterstrasse» mas também verdadeiramente a maior parte das esculturas da artista, entre elas a «Pietà» (Seeler, 2016) (ilustração 11), da qual se realizou uma versão em tamanho quatro vezes superior ao original por encomenda do Chanceler Helmut Kohl para o Memorial Central da RFA no remodelado edifício Neue Wache de Schinkel. Käthe Kollwitz, que após 1933 mal podia vender as suas gravuras, explica a viragem em força, a partir de 1937 para a escultura de pequenas dimensões, pelo facto de tais trabalhos não terem impacto negativo sobre os seus herdeiros, não serem dispendiosas, poderem ser realizadas em qualquer espaço e não exigirem muito das suas forças. Em 1938, Käthe Kollwitz tomou parte nas cerimónias fúnebres de Ernst Barlach. De memória concebeu um desenho do falecido no féretro aberto. Iniciou os trabalhos no seu conhecido baixo relevo em bronze terminado em 1940: Die Klage «O Queixume» (Seeler, 2016), para o qual verteu a expressão do seu pesar pela morte dele (Fritsch, 2006). Uma estima recíproca ligava desde há muito ambos os artistas. Em 1920, xilogravuras que Barlach levou à exposição da segunda Secessão Livre de Berlim não só a estimularam a realizar as suas primeiras xilogravuras como a levaram à utilização desta técnica no seu ciclo Krieg. Em Fevereiro de 1933, foi a Barlach, entre outros e por mediação de Käthe Kollwitz, atribuída a Ordem «Pour le Mérite», a mesma com a qual a própria artista tinha sido enquanto primeira mulher condecorada em 1929. A estima de Barlach para com K.Kollwitz encontrou a sua mais expressiva forma no memorial de Güstrow; o artista trabalhou em 1926/7 no anjo-monumento da catedral de Güstrow à memória dos seus conterrâneos caídos em combate, acabando inconscientemente, o rosto de Käthe Kollwitz por, tal como ele próprio constatou, se afirmar nesta obra. Após 1933 quer K.Kollwitz quer Barlach acabaram alvo de insultuosas injúrias e hostilidades. Enquanto um de entre apenas três membros da Academia, Barlach ousou questionar por escrito o presidente desta acerca da saída compulsiva de K.Kollwitz. No Outono de 1940, a 19 de Julho deste mesmo ano o marido de K.Kolwitz morre de doença prolongada, e esta, já sem forças, sente ter de entregar o seu atelier na Klosterstrasse. Terminou as suas últimas esculturas e gravuras em sua casa, que lhe serviu quer como atelier quer como morada, a qual em 1943 e após 50 anos teve de abandonar devido aos crescentes bombardeamentos sobre Berlim. Um pouco antes da sua casa de Berlim ter sido completamente destruída por um bombardeamento, muda-se para junto de uma jovem escultora Margret Böning em Nordhausen. Quando também aqui se tornou demasiado perigoso, acolhe o convite do Príncipe Heinrich von Sachsen e muda-se para Moritzburg. Käthe Kollwitz morre aqui, poucos dias antes do fim da guerra a 22 Abril 1945.

Nos últimos dez anos da sua vida (ilustração 12), a artista pôde ainda testemunhar o quanto nos EUA se apreciava cada vez mais a sua obra, ficando tal sobremodo a dever-se a emigrantes da Alemanha e da Áustria. Através de uma carta de 1938, é possível fazer uma ideia da importância que isto mesmo teve para K.Kollwitz durante os anos do regímen nacional-socialista: «Sinto me morta para a Alemanha, todavia começo a estar viva para a América. O que é bom.» ( Kollwitz,1967, p.13). Não obstante, estava viva também na Alemanha, apesar dos nacional-socialistas terem tentado silenciá-la, o que é facto a inferir por, logo após o fim do III Reich em 1945 e 1946, ter Käthe Kollwitz, enquanto figura simbólica da boa consciência alemã, sido reconhecida através de inúmeras exposições em vários lugares da Alemanha.

 

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Recepção: 19/09/2018

Aceite para publicação: 20/10/2018 *

* Texto publicado sem revisão editorial por opção do tradutor (nota de edição).

[1] O original, em língua alemã, da presente tradução, consta da separata que acompanha este n.º 40 de Faces de Eva. Nele se apresentam, integralmente, as 12 imagens numericamente referenciadas ao longo da presente tradução. (Nota de Edição)

[2]. Tradução de Fernando Ribeiro (Universidade NOVA de Lisboa, FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM - Centro de Humanidades e Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas) em 16 de Setembro de 2018. Agradece-se à artista plástica Maria Gabriel o apoio na tradução técnica relativa à arte da gravura.

[3]. Hans Kollwitz. (Ed.). (1948), Käthe Kollwitz, Tagebuchblätter und Briefe .Berlin. (The diary and letters of Kaethe Kollwitz, edited by Hans Kollwitz, Evanston, Illinois 1988).Tradução Fernando Ribeiro. Agradece-se às artistas plásticas Maria Gabriel e Teresa Balté o apoio na tradução técnica relativa à arte da gravura.

[4]. Jutta Bohnke-Kollwitz. (Ed.). (1989). Käthe Kollwitz, Die Tagebücher. Berlin p. 725 ss. (edição completa dos Diários acabada de traduzir para francês: Käthe Kollwitz - Journal, 1908-1943. Sylvie Doizelet (ed.), Straßburg 2018).

[5]. Cf.Alexandra von dem Knesebeck (2002). Käthe Kollwitz. Werkverzeichnis der Graphik. Bern. Nr. 1 (sempre citado Knesebeck).

[6]. Cf. Alexandra von dem Knesebeck, (2007) …... mit liebevollen Blicken ...“. Kinder im Werk von Käthe Kollwitz, Einblicke 8, Köln:Käthe Kollwitz Museum.

[7]. Cf.Otto Nagel.(Ed.).(1980). Käthe Kollwitz.Die Handzeichnungen. (org. Otto Nagel com colaboração de S.Schallenber-Nagel e consultoria de H.Kollwitz), processamento científico W. Timm, Stuttgart. N. 168 (sempre citado Nagel-Timm).

[8]. Sobre Kollwitz em Berlim cf.: Kathleen Krenzlin.(Ed.) (2017).Käthe Kollwitz und Berlin. Eine Spurensuche zum 150. Geburtstag.Berlim: Galerie Parterre.

[9]. …Ich für mein Teil muß Ihnen auch noch einmal sagen, wie Ihre Würdigung meiner Arbeit, Ihre Anteilnahme an ihr, mich gestützt und gefördert hat“ - Zur Korrespondenz zwischen Käthe Kollwitz und Max Lehrs. (Pela minha parte tenho uma vez mais de dizer-vos quanto o vosso reconhecimento do meu trabalho ,a vossa participação nele, me apoiou e incentivou).In: Petra Kohlmann-Hodick u. Agnes Matthias (Eds) (s/d) Kat. Ausst. Käthe Kollwitz in Dresden. Dresden.London: Staatliche Kunstsammlungen Dresden, Kupferstich-Kabinett.

[10]. Cf. Ikon Gallery in collaboration with the British Museum,(Eds.). 2017. Portrait of the Artist - Käthe Kollwitz. (s/l) (fornece entre outras panorama sobre a colecção do Museu Britânico).

[11]. Sozialistische Monatshefte, 23, III. vol. 49, p. 1226 ss.

[12]. Cf. Annette Seeler. (Ed.). (2016). Käthe Kollwitz. Die Plastik, Köln.München:Käthe Kollwitz Museum. N. 13. (sempre citado Seeler).

[13]. Cf. para as viagens de Käthe Kollwitz a Paris Hannelore Fischer,Alexandra von dem Knesebeck.(Eds.). (2010). Kat. Ausst. …Paris bezauberte mich“. Käthe Kollwitz und die französische Moderne. Köln, München: Käthe Kollwitz Museum.

[14]. Hans Kollwitz.(Ed.). (1948). Käthe Kollwitz, Tagebücher und Briefe.München.

[15]. Cf Apud Louise Diel,(1927). Käthe Kollwitz. Ein Ruf ertönt, Berlin.(Zum Geleit).

[16]. Cf. Hannelore Fischer. (Ed.). (1999).Kat. Ausst. Käthe Kollwitz. Die trauernden Eltern. Ein Mahnmal für den Frieden.Köln: Käthe Kollwitz Museum.

[17]. Cf. (1994) Kat. Ausst. Ateliergemeinschaft Klosterstraße Berlin 1933-1945. Künstler in der Zeit des Nationalsozialismus, Berlin: Akademie der Künste.