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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.39 Lisboa jun. 2018

 

LEITURAS

POESIS. Horta, M. T. (2017). Lisboa: Dom Quixote, 256 pp.

Ana Raquel Fernandes*

*Universidade de Lisboa, Centro de Estudos Anglísticos, Universidade Europeia, Laureate International Universities, a_raquel_fernandes@yahoo.com


 

O título da mais recente coleção de poesia de Maria Teresa Horta, Poesis (D. Quixote, 2017), desafia o leitor a pensar no processo de criação. Oriundo do grego, o conceito refere-se às noções de produção, composição e poesia. Este elemento da obra é revelador do gesto metaficcional que a acompanha e permite uma reflexão sobre as relações transtextuais que são indissociáveis de um título que encerra em si mesmo a referência à poesia, enquanto género literário, e ao processo de composição da mesma.

O título surge acompanhado por uma reveladora imagem: o retrato de uma jovem mulher, supostamente Safo, encontrado num fresco de Pompeia, em Roma, no século I. Trata-se de um elemento que amplia a informação do título. A referência a Safo é incontornável, não só remetendo o leitor para a poesia lírica na Grécia Antiga, mas também sublinhando uma das temáticas recorrentes na obra poética da autora Maria Teresa Horta, o canto do amor de uma perspetiva que subverte as representações mais convencionais do feminino.

O volume de poesia encontra-se dividido em sete partes, com subtítulos que se agrupam, à exceção da última secção, em torno de um radical comum: Vocação, Invocação, Avocação, Convocação, Provocação e Evocação. Segue-se um momento final intitulado Ad Finem.

A estrutura da obra é meticulosa, como revela o título do seu primeiro poema, “Ab Initio”, constituindo-se como contraponto à secção final e acentuando a temática central da obra – a criação poética: “Primeiro escrevi/ com breves murmurações/ e lentos cuidados de asa/ (…) / Depois ganhei pé/ na fundura de mim mesma/ na ousadia dos versos (…)” (p. 17). Estes breves excertos são uma primeira reflexão sobre o processo de escrita. Com efeito, na primeira parte de Poesis, dar origem à poesia é, sobretudo, um processo corporal que se manifesta progressivamente, como revelam, por exemplo, os poemas: “A Pouco e Pouco” (p. 18), em que o sujeito poético enuncia: “Começo por escrever/ primeiro/ uma palavra apenas (…)”; “A Mão e a Escrita” (p. 19): “Deixo a mão/ correr pelo meu sonho (…)”; “As Folhas” (p. 20), em que há um jogo metafórico entre o desfolhar de uma flor e o folhear das folhas de um poema: “Desfolho as pétalas/ as folhas do poema/ até chegar à perdição (…)”; “Traços Furtivos” (p. 32): “Sinto-lhe os traços/ furtivos/ no côncavo da minha mão”; e no poema “Coleccionadora” (p. 37),em que o sujeito lírico se revela uma colecionadora de palavras a fim de alimentar a poesia: “Colecciono palavras/ com elas/ escrevo poesia (…)”.

O processo corporal surge acompanhado de momentos de inspiração poética similares a um “bater de asas” (in “Espera”, p. 21) ou a uma “asa” (in “Inspiração”, p. 22), elementos que se constituem indissociáveis da figura simbólica do anjo: “Tenho um trato com os anjos/ conheço o traço da luz/ quero o rigor das palavras (…)” (in “Da Condição dos Versos”, p. 23). Aliás, os anjos são recorrentes na obra poética da autora, constituindo-se como título de uma das suas coletâneas poéticas (Os Anjos, 1983), na qual as temáticas do prazer, do corpo, da memória e das mulheres estão já presentes.

O prazer da escrita poética é igualmente celebrado, em particular, em “Prazer” (p. 24), onde o poema assume corpo e é espaço de deleite: “O prazer do corpo/ do poema/ (…)

/ o êxtase/ das palavras”. Há ainda uma clara fusão entre a poesia e o “eu” lírico, como se constata no título de “Sou a minha Poesia” (p.25) e no último verso do poema, com a declarativa afirmativa: “Eu sou a minha poesia”.

A primeira parte de Poesis é, por conseguinte, uma celebração dos elementos constitutivos do ato de escrita poética: a linguagem, a palavra, o verso, a estrofe e o poema, com os seus símbolos e metáforas. Atente-se nos seguintes versos de “Poema a Poema” (p. 41): “Poema a poema escrevo poesia/ (…) / Poema a poema vou tocando, tomando/ o corpo da escrita, afagando a linguagem/ (…) / Sonho, após símbolo, após metáfora/ após sintaxe/ Palavra após palavra, após palavra/ após palavra…”

Na segunda secção de Poesis, subintitulada “Invocação”, o sujeito poético chama a si a matéria que se manifesta e que constitui a poesia, como é visível, a título de exemplo, em “De Liberdade em Liberdade” (pp. 53-54), um poema comemorativo do Dia Mundial da Poesia de 2013, onde se invoca a beleza, a desobediência, o deslumbramento, a insubmissão, o corpo, o sonho e a liberdade. Revela-se ainda a essência do/a poeta criador/a, em particular, no poema “O Voo da Linguagem”:

Ser poeta é correr riscos trazer consigo a vassoura de voar a linguagem

a paixão, a liberdade

As asas são seu ofício

onde resguarda a saudade

Assim, na terceira parte da coletânea – “Avocação” –, o “eu” poético apropria-se de elementos díspares para prosseguir com a reflexão sobre a relação da poesia consigo. Atente-se, em especial, nos poemas: “A minha Secretária” (p. 93), “No Rasto do Tempo” (p. 95),

“Palavras” (p. 97), “Escrita” (p. 98) e “Melomania” (p. 103). Os seus títulos remetem, uma vez mais, o leitor para aspetos intrínsecos à criação, à escrita, tanto materiais (como são as referências à secretária – espaço onde habita a escrita; à escrita – espaço onde habita a palavra; e à palavra, que por sua vez habita os versos do poema), como imateriais – o tempo e a própria música. Com efeito, em “Melomania”, o sujeito poético canta a sua paixão pela arte da música, indissociável da poesia lírica.

Nas subdivisões “IV Convocação” e “V Provocação”, os poemas convocam e reúnem, de modo desafiador, temas e figuras, da mitologia clássica, do universo da tradição oral e da literatura, que habitam a obra poética da autora Maria Teresa Horta: “Eurídice” (p. 132), “Gola de Névoa” (p. 145), com referência à personagem tradicional Branca de Neve, “No Bule de Alice” (pp. 157-161), “Morgana” (p. 180) e “Cassandra” (p. 181) constituem significativos exemplos. De assinalar ainda a referência no final da quinta secção de Poesis a inúmeros animais selvagens que se confundem com o sujeito poético e que assombram a poesia: a loba em “A Loba da Poesia” (p. 183), o lince em “O Lince do meu Poema”, os tigres em “O Lento Sonho dos Tigres” (p. 187), a pantera no poema de título homónimo (pp. 188-189), o leopardo em “O Leopardo Distante” (p. 191) e “Poetisa ou Leopardo?” (p. 194). Pondere-se, em particular, o poema “Lobo-Tigre” e o modo como estes predadores, designadamente, o lobo e o tigre, livres e selvagens, se confundem com a figura criadora:

Lobo-Tigre

Os passos do lobo-tigre que caminha no poema dialoga com os versos as águias e as estrelas

Bebe a arte dos sonetos devora os veados da cerca está de vigia nas estrofes onde o lobo-tigre inventa

Segue-se a secção “VI Evocação” e a poesia, cujo sujeito de enunciação é marcadamente feminino, homenageia a longa e rica tradição do género lírico no mundo ocidental, em particular, das poetas que desde a Antiguidade Clássica, desde Safo, até à contemporaneidade, se têm distinguido pela beleza da sua obra poética e pelo modo como as suas vidas, pautadas pela criação, permitiram celebrar a emancipação da mulher. Em poemas como “Poetisas” (p. 207), “Os Abismos de Safo” (p. 208), “Visionárias” (pp. 209-211), “O Voo de Hildegarda de Bingen” (pp. 212-213), “Alumbramentos” (p. 215), “A Noite de Leonor” (217), “As tuas Regras e o meu Arbitrário” (p.229) e “A Asa de Sylvia” (p. 231), traz-se à lembrança todo um universo feminino de criadoras e pensadoras. A secção termina com um poema mais extenso, intitulado “Escritoras” (pp. 232-235), que se constitui precisamente como hino às mulheres escritoras ao longo da história da humanidade: “Escrevemos (sic)/ corremos riscos/ (…) / Somos aquelas que imprimem/ às histórias outros olhares/ outras formas e maneiras/ escrevemos na sarça/ ardente, a semear o diferente/ a empurrarmos o vento/ somos aquelas que mudam/ por dentro do pensamento”.

Ad Finem corresponde ao final da coletânea, assinalando a natureza eterna da obra poética e a entrega total do sujeito de enunciação à poesia. Ponderem-se os dois últimos poemas de Poesis: “Sem Vassalagem” e “Epopeia”. No primeiro, o “eu” poético contrapõe a sua efemeridade à memória que a poesia encerra: “Nada mais de mim/ haverá memória/ – sei – / só os poemas darão conta/ da minha avidez/ da minha passagem/ (…)”. Por fim, em “Epopeia” o sujeito poético canta a poesia e o processo de criação do poema como a sua epopeia, proporcionando uma reflexão sobre o modo metarreflexivo como a obra Poesis é pensada e, por associação, como a obra poética de Maria Teresa Horta surge enquanto projeto que celebra simultaneamente a literatura, a poesia, e a vida.

Epopeia

Esta é a minha epopeia feita de poesia perdimentos e palavras

sem deuses sem batalhas sem heróis nem lágrimas sem o bronze das armas

Poema a poema a poema paixão após fulgor após beleza na sua dimensão mais ávida