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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.39 Lisboa jun. 2018

 

ENTREVISTA

Maria Graciete Besse

Sandra Leandro*

*Universidade de Évora, Escola de Artes, Departamento de Artes Visuais e Design, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História de Arte, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, sandraleandro7@gmail.com


 

 

 

Existem pessoas em que a inteligência se percepciona como algo tangível. Maria Graciete Besse é uma dessas pessoas. O Monte de Caparica, em Almada, viu-a nascer em 8 de Junho de 1951. Desde cedo detectou a forte presença de cores, luzes e aromas que sensivelmente transportou para o domínio da palavra que é o seu. Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1974, e continuou os seus estudos em França, doutorando-se na Université de Poitiers com a tese La Problématique de l'espace dans l'œuvre d'Alves Redol, em 1985. Uma das faces mais visíveis do seu percurso ocorreu em 2004, quando ocupou a cátedra de Português na Université Paris IV-Sorbonne, onde fundou o Eixo Études Lusophones do CRIMIC – Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques et Contemporains, de que foi Directora até 2016.

No «instante» que é a vida, foi e será Professora decisiva na vida de muitos estudantes, Escritora, Poeta e Ensaísta. Esta entrevista pretende ser uma homenagem a quem merece muito mais que uma homenagem. Por tudo quanto fez pela Cultura e Literatura Portuguesa: a nossa gratidão.

Que memórias guarda da sua infância?

Da infância, guardo sobretudo a memória das cores e dos perfumes. Lembro-me bem do esplendor de uma imensa lua alaranjada que me espantou numa noite de passeio clandestino, quando escapei à vigilância familiar para ir espreitar o rio. Também me recordo do cheiro adocicado da canela nos pratinhos de arroz-doce, num dia de aniversário especial, quando ainda ninguém estava morto, como diria o Álvaro de Campos. Estas duas lembranças falam-me da descoberta do mundo e da pressa de crescer para abarcar tudo o que me parecia fascinante à minha volta. Só mais tarde descobri que o esplendor se acompanha sempre de sombras e que a vida passa num instante.

Porque decidiu sair de Portugal em 1974? Quer falar-nos um pouco das suas escolhas e trajectória?

A vida em Portugal antes do 25 de Abril era muito asfixiante e extremamente limitadora, sobretudo para as mulheres. A certa altura, enquanto frequentava a Faculdade, comecei a dar aulas à noite, na Escola Emídio Navarro, e alguns dos meus alunos, quase todos operários da Lisnave, diziam-me que em breve as coisas iriam mudar; mas eu tinha nessa altura um namorado francês que me desafiava para novos horizontes e foi por ele que parti, sem saber que a revolução estava quase a chegar... Em 1974, ainda não havia em França a equivalência de diplomas, o que me obrigou a refazer a licenciatura e o mestrado na Universidade de Toulouse. Em seguida, obtive os concursos oficiais (Capes e Agrégation) e ensinei durante quatro anos num colégio de Volvic, que é uma cidade de lava lindíssima, perto de ClermontFerrand, onde também servi de intérprete a uma psiquiatra com muitos pacientes entre os emigrantes portugueses. De certa forma, graças a esta experiência, conheci melhor os meus alunos por dentro, ao penetrar no segredo das suas famílias, onde havia muitas falhas afectivas, problemas de alcoolismo e violência doméstica. Em 1981, obtive um lugar de assistente na Universidade de Pau, defendi uma tese de doutoramento sobre a obra de Alves Redol e fui avançando na carreira. Em 1997, já como catedrática, fui convidada para ensinar na Universidade Michel de Montaigne, em Bordéus e, em 2004, quando o lugar da Sorbonne fechou, por falta de estudantes (o que provocou grande emoção em Portugal, porque esta cátedra é uma das mais antigas da Europa), fui solicitada pelo antigo embaixador António Monteiro para “subir” a Paris e lutar pelo desenvolvimento da cátedra reaberta graças à pressão política. Trabalhei na Sorbonne/Paris IV durante 12 anos, até me aposentar em 2016. Quando lá cheguei, o importante era dar alguma visibilidade ao Português e aumentar o número de estudantes. Para tal, criei um grupo de pesquisa lusófono que dinamizei, convidando muitos escritores e professores universitários de passagem por Paris. Também organizei numerosas manifestações científicas, algumas vezes em colaboração com colegas de outras universidades e sempre com o apoio do Instituto Camões e da Fundação Calouste Gulbenkian. A primeira mesa-redonda que animei na Sorbonne foi com o Mário Cláudio. Depois, ano após ano, muitos outros escritores, portugueses e brasileiros, me deram a alegria de aceitar gratuitamente os meus convites, como a Lídia Jorge, que lá esteve várias vezes e sempre encantou o público.

Alunos seus, que são agora Professores, descrevem-na como alguém absolutamente marcante nas suas vidas e percursos. O que foi e o que significou para si ser Professora?

Quando estudei em Lisboa, conheci excelentes professores. Em seguida, no decurso da minha carreira, tive a sorte de encontrar alunos formidáveis que me ensinaram muita coisa e de quem fiquei amiga para o resto da vida. Mais do que uma profissão, ser professor é uma imensa responsabilidade que nos convida a estar sempre atentos ao outro. O Sebastião da Gama tinha razão quando dizia que “ser professor é dar-se”. Para mim, foi sempre uma maneira de partilhar intensidades, a maravilha de descobrir o mundo e de alargar as fronteiras do saber. Ao longo do meu percurso, tentei sempre entrar em sintonia com os alunos, valorizando-os, ajudando-os a ganhar confiança, a vencer os medos. E recebi em troca imenso carinho...

Quando e onde teve a noção de ser autora, de ser Escritora?

Comecei a escrever por volta dos nove anos. No início da adolescência, atrevi-me a publicar poemas no Modas e Bordados, que a minha mãe comprava regularmente. Esta revista, que foi dirigida pela Maria Lamas, era muito mais do que uma publicação dedicada aos lavores femininos, como o título poderia sugerir... Talvez tenha tido realmente consciência da importância da escrita no dia em que uma amiga da minha mãe se mostrou escandalizada com os meus textos publicados na revista, acusando-me de revelar preocupações impróprias da minha idade e da minha condição de menina bem comportada, destinada a reproduzir a submissão ao mundo patriarcal. Percebi que estava no caminho certo porque afinal a escrita, produzida no silêncio do meu quarto, podia mexer com as pessoas e provocar reacções inesperadas... Lembro-me de que nessa altura já andava muito atenta às injustiças que descobria à minha volta e à maneira como as mulheres eram tratadas. Esses poemas antigos, que não guardei, já exprimiam a revolta que começava a sentir. Pelos meus 13 ou 14 anos, andava sempre com um alfinete de dama no bolso, para me defender dos assédios masculinos a caminho do liceu, picando aquelas pernas nojentas que se colavam ao nosso corpo nos transportes públicos. Era difícil protestar contra a prepotência machista. Afinal, o tempo passou e quase nada mudou, como temos visto nestes últimos meses, com a denúncia do assédio sexual, com a formidável libertação da palavra de muitas mulheres que começam a falar.

De todos os livros de ficção que escreveu, qual destacaria?

Talvez o último, No duplo fulgor do tempo, que ainda se encontra inédito e narra o percurso de duas mulheres que viveram na mesma zona da Caparica, a 200 anos de distância. Uma delas é uma ilustre desconhecida, pertencente à família dos Távoras, e a outra é uma antiga camponesa, a reflectir sobre a velhice enquanto espera pela morte num lar da região... Apesar de pertencerem a épocas e a extractos sociais diferentes, ambas conheceram o obscurantismo, a solidão e o abandono, sem nunca perderem o desejo de escapar à condição de vítimas de um sistema que sempre considerou as mulheres como seres inferiores. Fiz alguma investigação e tentei contar o que foram as suas vidas através de um duplo ponto de vista onde a História se cruza com a ficção.

E entre todos os de Poesia?

O livro que mais me toca ainda hoje é A ilha ausente, que resultou de uma viagem aos Açores logo depois da morte do meu pai, em 2002. De certa forma, a beleza da ilha Terceira ajudou-me a entrar no trabalho do luto e a perceber que a escrita, mesmo não sendo salvadora, pode transformar-nos.

De toda a Ensaística que escreveu, que título sublinharia?

Em termos académicos, agradou-me imenso escrever o ensaio sobre a obra de Lídia Jorge, que publiquei em francês, em 2015, para mostrar de que forma toda a escrita da autora se pode entender a partir do conceito de responsabilidade ética, permitindo-nos reflectir sobre a importância da Literatura na transformação do real e na construção do futuro.

E de Crítica Literária?

Corpos cantantes, que publiquei em Portugal, em 2016, e onde analiso a obra de alguns escritores que sempre me enriqueceram intelectualmente, como Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago ou Lídia Jorge, entre muitos outros.

Lídia Jorge referiu há não muito tempo e usando bela expressão que tem dedicado «a vida e inteligência à causa da divulgação da literatura portuguesa em França». Quer descrever-nos alguns dos passos mais significativos dessa sua causa?

Nos anos 80, quando ensinei na Universidade de Pau, conheci a aventura das rádios livres que, durante algum tempo, foi uma verdadeira causa com implicações políticas e culturais. Nessa altura, com uma grande amiga do Porto, leitora do Instituto Camões, trabalhei intensamente num programa destinado à emigração portuguesa, convencida de que tínhamos uma missão urgente a cumprir. Com alguma ingenuidade, passámos tardes inteiras a preparar dossiers para divulgar numa rádio a Literatura Portuguesa, até percebermos que afinal o assunto não interessava a quase ninguém. Depois, em Bordéus e em Paris, participei em muitos encontros com escritores, mesmo se não havia grande entusiasmo por parte do público. Foi uma luta constante, sobretudo em Paris, onde existem imensas ofertas culturais e alguma dificuldade em mobilizar as pessoas...

Foi Directora do CRIMIC – Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques et Contemporains, da Université Paris-Sorbonne, Paris IV. Quer destacar três colóquios que tenha organizado nesse Centro ou noutros?

Lembraria, antes de mais, uma homenagem à obra de Eduardo Lourenço, de que me ocupei em 2011 na delegação parisiense da Gulbenkian e que contou com a participação de especialistas oriundos de vários países. Foi um momento muito bonito, pela troca de ideias e também pela intensidade dos afectos em torno do homenageado. As Actas saíram nas éditions Lusophones, com um caderno de fotografias cedidas pela Annie de Faria. O livro esgotou e gostaria muito de o reeditar, não sei se vai ser possível...

Em 2015, com a minha colega Maria Araújo da Silva, trabalhámos num colóquio consagrado a algumas mulheres injustamente esquecidas nas artes e nas letras portuguesas. Foi também um trabalho empenhado. Tivemos então o privilégio de contar com a presença da Isabel Meyrelles, poeta e escultora ligada ao Surrealismo, que revelou aspectos interessantes deste movimento numa mesa-redonda com o professor Perfecto Cuadrado que fechou o colóquio com chave de ouro. Na capa das Actas, que publicámos logo em seguida, reproduzimos uma obra curiosa (“Licorne”), cedida pela escultora.

No CRIMIC, o último acontecimento importante teve lugar em 2016 e abordou os exílios femininos no espaço lusófono, tendo como ponto de partida o conceito de “exiliência”, neologismo forjado pelo comparatista Alexis Nouss, que nos deu a honra de fazer a conferência de abertura. Este colóquio, organizado em estreita colaboração com a Universidade do Porto, foi a feliz concretização de um projecto que comecei a delinear há alguns anos com a professora Ana Paula Coutinho, que publicou estudos notáveis sobre a diáspora portuguesa. Os trabalhos ocuparam-nos durante dois dias em Paris e outros dois no Porto, culminando num magnífico encontro com duas escritoras, Lídia Jorge e Tatiana Salem Levy. As Actas saíram com uma capa belíssima, que reproduz uma obra da Paula Rego (“O exílio”).

Quer contar-nos como foi organizar o Doutoramento honoris causa de José Saramago em 1999?

A festa do honoris causa de Saramago foi muito gratificante a vários níveis. Quando um ano antes propusera a ideia ao Presidente da Universidade, ainda não sabia que o escritor iria ganhar o Nobel da Literatura alguns meses depois. Senti logo um grande interesse, porque a instituição sempre apoiou o Português. Depois, com a notícia do prémio, o empenho foi ainda maior. Já conhecia há algum tempo José Saramago, que foi sempre de uma imensa generosidade comigo e me facilitou a organização, revelando grande disponibilidade, apesar da correria em que se tinha transformado a sua vida. A Pilar também ajudou. Foi um encontro fantástico que levou à Universidade de Bordéus imensa gente, em particular franceses e alguns velhos emigrantes, muitos deles vindos do outro lado da França. Nunca esquecerei os olhos dos estudantes a brilhar de alegria, sobretudo os de origem portuguesa, por contemplarem ao vivo um prémio Nobel, mas sobretudo por ouvirem um homem que lhes valorizava as raízes, que lhes falava com respeito dos pais e dos avós, que era um exemplo de dignidade, coragem e determinação. Foi um dos momentos mais comoventes da minha vida.

Que autores actuais aprecia nas diversas formas que as letras podem tomar?

Há uma série de “novos” escritores que me interessam pela capacidade de recriar a complexidade de certos universos contemporâneos. Tenho acompanhado com alguma atenção autores muito diferentes, como Dulce Maria Cardoso, João Tordo, Bruno Vieira Amaral, Pedro Eiras... Descobri recentemente as obras do Ernesto Salgado Areias, um transmontano que, a meu ver, merece muita atenção, em particular um romance histórico (Demónios por Sefarad) que se desenrola no tempo dos reis católicos. Com grande visualismo, o autor reconstitui o destino de uma comunidade judaica que foge de Sevilha para escapar às perseguições inquisitoriais, indo abrigar-se em Trás-os-Montes, na vila de Aquae Flaviae, depois de uma atribulada viagem em busca da terra prometida. A escrita é elegante, as personagens femininas bem delineadas, a estrutura envolvente, jogando com os enigmas e o suspense que se desvenda pouco a pouco, mantendo o leitor sempre agarrado à evolução dos acontecimentos. Oromance consegue transmitir-nos uma visão do cruzamento das três culturas monoteístas e das consequências do estabelecimento da Inquisição em Sevilha em 1478, antes da grande aventura das descobertas marítimas.

E dos mais “antigos”?

Entre os poetas mais “antigos” que continuam a encantar-me encontram-se a Sophia, o Eugénio de Andrade, o Carlos de Oliveira e o Ramos Rosa. No domínio da ficção, são muitos os nomes, mas tenho uma clara preferência pela Maria Gabriela Llansol, pelo Rui Nunes e pelo Saramago, cuja releitura me traz sempre algo de novo.

Há uma escrita feminina?

A discussão acerca da escrita feminina fez correr rios de tinta nos anos 80 e, entretanto, passou de moda, depois de incomodar muita gente... A Hélène Cixous, que continua a praticar uma escrita outra, defendeu em 1975, num ensaio que ficou célebre (Le Rire de la Méduse, reeditado em 2010), a ideia de que é impossível codificar uma prática feminina da escrita, o que não significa que esta não exista. De facto, as mulheres foram dominadas durante séculos pelo sistema “falocêntrico” e a sua maneira de ver o mundo é diferente da visão masculina, o que pressupõe que, quando escrevem longe dos modelos impostos pela tradição, são capazes de transgredir e de propor uma perspectiva original. Por isso, é importante que as escritoras se debrucem sobre as suas experiências mais íntimas, inscrevendo o seu inconsciente nas palavras, como preconizava Cixous. Continuo a acreditar que, tendo as mulheres uma vivência específica da realidade, podem subverter os modelos masculinos, escapar à sombra do Pai e apostar na sua própria singularidade.

Em 2014 escreveu um livro de Poesia jocosa e satírica divertidíssimo intitulado Pequeno Bestiário Académico. Pode falar um pouco desse livro?

Durante a minha carreira, encontrei muitas pessoas de qualidade, mas também me defrontei com alguns monstrinhos repelentes de oportunismo, que me apeteceu denunciar. A escrita da plaquette nasceu de uma espécie de balanço sobre os aspectos menos simpáticos da vida académica, como a inveja, a hipocrisia, a mediocridade preguiçosa, a incompetência, a arrogância que, na verdade, existem em todos os meios profissionais. Assim, antes de mudar de rumo, decidi caricaturar o “pequeno mundo” universitário constituído por essa gentinha que tão bem conhecemos, capaz de todos os jogos sujos para trepar na carreira e prejudicar o parceiro. A meu ver, a melhor forma de combater tal bicharada é o riso.

Partager les lucioles. Réflexions autour de la littérature portugaise, que será editado em Paris é o último projecto que tem em mãos? Quer falar-nos dele?

A ideia deste livro surgiu quando li Survivance des Lucioles, um estudo do Georges Didi-Huberman, que desenvolve uma célebre metáfora política criada por Pasolini. Em 1975, antes de ser barbaramente assassinado, o artista italiano constatava o “desaparecimento dos pirilampos”, devido ao excesso de luzes e ao conformismo imposto pelo “neocapitalismo televisivo”, que se iria agravar alguns anos mais tarde com o império berlusconiano. Porém, como mostra Didi-Huberman, apoiando-se em Aby Warburg e Walter Benjamin, os pirilampos continuam a brilhar no escuro enquanto forma de resistência, mesmo se nem sempre os vemos. A partir desta constatação, comecei a pensar que, quando avaliamos a obra de alguns autores portugueses, podemos facilmente identificar as tais luzes que significam o poder emancipatório da Literatura e que importa partilhar. Ao ler por exemplo o Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, percebemos que, para além da catástrofe que assola uma sociedade abjecta dominada pela lei do mais forte, existe um cão das lágrimas e uma mulher dotada de grande generosidade, como pequenos focos luminosos que transmitem toda a dignidade do humano. A metáfora dos pirilampos remete assim para a capacidade de “organizar o pessimismo”, como diria Benjamin, para a dimensão ética da Literatura que ainda é capaz de acender a esperança no espírito do leitor. Há outros escritores portugueses que também se inscrevem nesta linha, como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Lídia Jorge ou João de Melo, abrindo o espaço literário para uma série de questionamentos fecundos.

Que pergunta gostaria que alguém lhe tivesse feito e nunca teve oportunidade de responder?

O que significa para si escrever Poesia e publicá-la em Portugal?

Quer responder agora?

Um dos melhores professores que conheci em Letras, nos anos 70, grande crítico literário e também excelente poeta, chamado Manuel Gusmão, escreve algures que “a poesia é o que recapitula o mundo/ chamando-o em cada chama/ pela chama de cada sílaba”. Para mim, escrever Poesia é também uma forma de estar onde não estou, de cruzar espaços e de retribuir modestamente o legado que recebi de todos aqueles que me transmitiram a “chama” que brilha no escuro como os pirilampos de que falávamos há pouco.

Janeiro 2018