SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número38Maria Antónia Ferreira Pinto, aristocrata e tenente do exército português na I Guerra MundialMulheres Escultoras em Portugal: Leandro, S. & Silva, R. H. (Coord.) (2017). Lisboa: Caleidoscópio, 319 pp. índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa dez. 2017

 

LEITURAS

A americana que queria ser rainha de Portugal. Mântua, A. A. (2017). Lisboa: Letras & Diálogos, Manuscrito, 253 pp.

Eva-Maria von Kemnitz*

*Investigadora sénior. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher


 

Uma informação sobre um leilão de joias suscitou o interesse de Ana Anjos Mântua, Coordenadora da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, e lançou-a numa exaustiva investigação em arquivos institucionais e coleções particulares. Assim, surgiu “a incrível- história de Nevada Hayes, mulher de D. Afonso, Duque do Porto”, contada na primeira pessoa.

O poeta diz que o sonho comanda a vida, mas no caso da Nevada Hayes (1870-1841), estas palavras adquirem um significado crucial. Nascida numa América provinciana e conservadora, no seio duma família numerosa, cujos pais, de origem irlandesa, eram donos de uma mercearia, cedo adquiriu “a certeza de que não pertencia ali”, certeza confirmada na adolescência por um acontecimento que a marcou, mas a incentivou a lutar. Tinha consciência de que poderia tirar partido dos seus atributos físicos, dos seus olhos azulados e dos seus caracóis dourados, mas sabia que o caminho a seguir eram os estudos. Subiu a pulso; de professora de liceu, em Nova Filadelfia, aos 19 anos, passou a funcionária do Departamento Financeiro, em Washington, e, volvidos cinco anos, era secretária no jornal Town Topics, onde, em breve, incumbida de redigir a coluna Lady Modish, teve ocasião de conhecer tudo com que sempre sonhara: riqueza, sofisticação, glamour.

Seguiu-se um breve casamento com um jornalista de sucesso, Lee Albert. Todavia, nem o matrimónio, nem a maternidade a preencheram. Separaram-se amigavelmente e, pouco tempo depois, Nevada contraiu um segundo casamento com um milionário, William Henry Chapman, que em breve faleceu, deixando-a viúva e senhora de vasta fortuna.

Novamente livre, Nevada prosseguiu o desejo há muito acalentado – casar com… um verdadeiro príncipe real. Era o ano de 1908, corriam notícias do assassinato do Rei de Portugal e do Herdeiro Real e, simultaneamente, da disponibilidade do Infante D. Afonso (1866-1920), irmão do Rei, um eterno solteirão que suscitou a curiosidade de Nevada. Desembarcou em Lisboa, em junho de 1908, e dias depois, em Sintra, o destino fê-la cruzar-se… com D. Afonso. Como registou no seu diário, teve um pressentimento de que este homem iria mudar a sua vida.

Isto só se concretizaria em 1917. Entretanto, Nevada casou, pela terceira vez, com o banqueiro Philipp van Valkenburg, mas o conto de fadas acabou num estrondoso divórcio.

Nevada regressou à Europa, onde soube pelos jornais da implantação da república em Portugal e do exílio da Família Real. Seguindo, pela imprensa, as notícias do Infante D. Afonso, decidiu ir ao seu encontro.

Entre passeios, jantares e bailes, completou-se a definitiva conquista do Infante. Nevada, não tendo conseguido a anulação do último casamento, conseguiu, todavia, um novo passaporte americano, onde foi averbado o seu estatuto de viúva. Vencidas inúmeras dificuldades, casaram-se, em 26 de setembro de 1917, em Roma. Não sendo, porém, esta união reconhecida pela lei portuguesa, o casal deslocou-se a Madrid, onde foi celebrado o casamento morganático, em 23 de novembro de 1917, e passada a certidão de casamento no Consulado de Portugal. Na mesma altura, o Infante D. Afonso redigiu o seu testamento, deixando tudo a sua mulher; autenticado pelos serviços consulares, o documento foi, cautelosamente, remetido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Embora nos termos do casamento não tivesse direito ao título, Nevada construiu a sua identidade como Princesa de Bragança, Duquesa do Porto. O casal, proscrito pela realeza, estabeleceu-se nos arredores de Nápoles. Passada a euforia dos primeiros tempos, o estado de saúde de D. Afonso foi-se agravando, sendo os últimos meses passados numa cadeira de rodas. Faleceu em 21 de fevereiro de 1920 e Nevada perdeu o seu “grande amor”.

Com o intuito de perenizar a sua imagem, Nevada mandou publicar em Londres uma biografia de D. Afonso, H.R.H. The Duke of Oporto (Crownprince of Portugal), em 1921, e começou os preparativos para a trasladação dos restos mortais do marido, cumprindo a promessa de o levar para Portugal. Simultaneamente, requereu ao Governo português os bens que pertenciam por direito ao seu falecido marido, dos quais era a legítima herdeira.

Em 1 de março de 1922, um navio de guerra português trouxe os restos mortais de D. Afonso para Lisboa, sendo depositados no Panteão Real.

Nevada sobreviveu a D. Afonso por 21 anos, vivendo-os plenamente, viajando, jogando, dançando, mas não voltando a casar. A sua lápide tumular ostenta os dizeres: H.R.H. Princesse de Braganza, Duchesse d'Oporto, born Nevada Stoody died Jan 11 1941.

A Autora retrata Nevada de forma bastante positiva, como uma mulher inteligente, ousada e determinada, trabalhadora e disciplinada, perseguindo o seu sonho de, um dia, vir a ser princesa, contrastando com a imagem pouco favorável transmitida por uma parte da imprensa coeva e alguns depoimentos.

O que torna Nevada uma pessoa interessante é a encarnação da modernidade, a sua preocupação não apenas em deslumbrar, mas também com a sua carreira profissional, o modo de vida regrado, seguindo um regime e praticando exercício físico que lhe permitiram manter uma figura elegante até ao fim da vida. De referir os seus interesses culturais, a participação em tertúlias literárias e as viagens, entre outras, à Índia, em memória de D. Afonso, que foi o último vice-rei português do Estado da Índia. Entre os seus conhecimentos, contava-se Tennessee Celeste Claffin, viscondessa de Monserrate, sua conterrânea, sufragista e a primeira mulher que abriu uma corretora em Wall Street, cujos lucros serviram para financiar um jornal feminista radical. Nevada, muito embora não partilhasse as suas convicções feministas, admirava-a bastante.

Para si traçou outro caminho, assente na feminilidade, que concretizou com êxito.