SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número38Retrato falado com Rita BarrosMatilde Sousa Franco: Caminhos de uma vida invulgar índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa dez. 2017

 

PIONEIRAS

Ana Patrícia Cardoso Lopes

Ana Rosa Mota*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, a.r.sousamota@gmail.com


 

 

Ana Patrícia Cardoso Lopes é uma militar portuguesa que comandou uma missão internacional da Guarda Nacional Republicana (GNR), facto assinalável pelo seu pioneirismo, enquanto mulher, numa organização tradicionalmente masculina.

Conversámos sobre este e outros assuntos, aqui deixando um apontamento, muitas vezes em discurso direto, do percurso de uma mulher determinada.

A capitão Ana Patrícia Cardoso Lopes[1] nasceu, há 35 anos, nas Caldas das Taipas, Guimarães, onde completou o ensino secundário. Com 18 anos decidiu optar por uma carreira militar, o que pressupôs, desde logo, uma mudança radical na sua jovem vida – deslocar-se para Lisboa. Diz que a família a apoiou desde que teve conhecimento da sua intenção e que “esteve sempre presente de uma forma ativa durante todo o processo de candidatura”. Recorda que o irmão, quando ela regressava a casa às sextas-feiras, “lá estava no sofá, independentemente da hora, por vezes já de madrugada” para a ouvir contar as vicissitudes da sua semana na Academia e o papel fundamental de um primo, sargento-ajudante no exército, que lhe explicou todo o processo de candidatura à Academia e “elucidou uma jovem de 18 anos sobre o que iria encontrar em ambiente militar, especialmente por ser mulher”. Reconhece, contudo, que a família se mostrava apreensiva, não só quanto às exigências do curso, mas também quanto à própria carreira que escolhera.

Recorda a sua opção pela vida militar:

“Tomei conhecimento da existência da Academia Militar durante a frequência do ensino secundário e logo fiquei fascinada pelas atividades académicas, desportivas e com a própria vivência desta grande escola. O gosto pelo desporto foi um fator relevante na minha decisão. Paralelamente, a possibilidade de enveredar por uma carreira prestigiante e estável também contribuiu para a minha escolha.

A ideia de me mudar para Lisboa foi entusiasmante porque estava muito motivada para estudar na Academia. Conheci a cidade nessa altura e gostei bastante, tanto que optei por ficar aqui a residir.”

Em 1993, a Academia Militar admitia pela primeira vez mulheres – só uma se inscreveu. Quando Ana Lopes, em 2000, realizou a sua prova de aptidão militar, última da seleção, já o fez na companhia de outras 29 mulheres – “Foi a primeira vez que se constituiu um pelotão só com mulheres” –, das quais 18 acederam ao curso e apenas sete acabaram por integrar a GNR. Esta prova, realizada ao longo de três semanas, permite que os candidatos “comecem a ter a perceção da sua eventual vocação para a vida militar, pois é aqui que conhecem as exigências subjacentes a esta opção de vida”; ao mesmo tempo, estimula a interiorização dos valores militares, nomeadamente a camaradagem e o espírito de corpo, “pois precisamos uns dos outros constantemente para superar as exigências e os obstáculos com que nos deparamos”.

Ana Lopes realça a importância da Academia enquanto espaço de “formação académica muito completa”, mas também, e releva-o particularmente, de crescimento pessoal, traduzido no “estimular de um espírito de camaradagem e amizade”.

Sobre a persistência de uma posição maioritariamente tradicionalista nas Forças Armadas Portuguesas, no que respeita à integração de mulheres nos seus quadros, reflete:

“A integração das mulheres na GNR depende muito da atitude e comportamento com os seus pares. É importante percebermos que estamos num meio militar, e por isso há uma conduta que tem de ser respeitada. Claro que isto serve para homens e mulheres. No entanto, as mulheres, por serem em menor número, estão mais expostas (…). Esta maior exposição pode ser uma dificuldade na integração das mulheres, principalmente se não estivermos preparadas para lidar com ela ou não tivermos uma noção correta do que é a condição militar. Quando trabalhamos de forma natural, honesta e profissional, vamos ter o reconhecimento certo e a camaradagem de que precisamos para integrar a vivência militar.”

No entanto, reconhece: “não sei se tive de me esforçar mais que os meus camaradas masculinos, mas tinha a noção de que, sendo tão poucas mulheres, tudo o que fazíamos era imediatamente notado, para o bem e para o mal; logo esforcei-me sempre por não falhar”.

Assegura que, hoje em dia, a maioria dos militares vê a presença de mulheres nas fileiras das Forças Armadas ou das Forças de Segurança com naturalidade, “pois, ao longo dos anos, as mulheres (…) souberam ocupar o seu lugar nas instituições. Os militares querem comandantes competentes, que ouçam as suas opiniões e que deem o exemplo. Desta forma o cumprimento das ordens é inequívoco e nunca colocado em causa. O género é o menos importante”.

Ana Lopes completou a licenciatura em Ciências Militares em 2005, ano em que se inscreveu no curso de Psicologia Clínica da Universidade Autónoma de Lisboa, onde concluiu, igualmente, um mestrado em Relação de Ajuda e Intervenção Terapêutica. É, também, pós-graduada em Direito e Segurança pela Universidade Nova de Lisboa.

Atribui à sua licenciatura em Psicologia Clínica a mais-valia que lhe permite “melhor estudar e compreender a pessoa humana, ajudá-la a lidar com as suas dificuldades, o seu sofrimento e fundamentalmente possibilitar-lhe as ferramentas necessárias para, de uma forma autónoma, ultrapassar problemas e obstáculos”. E isto para ela é parte integrante da sua missão como oficial da GNR. Acrescenta que a sua opção de integrar os quadros desta instituição decorreu da “diversidade, desafio e importância das missões, que (…) garantem a ordem e a tranquilidade públicas. Ser militar da GNR é um desafio diário, com responsabilidades acrescidas, mas de uma gratificação inigualável”.

Quando terminou o curso, em 2005, foi nomeada Comandante do Destacamento de Serviços Especiais da extinta Brigada Fiscal, onde chefiava 197 militares, todos homens, “com uma média de idades a rondar os 45 anos” e “grande parte deles com filhos da minha idade”. Diz ter sido uma magnífica experiência e ter-se sentido “apoiada e acarinhada”. “Na verdade não podia ter melhor sorte, pois também para eles era uma novidade terem uma comandante mulher, algo que nunca tinha acontecido naquela Unidade”, e acrescenta: “rapidamente percebi que tinha muito a aprender com estes militares (…), que me ensinaram e transmitiram as suas experiências, que se revelaram fundamentais para a minha integração na Instituição e, até, na profissional em que me tornei”.

Entre 2009 e 2012 foi Adjunta do Comandante de Destacamento de Vigilância Móvel da Unidade de Controlo Costeiro/GNR e, dessa data até 2016, Comandante no mesmo Destacamento.

Em 2016, durante três meses, liderou uma missão internacional da GNR, constituída por 31 homens, integrada na Frontex (Agência Europeia de Gestão de Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia). A missão Poseidon, que incorporava militares de outros Estados-Membros da União Europeia, tinha como objetivo o controlo e apoio a migrantes no Mediterrâneo, com os portugueses a patrulharem as águas do Egeu a partir das ilhas gregas de Kos e Chios.

Foi a primeira vez que uma mulher comandou uma missão internacional da GNR, facto que Ana Lopes desconhecia quando aceitou o cargo:

“Quando aceitei cumprir a missão na Grécia, não sabia que levava o ‘peso' de ser a primeira mulher a comandar uma missão no estrangeiro. No entanto, assumi esse facto como uma grande responsabilidade. Não queria falhar. Não podia deixar um rótulo de que a primeira mulher falhara. Queria sim trilhar um caminho para que outras mulheres pudessem cumprir estas missões de forma mais natural e apenas focadas nos objetivos da missão. Isto é o mais importante.”

Relativamente a esta missão, Ana Lopes reconhece as dificuldades sentidas pelos gregos no confronto com a enorme crise humanitária, sendo indispensável o rigor e a correção na postura, o profissionalismo e a conduta da missão da GNR.

Recorda a apreensão dos migrantes em relação às intenções dos militares, ao ponto de se recusarem a parar as embarcações quando abordados, arriscando o naufrágio. Daí muito se orgulhar da resposta dos nossos militares às difíceis situações com que se depararam: “não houve qualquer incidente nas nossas abordagens. Todos foram resgatados com vida”. Sobre a possibilidade de entre os resgatados haver possíveis terroristas, responde: “Se uma pessoa está numa situação crítica, naufragada, não sou eu que decido quem vai ou não ser salvo. Esse não é o nosso trabalho. A nossa missão é salvar todos. Depois serão avaliados”. Admite ser muito difícil para qualquer militar envolvido neste tipo de missões esquecer os dramas humanos a que assiste diariamente, quantas vezes envolvendo mulheres e crianças. Apesar de esta ser, sem dúvida, a mais importante, não foi a sua primeira missão internacional; já em 2013 fora coordenadora operacional e avaliadora do projeto PERSEUS, que englobava forças espanholas, gregas e portuguesas, e, em 2015, avaliadora do projeto CLOSEYE (Espanha).

A ONU Mulheres tem vindo a realçar a importância da presença de mulheres nas diversas operações de manutenção da paz, salientando o seu contributo decisivo para aumentar a credibilidade dessas forças, ganhar acesso às comunidades, facilitando a obtenção de informação vital para a persecução dos objetivos e contribuindo para uma visão das mulheres como prestadoras de proteção e segurança. Ana Lopes reforça que “pensar estas Instituições [Forças Armadas e de Segurança] sem mulheres é completamente desajustado às necessidades das populações em matéria de segurança”.

É casada com um também oficial da GNR, seu camarada de curso na Academia Militar, e mãe de uma menina de quatro anos. Reconhece não ser fácil harmonizar a vida familiar com a carreira que escolheu, “principalmente quando estamos longe da família. No entanto, é possível com o apoio do meu marido e com a ajuda de amigos”.

Recorda que a primeira mulher oficial da GNR ingressou na Academia Militar apenas em 1994, tendo atualmente o posto de Tenente-Coronel e desempenhando funções administrativas nos serviços sociais da Instituição.

Quanto à evolução da presença de mulheres na GNR, realça que é um número que tem vindo a aumentar de ano para ano, recordando que começaram por ser apenas 16 em 1993. Neste momento, a instituição conta com 1414 mulheres nos seus quadros, entre oficiais, sargentos e guardas (apenas cerca de 6% do total de efetivos da Instituição). Quanto a mulheres em funções de comando, são, atualmente, 29: 13 oficiais, em comando de destacamento ou equivalente, e 16 sargentos, em comando de postos ou equivalente. Apenas duas mulheres integram o Grupo de Intervenção da Ordem Pública da GNR, de um total de 367 elementos.

Apesar destes números, vê com otimismo o futuro das mulheres na carreira militar, particularmente na GNR, onde garante não existir “qualquer diferenciação em termos de progressão de carreira”, e diz-se convicta de que “teremos, na próxima década, mulheres a comandar grandes unidades, em funções de grande responsabilidade (…). Desta forma, no que concerne ao género, uma oficial poderá alcançar a classe de oficial general”.

Admite, porém, que muitas mulheres, principalmente da classe de guardas, “prescindem da progressão a novos postos por motivos familiares, para cuidarem dos filhos ou até darem apoio aos seus pais idosos. Sempre que há uma promoção, fica-se sujeito a novos locais, novas vagas e muitas vezes longe do local de residência. Muitas acabam por não arriscar”.

Ela própria concluiu recentemente o Curso de Promoção a Oficial Superior no Instituto Universitário Militar – foi dos(as) mais bem classificados(as) – e com as novas funções, como major, também virá uma nova colocação, que espera seja em Lisboa, o que facilitaria um outro e importantíssimo objetivo na sua vida: ser mãe de novo.

[1] Segundo informação da própria, o regulamento militar não prevê o uso do feminino nos postos.