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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.38 Lisboa dez. 2017

 

NOTA DE ABERTURA

Isabel Henriques de Jesus


 

Neste número da revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher escolhemos, como figura de capa, uma mulher chinesa, mulher destacada na história social e política do seu país, considerada, por muitos, a mãe da China moderna.

Na senda do que já fizemos em números anteriores, pretendemos suscitar a curiosidade por mulheres oriundas de geografias e de culturas que não nos são imediatamente acessíveis. Neste caso, trata-se mesmo de uma figura bastante desconhecida para nós, e que não tem originado uma análise e divulgação aprofundadas sobre o seu percurso de mulher pública e interventiva.

Apresentá-la tem como finalidade, não apenas recordar a sua actuação social e política, mas também desassossegar as mentes mais conservadoras, desafiando-as para outras realidades, diferentes na sua especificidade de tempo e de espaço, e únicas, como únicas são todas as mulheres. São-no, afinal, todos os seres humanos, uma “verdade de La Palice” que, contudo, nem sempre é observada nos discursos e nas práticas, principalmente quando se pretende homogeneizar para, em seguida, hierarquizar.

Nunca é demais recordar que a História, seja política, social, económica ou militar, tem sido fundamentalmente percepcionada e contada no masculino, razão pela qual desvendá-la no feminino é um imperativo ético que compete a todas/os, mas que exige das mulheres uma atenção constante e uma acção consciente e deliberada. A revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher tem feito disso uma missão, desvendando mulheres mais ou menos célebres, através da recuperação dos seus legados, enquanto cidadãs de pleno direito, dando-lhes voz, nas entrevistas e auto-retratos, ou analisando-as individual ou colectivamente nas diferentes secções que estruturam a revista. O espanto, que nunca deixa de nos orgulhar e de nos alentar para uma tarefa seguramente muito exigente, é o grande número de possibilidades que nos surgem de cada vez que pensamos numa figura de capa, num artigo, numa mulher a entrevistar... quantidade e qualidade que suscitam algumas perguntas: porquê tanto tempo ocultadas, tanto tempo ausentes? Quem falava em vez delas? Quem se apresentava em seu nome?

Estas questões, tão sensíveis, “quase” deixam de fazer sentido em sociedades em que a presença das mulheres no espaço público é, não apenas uma evidência que importa acautelar permanentemente, mas uma marca indelével. Contudo, a sua formulação é recuperada por outras mulheres que não se acham representadas nos discursos “ditos” dominantes das mulheres europeias ou norte-americanas.

Recordo, a este respeito, a polémica gerada em torno do livro de Kristeva About Chinese Women (1977[1]), escrito na sequência da curiosidade pela cultura chinesa, que levou a autora a visitar a China em 1974. As suas reflexões sobre as mulheres chinesas, fruto do impacto com uma “outra” cultura, evidenciam, segundo Spivack, um possível conflito na transposição de categorias europeias (neste caso absorvidas no contexto do feminismo francês dessa época) para a compreensão de vivências diferentes e heterogéneas que é necessário percepcionar adequadamente para que a sua apreensão seja viável. Só através de uma “crítica constante” que permita ao/à crítico/a entender a sua própria posição de sujeito, o/a “outro/a” pode escapar a tornar-se apenas um puro objecto do conhecimento, visto como entidade única e, assim, enviesado/a face à sua diversidade e, ao mesmo tempo, especificidade vivencial.

Representar o/a “outro/a”, enquanto grupo, comporta dificuldades múltiplas, nomeadamente pelo risco de generalização, mesmo quando se pretende identificar o que é desconhecido; por outro lado, não está imune aos efeitos de distorção provocados pelas referências culturais, pessoais e intelectuais de quem fala através da diferença. Estas questões foram acentuadas por diversas críticas feministas pós-coloniais, que viram, no livro de Kristeva, uma representação essencialista e “reverenciada” das mulheres chinesas, não apenas através de uma apreciação fixa e estabilizada destas mulheres mas também da imagem idealizada com que a autora pretendeu legitimar a sua abordagem do feminino.

Estas são, entre outras, preocupações amplamente manifestadas pelas feministas pós-coloniais, que enfatizam o lugar do sujeito na percepção das diferenças e pretendem acautelar os riscos de representações acríticas, pouco fundamentadas, e assentes em códigos e modelos produzidos a partir do “exterior”.

O nosso contributo para o conhecimento da mulher que consta na capa do presente número realiza-se com dois textos, introduzidos na secção “homenagem”, que ilustram o seu percurso, enquanto mulher com uma intervenção muito significativa no contexto social e político da China, durante grande parte do século XX. Esperamos que esta escolha estimule o interesse por outras mulheres que, em locais distantes, desempenharam papéis decisivos para a História das suas regiões, e permita incrementar o estudo das mulheres chinesas, acrescentando-lhe conhecimento crítico.

É com grande pesar que revelamos o desaparecimento de Eva-Maria von Kemnitz, colaboradora da equipa de investigação Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, onde se insere a revista com o mesmo nome. Investigadora na área dos Estudos sobre as Mulheres Árabes-Islâmicas e autora de artigos publicados em números anteriores, colabora, nesta 38.ª edição, com a recensão do livro de Ana Anjos Mântua, A Americana que Queria Ser Rainha de Portugal. Obrigada, Eva-Maria!

 

 

[1]. Publicado em França, em 1974, pelas Éditions des Femmes e republicado, em 1977, em língua inglesa.