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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa jun. 2017

 

LEITURAS

Com-Tensão. Souza, C. F. (2016). Lisboa: Editora Apenas, 157 pp.

Fernando Ribeiro*

 * Universidade Nova de Lisboa – Universidade dos Açores, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro de História D’Aquém e D’Além-Mar, f.ribeiro@fcsh.unl.pt.


 

A Paola Poma

Em obra estruturada em quatro capítulos expandindo-se por cerca de quarenta páginas cada, com a dimensão de 12,7cm×20,32cm e envoltas em capa mole colorida a verde seco chamando a atenção do leitor logo através de foto de orquídea alva encimada por título singular Com-Tensão, editora Apenas publicou em Outubro de 2016 segunda obra de ficção assinada por jovem autora, de ascendência, brasileira: Cláudia

Franco Souza, sobre a qual ficamos a saber em nota biobibliográfica ser igualmente investigadora da obra de

Fernando Pessoa, havendo publicado em continentes americano e europeu. Orquídea alva em capa reúne o segredo: amor recíproco entre “Pai e filha” de beleza e pureza tão assinaláveis quanto a perfeição e espiritualidade de que esta espécie floral é símbolo de renascimento maior, assim C. Franco Souza em excerto patente em contracapa. De assinalar modo “parco” como o livro se apresenta. Espaço embora para agradecimentos a ascendentes, descendentes, colaterais e companheiro. Amores também. Bem como para citação de F. Pessoa/Álvaro de Campos: “Depus a máscara e vi-me ao espelho” (18-8-34) “(…) assim sou a máscara/ E volto à personalidade como a um terminus de linha.” Obra de mulher: em busca da felicidade – da vida feliz – a mesma, da qual todos, desde há séculos, carecemos, como assinalado logo em início de “Da Vida Feliz” – escrito por Séneca no primeiro meio século da nossa era. Em Com-tensão o narrador desvenda ao leitor périplo essencial à aproximação, consecução e obtenção de tal escopo por protagonista de nome Daisy na senda de desejo natural sempre observando sabedoria de Séneca: “não o façamos sem o apoio de um homem experimentado” para obviar o “caos de existir” (I: 31). Com Daisy, mulher carioca, mãe e avó, e arquitecta renomada nos seus cinquenta (I: 17) proprietária a pulso de atelier “Daisy & Cia” (I: 21), em comunhão de almejada vida feliz com seu quarto homem-marido: Fabrício, passa leitor a fruir o valor ganho com diálogos (representação em showing) com Bira – pai: “seu grande amor, seu grande amigo” (I: 27) (de Daisy) – por este ser feito assumir a voz grave do Coro com função de exegeta responsável por concentração da atenção do destinatário em existência irredutível àquela condição de mulher cujas anotações interessarão apenas por próximas de subjectividades comuns a toda a mulher de sempre. Mas também por representação narrativa em telling: incluindo descrições ora de situações conjugais – com ou sem traição ao marido residente – e momentos em discurso indirecto livre caldeados com analepses indispensáveis ao tom intimista construído por esta ficção singular. Esta obra, provida de peculiar modo prático-dramático, é exímia na gestão do interesse em destinatário, a ponto de fazê-lo sentir as emoções próprias de mulher-ao-rubro, para quem a existência com seus quatro cônjuges: Gonçalo, Pedro, Johnny e Fabrício apenas representa encenação das quatro fases, das quais qualquer mulher terá de ficar consciente para, com a distância essencial, ascender à assunção de arquétipo do seu animus a integrar em plenitude observada a sabedoria personificada por Bira gradualmente investido de seu valor arquetípico qual eu-superior (Selbst): serenidade, generosidade, disponibilidade para o Outro. A narrativa dirige-se à condição do “Feminino”, do “se construir mulher”, atenta à “condição de fragilidade” (I: 28). E sem que, do princípio ao final da obra, desapareça tom épico: “(…) sou mulher, mas tenho uma profissão” (I: 18). Sendo resistência e fortaleza da personagem principal nutridas justamente por iluminado ancião persistente e atento à transformação vital à superação da condição de fragilidade da humanidade cujos géneros carecem de aprendizagem pela maturidade. Atinge-se apogeu emocional com cena de violação de Daisy pelo segundo marido “formatado para o trabalho” (II: 58) e com quem aceitou partilhar a superação da solidão durante a existência em Paris (II: 45): “Peter tampou rudemente a boca de Daisy. Ela mordeu a mão dele o mais forte que pôde e continuou a gritar cada vez mais desesperada. Peter tirou a cueca: Daisy estava absurdamente horrorizada, enojada” (II: 84). Acusa assim narrador elementar “justiça” no masculino cego por traição resultante de anos de casamento factício, por sua vez fabricado para superar o primeiro e quase adolescente fruto entre inexperientes jovens, velozmente tornados pais cuja imaturidade narrador encena através de primeiro quadro de violência conjugal (I: 29) – justamente em dia de formatura, no qual “os gritos e insultos se transformaram em tapas, em agressões físicas” (I: 16), após as quais o espelho viu “todas as marcas de uma vida infeliz” (I: 17) no rosto de jovem recém-formada que de Rio para São Paulo e para Paris e de novo em Rio de Janeiro haveria de vencer vida de solidão apoiada por pai(s) cuidando de educação de criança a cargo (passim). Da máscara, não só facial se fala agora, mas sobremodo de persona. Daisy retoma a vida com maquillage a preceito para poder enfrentar socialmente o real livre de fragilidades: “Levantou-se de madrugada e tomou seu remédio para ansiedade há tempos guardado em sua gaveta. (…) maquilhou-se frente ao imenso espelho do banheiro. (…) Somente no espelho do elevador notou que o remédio da noite anterior não havia apagado todos os traços da sua ansiedade (…) iria ver mesmo Johnny” (II: 62). Concomitantemente, narrador trabalha ironia o bastante para diegesis surgir a leitor mais verdadeiramente enriquecida a ponto de protagonista (logo em I: 4) desvendar necessidade de analepses elucidativas o bastante para colher a força de dupla Daisy-Bira retrospectivamente. No cerne da narrativa: a instabilidade psíquica – o que faz destacar registo intimista como convém a obra moderna ainda para mais sob voz igualmente no feminino, porquanto mulher, não na primeira pessoa é certo, dá forma a este narrador heterodiegético, e a focalização omnisciente tornando herói incansável no confronto épico frente a realidade adversa. Mas logo tal luta se assume como viagem de transformação essencial agora a modo não apenas lúdico e de entretenimento com que a obra poderia ser recebida. É de interesse para a actualidade, apesar de manter forma próxima de “Bildungsroman̶ 1;, não apenas por também formalmente assumir registo quase autobiográfico. Na verdade, sabemos ter Daisy registado em seu “caderno de anotações” os momentos determinantes da sua existência periclitante. Todavia esta narrativa decorre sob voz-de-terceira. Somos preparados para tal e no tempo certo somos instados a deixar de sermos leitores quando, em abertura espantosa e surpreendente, o criador literário suscita a apresentação da narradora, próxima de e também mulher do sangue de Daisy, sua neta Sofia: “Já no final de vida, Daisy me deu todos os seus cadernos de anotações. Conversamos sobre sua história de vida. E ela sempre enfatizava: Sofia pode escrever a minha biografia, mas faça dela uma bela história. Dizem que a literatura é capaz de nos salvar.” (III: 126). E a quarta geração, pela escrita, “salvaguardou”, aquando do passamento de Bira, segundo estruturação subtil de C. Franco Souza, o reconhecimento do valor da libertação pela emoção em epílogo, no qual se sente ser toda a mulher espaço de processo de amadurecimento e transformação em acção potenciada por “emoção artística característica das almas sensíveis permeando todo o que perceber a vida para além da realidade brutal e concreta que o rodeia indo além dos simples fenômenos vividos na sua imediatez”, como gentilmente nos confessou Cláudia F. Souza em 20 de Fevereiro de 2017.