SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número37Almada-Amesterdão-Almada: Conversa de ida e volta com a pintora portuguesa Maria BeatrizOlga Mariano índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa jun. 2017

 

PIONEIRAS

Manuela Mendonça: Mulher de desafios, sem nunca procurar protagonismos

Maria do Céu Borrêcho*

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, mcborrecho@gmail.com


 

 

 

Doutora em História Moderna e Contemporânea e professora aposentada do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Manuela Mendonça de Matos Fernandes é especialista em História da Baixa Idade Média, com uma vasta obra publicada. Desempenhou as funções de Subdirectora-Geral dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, entre 1990 e 1996, e a de Secretária-Geral da Academia Portuguesa da História, de 2004 a 2006. Desde Janeiro de 2006, preside a esta Academia, uma situação ímpar entre as congéneres nacionais e estrangeiras. É Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) e também do Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional Pastoral dos Ciganos, onde tem desenvolvido um diversificado trabalho e participado em inúmeros projectos europeus. É membro do Comité Catholique International pour les Tsiganes.

O percurso de Manuela Mendonça, em muitos casos pioneiro, foi motivo para uma agradável conversa que ora publicamos.

Nasceu no Alentejo. Em que medida é que os largos horizontes alentejanos marcaram as suas opções de vida e profissionais?

O Alentejo abre horizontes que, decididamente, marcam quem ali nasceu. Pode ter-se vivido nele muito ou pouco tempo, mas estou convencida de que a extensão da sua planície é apelo para o grito de ir mais longe. E isso torna-se muito nítido nas opções de vida do povo alentejano que, resistindo ao árduo clima, resistiu também com dignidade às rudes condições de vida. Diria mesmo que quem nasceu e sente o Alentejo está sempre em condições de “renascer”!

No meu caso, não foram muitos os anos que vivi na aldeia que me viu nascer, pois com apenas dois anos fui, com meus irmãos, levada por meus pais que, olhos postos no futuro, desafiaram o destino em busca de melhores condições de vida. Depois, com a prematura morte do progenitor, regressei à aldeia, onde fiz a escola primária. Recordo esses tempos felizes com muita saudade e o vínculo então estreitado ainda hoje me liga às pessoas e aos lugares. Mas a minha vida não se faria ali!

Quais as influências familiares que mais contribuíram para o seu percurso de vida/profissional?

O meu percurso de vida está intimamente ligado à minha família, que criou condições para que eu pudesse crescer, realizando-me. A decisão mais importante para o meu futuro foi tomada por minha Mãe e um tio paterno com quem vivíamos depois da morte de meu Pai. Era preciso que eu continuasse o Liceu, ensino que a aldeia não garantia. Escolheram então para mim o Colégio de Nossa Senhora do Carmo, em Évora, pertencente às Irmãs Doroteias. Foi, pois, ali que fiz os estudos então denominados de “secundários”. Mas, mais importante que o nível académico adquirido, foi ali que aprendi a crescer integralmente, moldei a minha personalidade e, sobretudo, criei o sentido do diferente, exercitando a força que me levou a rasgar o futuro. E foi ali também que ganhou forma a minha opção pela História, graças à Irmã Paulo, professora da mesma disciplina em todos os meus anos de colégio. Com ela aprendi a “aprender”, ganhando igualmente o gosto pela incursão nesse mundo milenar, cujo conhecimento é indispensável ao entendimento de cada pessoa no universo.

Quais foram ou são as suas grandes referências?

Para lá de minha Mãe, mulher determinada que criou sozinha quatro filhos após a precoce morte de meu Pai, o meu percurso foi definitivamente marcado pelas Doroteias e, de entre as Irmãs do meu Colégio, por duas em particular. Mas não posso deixar de referir que essa marca assentou no conhecimento aprofundado da sua fundadora – Santa Paula Frassinetti. Desde cedo percebi a força desta Mulher, que tinha um lema: “se os outros têm duas mãos e uma cabeça e eu também tenho, então posso conseguir o que eles conseguem”. E foi com esta força que, numa cidade em ebulição como foi a Génova da primeira metade do século XIX, Paula Frassinetti fundou o seu Instituto, qual semente que, ao longo dos anos e sempre enfrentando árduas lutas, fez crescer e frutificar. O conhecimento aprofundado da vida e a acção desta Mulher levaram-me a querer segui-la. Por isso, a minha primeira opção de juventude passou pelo Noviciado das Irmãs Doroteias, experiência riquíssima que vivi durante cerca de três anos. Depois percebi não ser esse o meu caminho e saí. Hoje, casada e com um filho, posso, no entanto, afirmar que a força daquela Mulher pioneira continuou a orientar e orienta ainda a minha vida.

Sempre tive o sentido do social, e hoje ainda sinto que fui influenciada por Paula Frassinetti na sua opção pelos mais pobres. Cheguei mesmo a pensar fazer o curso de Serviço Social, mas, curiosamente, a ideia não me entusiasmou, e desde cedo se tornou claro para mim que queria que essa fosse uma vertente da minha vida, mas não como profissional.

O voluntariado seria, como sempre tem sido, uma opção minha. Quanto ao interesse pela comunidade cigana, surgiu por acaso; o que sempre me moveu foi a luta contra a exclusão social. Aconteceu que, na minha Paróquia, conheci uma senhora – Dr.ª Fernanda Reis – que foi pioneira na abordagem e trabalho com a comunidade cigana (aliás, penso que Faces de Eva deveria entrevistá-la…); assim, a minha adesão a este trabalho decorreu de um convite seu. Comecei por fazer alfabetização a adultos. Depois fui-me envolvendo cada vez mais, não apenas no interesse pela história e cultura deste povo, mas também pelas suas condições de vida. Estávamos no princípio dos anos setenta, as barracas eram uma realidade, bem como inúmeras pessoas sem rumo. Importava, por isso, ir ao seu encontro e ajudá-las a encontrarem-se como “pessoas”. A opção centrou-se então nas crianças e na respectiva necessidade de escolarização, cuidados de saúde, etc. E o Secretariado Diocesano de Lisboa foi crescendo e eu, quase sem querer, vi-me comprometida num vasto trabalho social.

À medida que os anos passaram, já não era só a comunidade cigana, mas imensos outros grupos, de diversas terras e culturas, que, à margem da grande cidade, careciam de atenção, apoio, encaminhamento. Hoje continuo ligada e comprometida nesse trabalho com pessoas que, votadas à omissão pelas conjunturas políticas (ou lembradas por elas apenas em tempo de eleições), constituem, na realidade, verdadeiras franjas sociais ignoradas, mas cuja existência não pode deixar de gritar por justiça… Este envolvimento levou-me, há vários anos, a aceitar integrar os órgãos sociais da estrutura de apoio nacional – a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) – de que sou actualmente Presidente da Assembleia-­‑Geral. Curiosamente, também a primeira mulher a ocupar este cargo!

Actualmente é Presidente da Academia Portuguesa da História. Que comentários lhe merecem o facto de ser uma mulher a ocupar um cargo de direcção como esse?

Foram dois os momentos da minha vida em que me vi como “primeira mulher” chamada a gerir uma Instituição pública, o que teve um custo muito significativo na minha carreira académica, sobretudo no primeiro caso. Eu iniciara essa carreira em 1977, mercê da frontalidade com que sempre me afirmei na vida. De facto, terminada a licenciatura, mantivera-me numa Escola onde já leccionava e iria iniciar estágio profissional. Não ambicionava a carreira universitária! Porém, recebi um telefonema de um Professor que me dizia: “Precisamos de si, queremos uma mulher frontal e determinada no nosso corpo docente. É tempo de reorganizarmos a vida do Departamento!” Não hesitei. Foram anos difíceis, cheios de confrontos, muitos aborrecimentos, mas também muitas vitórias. O entusiasmo colocado na adesão à “nova ordem” política era suporte para a valorização e reorganização do trabalho académico. Foram anos em que passei por todos os cargos do Departamento, tradicionalmente liderados por homens! Depois houve que cumprir os prazos para conclusão de Doutoramento, o que aconteceu em 1990, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Terminado este, fui nomeada Subdirectora-Geral do então Arquivo Nacional da Torre do Tombo, tendo como Director Jorge Borges de Macedo, onde permaneci até 1996. Fui a primeira mulher na Direcção desta Instituição!

Esta realidade teve, para mim, um preço muito elevado. Percebi, com o tempo, que o “meu” mundo profissional se dividira em dois grupos: os opositores frontais (muito poucos) e os bajuladores (muitos)! Claro que também havia Amig@s, mas prefiro inseri-los no grupo familiar que me ajudou a ultrapassar as muitas horas difíceis resultantes de modos variados de actuar por quem nem sequer hesitou em difamar! Mas a missão foi cumprida, podendo eu continuar a orgulhar-me do trabalho feito, que foi da inauguração do novo edifício à reestruturação dos Distritais, numa tarefa exigida pela respectiva integração nos designados Arquivos Nacionais/Torre do Tombo.

Se recordo estes anos é para referir que a continuação da minha carreira académica sofreu as consequências das inimizades involuntariamente contraídas, cuja vertente mais dura foi o resultado do meu concurso para catedrática, em 1996. Não é o momento de falar desse processo, que ainda se arrasta nos tribunais. Apenas deixo registado que os quatro concorrentes, em que me incluo, foram aprovados. Porém, as três vagas existentes foram entregues a três homens, na sequência de um processo cuja análise só pode colocar em causa a isenção do júri. Se Faces de Eva o desejar, poderei retomar o tema quando o tribunal der a sentença final!

Que reflexão faz sobre a sua intervenção na Academia Portuguesa da História, nomeadamente, referindo o cargo que hoje ocupa?

Também aqui era a primeira mulher a desempenhar o cargo, “fenómeno” nunca visto noutras congéneres nacionais ou mesmo estrangeiras com que nos relacionamos. Diga-se que, dois anos antes desta eleição, eu tinha já sido chamada a integrar o Conselho Académico como Secretária-­‑Geral. Curiosamente, também nunca antes este cargo fora ocupado por uma mulher. Todavia, a situação não levantou questões. Afinal era uma responsabilidade sobretudo administrativa, que trazia consigo muito trabalho, de que não decorria qualquer protagonismo… As coisas mudaram de figura quando se tratou, em 2006, de me eleger como Presidente! A situação lembra um pouco as palavras do Infante D. João quando se colocou a hipótese da viúva de D. Duarte, D. Leonor, receber a Regência do reino. Não seria possível, pois, “além de estrangeira, era mulher”! A votação foi renhida, mas os dez votos contra não chegaram para impedir a eleição. Passaram dez anos, durante os quais tudo se foi pacificando, o que ficou traduzido nas sucessivas reeleições.

A Academia Portuguesa da História (APH) continuou, entretanto, o seu caminho. Nesta aventura nos envolvemos de alma e coração, tendo como objectivo primeiro a valorização da História Local, o que tem levado a uma estreita colaboração com o mais diverso tipo de autarquias. E, se em Portugal ainda há alguns preconceitos relativamente ao papel da APH como instituição cimeira ao serviço da História, o mesmo não acontece no estrangeiro. Tanto na Ibero-América como na Europa, foi possível estreitar laços de cooperação, não apenas com outras Academias, mas também com diversos outros organismos científicos. Refira-se ainda que temos desenvolvido uma grande e permanente colaboração com o Brasil, buscando igualmente estreitar relações com os outros países de Língua Portuguesa. As Academias e Universidades de Espanha são também parceiros privilegiados no aprofundamento do conhecimento mútuo de uma História que não se pode compreender isoladamente. Como a Europa, numa expressão de busca de unidade secular que a Academia Europeia de Yuste radica em Carlos V. Membro desta Academia, nela ocupo, por opção, a cadeira Joana d’Arc! Esta escolha traduziu um sentimento pessoal que também quero expressar nestas minhas palavras: Mulher de desafios, sem nunca procurar protagonismos, jamais voltei as costas à luta!

18 de Abril de 2017