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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa jun. 2017

 

ENTREVISTAS

Catarina Marcelino: Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade

Maria do Céu Borrêcho*, Rita Mira**

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, mcborrecho@gmail.com

** Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, mira.rita@gmail.com


 

 

 

Numa sala com vista sobre o Tejo, recebeu-nos a Dr.ª Catarina Marcelino para um breve diálogo sobre o que mais a entusiasma na exigente função que agora ocupa.

Das experiências pessoais às propostas transformadoras que procura imple­mentar, muitos foram os temas abordados. Por último, confidenciou-nos sobre o seu legado para uma mudança social no nosso país.

Ao longo da vida que pessoas mais contribuíram para a sua formação como cidadã?

A pessoa que mais me marcou ao longo da vida enquanto cidadã foi a minha mãe, que teve um percurso de vida com uma dimensão fortemente feminista. Sempre defendeu, ao longo da sua vida, valores feministas, tendo sido activista em muitos momentos. Costumo dizer que eu sou feminista desde a barriga da minha mãe [risos], que me transmitiu fortes valores de cidadania. Não posso também deixar de mencionar o meu pai como uma forte referência na minha vida. Se a minha mãe foi uma mulher muito à frente do seu tempo, o meu pai também o foi. A minha avó, hoje com 94 anos, é para mim um exemplo de determinação e coragem.

Licenciou-se em Antropologia. Foi esta a sua primeira opção académica?

O Teatro surgiu como primeira opção, o que me levou a candidatar-me ao Conservatório Nacional de Lisboa, embora sem sucesso. Posteriormente, no contexto do Movimento Internacional de Estudantes de que fiz parte, participei numa Conferência Internacional, realizada no Equador, onde tive o privilégio de conhecer algumas comunidades indígenas. Esta experiência despertou em mim o interesse pela Antropologia que, hoje, julgo ter sido uma boa opção. Nunca mais fiz teatro, mas essa “veia de palco”, que creio ter, aplico-a em diversos contextos profissionais, sobretudo naqueles em que é necessário o contacto e a comunicação com o público. A facilidade de comunicação e a capacidade de expressão em público são competências que desenvolvi na área do Teatro e que mobilizo para as funções que tenho desempenhado, nomeadamente na Política.

Em que medida esta formação tem sido importante ao longo da sua vida profissional, incluindo o desempenho dos diferentes cargos políticos? Como potencia o seu olhar de antropóloga nas funções que tem desempenhado?

Tive um professor na faculdade que afirmava que, quando terminamos a licenciatura em Antropologia, não passamos a ser antropólogos e antropólogas. A licenciatura permite, sim, formar pessoas com uma visão mais abrangente sobre o mundo. Uma vez que tenho desenvolvido um percurso profissional sempre ligado às áreas sociais, especificamente às questões da igualdade e não-discriminação, essa forma de olhar o mundo e o respeito pelas diferenças têm sido uma forte mais-valia sempre presente no meu trabalho.

Quando estava na faculdade, fiz voluntariado na intervenção com pessoas sem-abrigo, experiência que me marcou profundamente. Mais tarde, fui responsável pela Acção Social da Câmara Municipal do Montijo, tendo trabalhado com pessoas em desvantagem social, alvo de discriminações múltiplas, nomeadamente com problemas de toxicodependência. Em todas estas experiências profissionais, esta capacidade de olhar as pessoas e os seus problemas, na perspectiva de as compreender e não baseada no preconceito, é transversal e aplicável nas diversas funções que tenho exercido. Compreender e aceitar o que não é igual a mim é um valor que faço questão de ter presente na minha vida.

Assume-se feminista publicamente. Que implicações considera ter, hoje em dia, este ser-se e assumir-se feminista, incluindo no domínio político?

Assumo-me com naturalidade como feminista e considero que hoje em dia, felizmente, há uma maior aceitação e compreensão sobre o significado deste termo e sobre as implicações inerentes ao mesmo. No entanto, apesar desta maior compreensão, ainda se mantêm alguns preconceitos, que foram construídos historicamente. Penso ser muito importante assumir-me publicamente como feminista, numa óptica de defesa de direitos, de igualdade, independentemente das diferenças de cada indivíduo. Defino-me desta forma: socialista, republicana, laica e feminista. Ser feminista é parte integrante do que eu sou e não posso deixar de me assumir como tal.

Para além da sua mãe, que outros e outras feministas a marcaram e/ou foram fundamentais no seu percurso na área social e de defesa dos Direitos Humanos?

A primeira pessoa que recordo com grande admiração é a Maria de Lourdes Pintasilgo, uma vez que deve ser uma forte referência para todos e todas nós pela forma como pensou os feminismos e as questões das mulheres. Considero que é uma injustiça o país não a reconhecer na dimensão que merece.

Gostaria ainda de referir Maria Antónia Palla, enquanto rosto representativo da luta pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todas as mulheres que estiveram nesta luta são grandes referências, devido ao forte simbolismo que representou este movimento cívico e político: o direito de decidir, o direito à saúde sexual e reprodutiva, o direito a não ser julgada. Na sequência deste movimento, a legislação produzida representou um salto qualitativo no processo de defesa dos direitos das mulheres em Portugal.

Maria do Céu Cunha Rêgo é outra mulher por quem nutro uma enorme admiração, pela sua energia e convicção na área da defesa da igualdade de género. Como tenho tido um percurso muito semelhante ao seu – fui presidente da CITE Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego e sou actualmente Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade –, considero-a também uma referência. Na CITE e nesta Secretaria de Estado, o contributo de Maria do Céu Cunha Rêgo foi imprescindível, sem desmérito de outras pessoas – mulheres e homens – que estiveram à frente desta pasta governamental, como a Elza Pais, a Maria de Belém e o Jorge Lacão.

Admiro, igualmente, todas as mulheres que lutaram pelos seus direitos fundamentais durante a I República no início do século XX. Foi uma luta inspiradora em termos de afirmação feminina em relação a causas tão difíceis para aquele tempo histórico. São mulheres que me marcaram enquanto feminista.

De 2010 a 2013, foi presidente do Departamento Nacional de Mulheres Socialistas. Considera importante a existência, nos partidos políticos, de núcleos destinados às questões de Género e das Mulheres?

Considero fundamental que os partidos possuam estruturas específicas com o objectivo de trabalhar internamente as questões da igualdade de género, quer ao nível das políticas públicas quer ao nível da capacitação das mulheres para a política, tendo em vista o seu fortalecimento neste domínio. Todos os partidos deveriam ter estratégias para a igualdade de género, com a preocupação de aumentar a participação activa das mulheres na resolução dos problemas que existem em todo o país, não só nos grandes centros urbanos, mas também nas zonas mais isoladas de Portugal.

Que medidas o Governo pretende desenvolver ou vir a implementar, tendo em vista a paridade nos órgãos de poder?

Avançámos com uma proposta legislativa que impõe o limiar da paridade nas empresas públicas e nas que estão cotadas em Bolsa. O Governo está ainda a trabalhar num diploma a ser aplicado ao ensino superior e noutro relativo à Administração Pública, pretendendo, neste último caso, ir além dos 33%, visto que o limiar da paridade representa 40%. Apesar de não fazer parte do programa deste Governo, no futuro, gostaria de colocar na agenda política a alteração da Lei da Paridade para este limiar.

Está também em discussão no Parlamento uma proposta do grupo parlamentar do PS, que saudamos, que tem em vista eliminar as excepções à Lei da Paridade, ao nível dos municípios.

Como deputada foi co-autora da proposta instituidora do Dia Nacional contra a Homofobia e Transfobia. Por que considerou fundamental esta proposição?

Quando há discriminações ou outros flagelos, a instituição de dias nacionais ou internacionais ajuda a alertar a sociedade para essas realidades. Em Portugal, já demos passos significativos em matéria de homofobia e transfobia. Contudo, temos um diploma para discussão no Parlamento – sobre identidade de género –, com o que esperamos alargar o âmbito da lei existente, já de si muito avançada. Sabemos que a legislação por si só não muda a sociedade e as mentalidades. Mas é certo que a lei influencia a sociedade e esta influencia a lei; por isso, avançámos com respostas que visam o apoio a vítimas de violência doméstica LGBT, e estamos a trabalhar com entidades tais como a Associação ILGA, bem como em projectos de educação para a cidadania em que pretendemos valorizar a questão dos direitos humanos.

Como descreve a sua experiência enquanto Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego?

Foi uma das experiências mais fantásticas da minha vida. Gostei muito de ser presidente da CITE e considero ter dado o meu contributo numa área muito específica – a de fazer cumprir direitos e melhorar a vida das pessoas, o que tem um valor inestimável. Também o que hoje realizo em termos de políticas públicas visa melhorar a vida das pessoas. Todos queremos ser felizes e, se tivermos os direitos garantidos, poderemos mais facilmente alcançar essa felicidade. Quando assumi a presidência da CITE, a Comissão estava muito desestruturada, pelo que foi muito empolgante e entusiasmante, naquele curto período de nove meses, ter contribuído para a sua organização e visibilidade. Por isso, só tenho boas recordações do trabalho que aí desenvolvi.

Em relação à implementação das quotas com base no sexo nas administrações das empresas, como tem sido o debate junto da comunidade empresarial?

Os parceiros sociais, nomeadamente as organizações patronais, não se têm mostrado muito favoráveis a essa implementação, apesar de demonstrarem compreensão e uma consciencialização quanto à inevitabilidade dessas mudanças. Se bem que não haja uma reacção extremada face ao tema, este não é um assunto simpático para as referidas entidades. Temos porém a preocupação de dar condições para que as empresas se adaptem gradualmente à nova legislação.

Recentemente a ONU aprovou a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Dessa agenda, que objectivos considera fundamentais no quadro da Cidadania e da Igualdade? E que medidas vão ser tomadas tendo em vista a sua concretização em Portugal?

A Agenda 2030 é muito ambiciosa. Todos os Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) são essenciais e se complementam entre si. Na área da Cidadania e da Igualdade, salientaria o ODS 5 (Igualdade de Género) mas também o ODS 3 (Saúde e Bem-estar), que considero prioritários para a igualdade entre homens e mulheres, nomeadamente as temáticas da mortalidade materna, da saúde reprodutiva ou dos casamentos precoces. Neste caso, o papel da educação é fundamental, por ser a via determinante para a mudança. A questão do trabalho digno, defendido no ODS 8, é também basilar, já que a desigualdade no mercado de trabalho é uma questão que preocupa todos os países, desenvolvidos ou não. A desigualdade salarial e o trabalho precário são temas que particularmente interessam às mulheres. A erradicação da pobreza, a satisfação das necessidades básicas ou o desenvolvimento ambiental são outros objectivos que se integram naqueles, pelo que deveremos encará-los de forma transversal. Para os concretizar, deveremos aguardar a definição dos indicadores europeus para os coordenar com os nacionais, a desenvolver pelo Instituto Nacional de Estatística.

Considero necessário que os ODS sejam apropriados por todos, inclusive ao nível local pelos municípios; caso contrário, dificilmente se concretizarão.

O Gabinete da Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade tem desenvolvido inúmeras iniciativas com diversas organizações da sociedade civil que trabalham os diversos tipos de violência de género. Pode falar-nos um pouco sobre estas iniciativas?

Entendo o conceito de cidadania numa lógica de trabalho com as organizações não-governamentais, cuja intervenção valorizo muito, já que agimos em nome de causas, embora em papéis diferentes. Na área da violência, tenho actuado sempre em parceria com entidades locais para melhorar a capacidade de resposta às vítimas, integrando a Saúde, a Educação e a Justiça (associando o Ministério Público, a Medicina Legal, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e a Segurança Social).

Ao longo de uma já vasta carreira política tem trabalhado a problemática da violência doméstica. Qual a sua visão global e crítica sobre a resposta existente em Portugal para a protecção às vítimas/sobreviventes deste crime?

Tenho feito muita reflexão sobre essa área. Deveríamos evitar que as mulheres vítimas de violência tivessem de ser acolhidas em casas de abrigo, porque, deste modo, estamos a vitimizá-las de novo. Quem quer proteger as vítimas não deve retirá-las do seu meio. Ao invés, deve afastar o agressor. Para que isso se concretize, mais importante que alterar a lei, é modificar o paradigma da intervenção.

 Além disso, precisamos de educar para prevenir, na medida em que uma estratégia de Educação para a Cidadania poderá dar-nos mais garantias da diminuição da violência doméstica no futuro. Se tudo decorrer como espero, no próximo ano lectivo, essa estratégia fará parte do currículo dos ensinos básico e secundário. Para a sua prossecução, estamos a trabalhar em consonância com o Ministério da Educação.

Enquanto Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, quais os principais contributos para a mudança social que mais gostaria de implementar?

Primeiro, destacaria a Educação para a Cidadania, que gostaria de deixar já consolidada na escola pública, para que, daqui a dez anos, pudéssemos dizer que essa estratégia produziu efeitos. Eu acredito que a educação é a chave da transformação e considero-a sempre na perspectiva da frase que serve de lema à Agenda 2030 – “Ninguém fica para trás”.

Segundo, gostaria de deixar algum legado no âmbito da comunidade cigana, já que, em Portugal, diversas desigualdades de género estão muito presentes nesse grupo, demasiado discriminado e pouco acarinhado por quem pode tomar decisões. Por isso, gostaria muito de deixar assinalada alguma evolução nessa matéria, nomeadamente a frequência da escola, sobretudo por parte das meninas, porque, mais uma vez, considero que a educação é transformadora. Por outro lado, desejaria melhorar as possibilidades de acesso ao mercado de trabalho e à habitação por parte desta comunidade.

Senhora Secretária de Estado, agradecemos muito a disponibilidade para nos receber.

6 de Janeiro de 2017