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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.37 Lisboa jun. 2017

 

HOMENAGEM

Lembrando a Professora Doutora Virgínia Rau

Iria Gonçalves*

* Professora Jubilada, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.


 

Aluna do primeiro ano do curso de Ciências Históricas e Filosóficas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o meu primeiro contacto – “por ouvir dizer” – com a Professora Doutora Virgínia Rau foi desastroso. A fama de que a Senhora gozava, e que os “veteranos” faziam questão de transmitir aos “caloiros”, era a de alguém quase inacessível, de uma exigência feroz, que infundia terror e de quem era melhor guardar toda a distância possível.

Era o meu primeiro ano e por isso eu não tinha de sofrer, ainda durante algum tempo, os seus rigores. Mas fui pensando neles. Porque, quando escolhi este curso, quando entrei na Faculdade, era já muito claro para mim que o que eu efectivamente queria era estudar Idade Média. E a Senhora era a catedrática de História Medieval! Não podia fugir!

Paciência! Eu estava ali para trabalhar e ia trabalhar mesmo. Não me poderia “chumbar”.

Como sempre, o ano acabou para dar lugar ao seguinte e, na devida altura, matriculei-me no segundo ano. Ia, finalmente, começar a estudar Idade Média e ser aluna da Professora Virgínia Rau. E nada – ou quase nada – daquilo que me tinha sido dito era verdade. A Senhora parecia-me simpática, começava quase sempre as suas aulas com um dito de humor, o que aligeirava tudo e ajudava a dispor bem. Nunca senti o temor que me tinham anunciado “os mais velhos”. E as matérias versadas nas suas aulas abriram-me imensos horizontes, mostraram-me perspectivas de estudo muito estimulantes e consolidaram definitivamente o meu apego – ia a dizer amor – à Idade Média e às suas gentes. Foi só no final do ano que eu verifiquei, ao analisar as pautas de exame das suas duas cadeiras, como uma das características que a fama lhe atribuía era verdadeira: a sua exigência estava ali bem espelhada, pois ninguém conseguira nota superior a 15. E em muitos poucos casos: quatro, em ambas as cadeiras. No entanto, mais tarde, ouvi a Senhora dizer que nunca tivera um curso tão bom como aquele de que eu fizera parte.

No início do meu terceiro ano foi inaugurado o actual edifício da Faculdade de Letras, na Cidade Universitária. Havia, finalmente, as condições necessárias para a criação e funcionamento do Centro de Estudos Históricos, em que a Professora Virgínia Rau pensava há tempos. Um grupo de estudantes do meu curso, do qual eu fazia parte, ofereceu-se para colaborar em quaisquer tarefas que aí fosse necessário levar a cabo. Foi aceite. Tivemos a nosso cargo a organização da biblioteca que se ia formando.

A partir daí começou para alguns de nós – aqueles que queríamos mesmo trabalhar em História – um outro tipo de relação, que comigo se tornou ainda mais próximo a partir da altura em que, no final desse ano, lhe pedi que orientasse a minha dissertação de licenciatura – porque tencionava começar a trabalhar nela bastante cedo – e me sugerisse um tema. Indicou-me a leitura de um códice do Arquivo Municipal de Lisboa – o “Livro primeiro de serviços a el-rei” – como uma boa hipótese para iniciar a pesquisa. Assim foi. Gostei do que li e comecei de imediato a transcrever alguns dos documentos nele contidos. Penso que o meu entusiasmo agradou à Senhora.

Como sua orientanda, com o apoio mais próximo do Professor Oliveira Marques, como colaboradora do Centro de Estudos Históricos, mais tarde como sua assistente, o nosso relacionamento foi-se tornando mais próximo, a desembocar numa sincera amizade. Penso que a conheci bastante bem.

Era uma Senhora nada distante dos seus colaboradores, ao contrário do que soava pelos recantos da casa, mas de uma enorme frontalidade. Por isso, quando alguma coisa ou alguém lhe desagradava, não se coibia de expressar o seu pensamento. E expressava-o perante a pessoa em causa, que poderia então, se fosse o caso, defender-se. Não o fazia escondendo-se ou insinuando. Era esta, porém, uma característica que não agradava a todos, porque não gostamos de ser confrontados com os nossos erros, as nossas deficiências, as nossas ignorâncias. Por isso concitou más vontades.

Em muitas ocasiões se manifestou essa sua característica de frontalidade, acompanhada de grande força. Lembro, por exemplo, que, aquando das greves estudantis da década de 60, numa altura em que a polícia fora chamada pela Faculdade de Direito a intervir dentro do respectivo edifício, a Professora Virgínia Rau, então directora da Faculdade de Letras, mostrou o seu desagrado perante o facto e declarou bem alto: “Enquanto eu for directora desta Faculdade, a polícia não entrará aqui”. E assim foi. Mas, algum tempo depois, a direcção mudou para outras mãos e dentro em pouco a polícia entrava na Faculdade. Com consequências, algumas delas graves, como muitos ainda se recordarão.

No desempenho daquele cargo a Senhora sofreu muitas desilusões, muitos desgostos.

Não era fácil, na altura, o exercício de qualquer poder no feminino.

Tinha um humor muito fino, por vezes bastante subtil. E não raro esse humor se manifestava mais pela maneira como dizia as coisas do que pelas coisas que dizia.

Lembro um caso ocorrido durante as já referidas greves estudantis.

Todos nós, os membros do Centro de Estudos Históricos, reuníamo-nos semanalmente para falarmos dos nossos trabalhos, dos projectos que entretanto desenvolvíamos, do que gostaríamos de fazer. Num desses dias, em plena greve e com a Faculdade ocupada pelos estudantes, tínhamos entrado por uma porta nas traseiras do edifício – a que chamavam “porta da traição” –, que se encontrava desocupada, e dirigíamo-nos ao Centro para a nossa reunião, quando, à entrada do corredor que lhe dava acesso, verificámos que começava rapidamente a constituir-se um grupo destinado a obstruir a passagem. A Senhora ia à frente e não se desviou um milímetro, nem modificou o ritmo do passo. Continuou em frente. Nós seguíamos na sua esteira. Então, quando nos aproximámos, o grupo abriu alas e todos passámos. A Senhora agradeceu. Entrámos no Centro, fechámos a porta. Íamos à nossa reunião. Começámos de imediato a ouvir cantar, em altas vozes, uma canção, não lembro qual. Apenas recordo que não era uma daquelas canções “revolucionárias” que os estudantes costumavam entoar à porta da aula de alguns professores a quem queriam manifestar o seu pouco apreço, mas uma canção anódina, que os meios de comunicação social transmitiam e todos cantavam. Então a Senhora abriu a porta, espreitou para fora e só disse, com toda a amabilidade: “É tão bonita essa canção, mas vocês desafinam tanto!” Ouvimos uma gargalhada colectiva e o grupo dispersou.

Numa altura em que a internacionalização era tão difícil, mormente quando se tratava de alguém – ia a dizer de uma mulher – proveniente de um país tão periférico quanto o nosso, a Professora Virgínia Rau tornou-se internacionalmente conhecida e apreciada. Figuras grandes da medievalística europeia – Michel Mollat, Jacques Heers, Federigo Melis, entre outros – tinham-na em grande apreço e vários foram aqueles que, a seu convite, aqui se deslocaram a fazer conferências, a participar em encontros científicos. O último foi, precisamente, Michel Mollat, que aqui veio abrir as jornadas sobre a pobreza, realizadas em 1972. E foi o último evento científico organizado pela Professora Virgínia Rau. Numa época em que não se valorizavam, como hoje em dia, os projectos internacionais, desenvolveu durante anos, com Federigo Melis, um trabalho sobre as relações entre Portugal e Itália. Numa época em que a história económica era considerada “subversiva”, foi dentro dessas temáticas que trabalhou mais afincadamente, de que são exemplos os seus estudos sobre as feiras, as sesmarias, os mercadores e o comércio ou o sal, entre outros. Trabalhos que ainda actualmente se consultam com muito proveito ou são mesmo, para determinadas temáticas, de leitura obrigatória. Trabalhos que influenciaram outros investigadores, mais jovens, a seguir na mesma senda.

Deixou-nos precocemente, quando ainda muito havia a esperar do seu saber, dos seus ensinamentos, da sua capacidade de dirigir, motivar, abrir horizontes. Deixou um lugar em aberto, difícil de preencher.