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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dic. 2016

 

LEITURAS

Associação de Mulheres Contra a Violência (coord.). (2016). Guia de bolso sobre violência sexual: Para profissionais. Lisboa: EEAGrants – FCG, 36 pp.

Rita Mira*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – NOVA, Faces de Eva- Estudos sobre a Mulher

mira.rita@gmail.com


 

Guia de bolso sobre violência sexual: Para profissionais é uma publicação elaborada por um conjunto de entidades, públicas e privadas, que intervêm, directa ou indirectamente, no combate à violência sexual contra mulheres em Portugal: Associação de Mulheres Contra a Violência, Associação O Ninho, Câmara Municipal de Lisboa, Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, Direção-Geral da Saúde e Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna.  

Partindo da necessidade emergente da existência de uma resposta de protecção de qualidade às vítimas/sobreviventes de violência sexual no nosso país, esta parceria criou este Guia de bolso, no contexto do projecto denominado “Novos Desafios no Combate à Violência Sexual”, desenvolvido ao abrigo do Programa Cidadania Ativa, gerido pela Fundação Calouste Gulbenkian através do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu (EEA Grants).

Em Portugal, não existem serviços de apoio especializados a sobreviventes na área da violência sexual, nomeadamente os Rape Crisis Centres, tal como definido nas recomendações do Conselho da Europa, de 2008, que indicam que deveria existir pelo menos um Centro Especializado em violência sexual por cada 200 000 mulheres (p. 16).

Para a elaboração deste Guia, a parceria contou com os contributos de mulheres vítimas/sobreviventes de violência sexual, nomeadamente através da participação do Hipátia – Grupo de Mulheres Auto-Representantes, dando “voz à (sua) perspetiva única” (p. 5).

A invisibilidade dos crimes de violência sexual, a insuficiência de políticas nacionais e de legislação adequadas e a ausência de respostas especializadas em Portugal nesta área foram o mote para a construção deste Guia, sistematizando e disseminando um modelo de intervenção e de protecção das vítimas/sobreviventes de violência sexual, tendo em vista o desenvolvimento de respostas eficazes às suas necessidades e empowerment.

Dirigido sobretudo a profissionais, o Guia constitui essencialmente uma ferramenta de trabalho, disponibilizando informação prática sobre “standards mínimos de procedimentos comuns, bem como informação sobre recursos e serviços para uma intervenção multidisciplinar, coerente e articulada, para a Cidade de Lisboa” (p. 5). A segurança e a protecção das vítimas/sobreviventes são os principais objectivos da intervenção, procurando prevenir a sua revitimização e culpabilização.

Ao abrigo do slogan “não é sexo, é violência sexual, é crime”, este Guia aborda a violência sexual como uma grave violação de Direitos Humanos e uma das formas de violência de género, fundada na desigualdade de poder – social, cultural, económico, simbólico – entre mulheres e homens. Tendo por base uma perspectiva feminista, defende que “a violência sexual não é um crime motivado por desejo sexual, mas sim pela vontade de controlar e exercer poder sobre a vítima, de a humilhar e magoar” (p. 13), dando enfoque às questões de género inerentes a este tipo de crime.

O Guia encontra-se estruturado por quinze fichas temáticas, contemplando cada uma informações-chave para um conhecimento aprofundado sobre a problemática da violência sexual, tendo a maior parte destas fichas um carácter transversal a todos/as os/as profissionais, existindo apenas três com informações específicas relacionadas com a violência sexual contra crianças e com a actuação da saúde e da medicina legal.

A primeira ficha temática é dedicada aos “factos sobre violência sexual”, apresentando alguns dados estatísticos sobre a sua prevalência em termos internacionais e nacionais: “35,6% das mulheres em todo o mundo foram vítimas de algum tipo de violência sexual” e em Portugal, em 2014, “foram feitas 374 queixas do crime de violação” (p. 8). A maioria das vítimas é do sexo feminino (92,2%) e a maioria dos agressores do sexo masculino (98%), sendo um crime “perpetrado maioritariamente por familiares e conhecidos” (p. 8), o que contraria a ideia preconcebida ainda comum de que a violação é cometida por desconhecidos. Pretendendo desconstruir outros mitos e estereótipos ainda existentes, esta publicação defende que a “violência sexual pode ocorrer em todas as sociedades e estratos sociais e podem ser vítimas pessoas de todas as idades, sexo, orientações sexuais, profissões, religiões, raças e etnias” (p. 7).

Tratando-se de um crime, o conhecimento, por parte dos/as profissionais, dos dispositivos legais existentes é fundamental. Seguem-se, por isso, duas fichas acerca do enquadramento jurídico e dos procedimentos legais, dando especial enfoque aos direitos das vítimas/sobreviventes, e de como “receber o ‘Estatuto’ de vítima especialmente vulnerável” e “solicitar medidas de proteção” (p. 12).

A ficha seguinte salienta que a violência sexual tem um impacto único e significativo em diversas áreas, nomeadamente na saúde – física, sexual, reprodutiva e mental – e relacional – relações íntimas, familiares, sociais e profissionais. Cada vítima/sobrevivente reage e lida com o trauma de uma forma específica, “dependendo de um grande número de variáveis tais como: cultura, religião, meio onde vive, existência ou não de uma de rede de apoio, capacidade de resiliência, entre outras” (p. 13).

A complexidade e a gravidade da violência sexual implicam o reconhecimento de que não é possível lidar eficazmente de forma isolada, sendo essencial desenvolver uma resposta coordenada e integrada, numa óptica de trabalho multidisciplinar e em parceria, apresentando, por isso, uma ficha sobre a intervenção em rede (p. 15).

O processo de apoio e de suporte a vítimas/sobreviventes de violência sexual deve preconizar, de forma clara e proativa, uma abordagem centrada nas suas necessidades individuais e na defesa dos seus Direitos Humanos – Dignidade, Liberdade, Saúde, Vida, Segurança, Autonomia. Assim sendo, a defesa de direitos é um dos princípios éticos de intervenção, minimizando o seu impacto e contribuindo para o processo de recovery das vítimas/sobreviventes. A segurança, o respeito, a confidencialidade, o empowerment e a cooperação são outros princípios-chave que devem nortear a prática profissional, podendo “fazer toda a diferença no processo de lidar, recuperar e superar o trauma por parte das vítimas” (p. 17).

Procedimentos associados ao processo de apoio às vítimas/sobreviventes estão presentes em três fichas temáticas, devendo o mesmo ser realizado “por profissionais com formação especializada” (p. 21). A avaliação e a gestão de risco constituem um procedimento central, procurando ir ao encontro das necessidades de segurança situacional das vítimas/sobreviventes.

A violência sexual contra as crianças apresenta especificidades, exigindo uma intervenção especializada, nomeadamente no que diz respeito à realização da entrevista, que deverá decorrer “em ambiente calmo, empático e seguro”, “com material lúdico-pedagógico que a ajude (à criança) a expressar-se” e utilizando uma “linguagem adequada à idade e ao desenvolvimento” da mesma (p. 26).

A actuação dos serviços de saúde e de medicina legal é abordada em duas fichas específicas, devendo ambas ser centradas nos direitos e na protecção de cada vítima/sobrevivente, respeitando o princípio essencial do consentimento informado.

Finalmente, o Guia de bolso apresenta um fluxograma de intervenção, uma lista de recursos, bem como bibliografia.

Esta publicação é, acima de tudo, um recurso importante para os/as profissionais que trabalham na área da violência sexual, pretendendo orientar a sua prática de acordo com um referencial de qualidade, centrado no que é mais importante na sua intervenção: a vítima/sobrevivente de violência sexual e o seu processo de recuperação.