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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dez. 2016

 

ESTUDOS

Revista Os Nossos Filhos: resistência e oposição ao Estado Novo – Um olhar sobre as ligações sociais e profissionais da sua autora

Ana Maria Pessoa*

*Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação

ana.pessoa@ese.ips.pt


 

RESUMO

O presente texto analisa Os Nossos Filhos (1942-1958) e defende que esta revista de educação feminina deve ser vista como uma publicação produzida num contexto de oposição e de resistência ao Estado Novo. Nela se defende um programa de educação para as mães e as crianças alternativo ao que era plasmado nas revistas que o regime apoiava.

Palavras-chave: imprensa feminina; educação feminina; oposição política século XX; Maria Lúcia Namorado.


 

ABSTRACT

This study analyzes Os Nossos Filhos (1942-1958) and supports the thesis that this feminine magazine must be seen as a political resistance programme, in opposition to the one defined by the Estado Novo (political Portuguese period 1933-1974). It describes an alternative educational curriculum for mothers and children very different from the one this political regime used to support and to impose.

Keywords: women press; women education; political opposition – 20th century; Maria Lúcia Namorado.


 

A revista Os Nossos Filhos (205 números, com periodicidade mensal entre 1942 e 1958 e anual até 1964) foi objeto de análise parcial, na dissertação de mestrado de Ana Maria Borges (2003). Aí, como em textos posteriores, foi colocada no conjunto das revistas ditas femininas e sobretudo de educação feminina ou familiar, publicadas durante o Estado Novo. Em 2006, numa tese de doutoramento, defendi que a referida revista deveria ser vista como uma proposta sistematizadora de educação das mães e das crianças, num contexto de oposição e de resistência a esse mesmo regime. Deveria ser lida também como uma das muitas formas de que se metamorfoseou aquele processo, uma vez que na revista se apresentava um programa de vida e de educação feminina idêntico, mas por vezes também alternativo, ao do regime, de fora das organizações oficiais como a Obra das Mães para a Educação Nacional. Este artigo pretende contribuir para esclarecer a hipótese enunciada no título.

Refiro que, para identificar as propostas pedagógicas contidas nesta publicação, além de todos os artigos da revista, perlustrei diversas fontes escritas, fontes primárias (os 205 números da revista) e secundárias, assim como inúmeros documentos (não) oficiais, brochuras e outras publicações periódicas como os jornais onde a diretora da revista colaborou – por exemplo, Notícias de Penacova (1932) ou Diário de Lisboa (anos 60 do séc. XX) ­– e diversas monografias (da diretora e de colaboradoras da revista), iconografia (fotografias do Espólio de Maria Lúcia Namorado) e fontes orais (cerca de 70 entrevistas feitas a diversos(as) colaboradoras(es) da revista, então ainda vivas(os)).

Para redefinir o contexto da revista Os Nossos Filhos (ONF), foi fundamental, como utensilagem teórica, a tese de Vanda Gorjão (2002), única referência então existente especificamente sobre as mulheres e a oposição1 ao Estado Novo.

Dediquei, ainda, cuidada atenção à identificação e definição dos dois conceitos utilizados: os de oposição e de resistência, no caso particular articulando-os com o de Estado Novo. Parti da hipótese de que ( ... ) na sociedade portuguesa ( ... ) não havia uma só ideologia – a do Estado Novo e da Igreja – relativamente às mulheres e, ao contrário do mito espalhado pelo regime de que todos os portugueses pensavam da mesma forma e do outro mito espalhado pela oposição de que a ditadura era omnipresente, houve sempre espaços que foram aproveitados para o exercício de uma liberdade relativa ( ... ). (Pimentel, 2000, p. 210)

Para além de muitas outras formas de que se revestiu a sua resistência, Maria Lúcia Vassalo Namorado (MLN), prima de Maria Lamas (1893-1983), era filiada nas duas organizações femininas vistas como hostis pelo/ao Estado Novo (Gorjão, 1994): o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP) e a Associação Feminina Portuguesa para a Paz (AFPP). Foi também subscritora das listas do Movimento de Unidade Democrática (MUD) em 1945. Usando o espaço de liberdade relativa acima identificado, também ela quis agrupar as mulheres e “( ... ) actuou entre elas de forma independente com um programa autónomo e uma direcção feminina própria ( ... )” (Pimentel, 2000, p. 10).

No período de nove décadas em que viveu, oriunda de uma família republicana tradicional e sempre estimulada pela prima, cedo começou a trabalhar, de modo discreto e moderado, na área da educação. Em outras atividades anteriores mas, sobretudo, na sua atividade profissional como diretora de ONF, preconiza um afastamento face ao regime e aproxima-se inequivocamente da oposição e da resistência. Por essa razão, a revista não consegue sobreviver no período do “endurecimento do regime entre 1961 e 1968” (Rosas, 2004, p. 8), sendo suspensa em 1958 e agonizando, com números apenas anuais, até 1964.

No que diz respeito à educação, quer nas suas primeiras publicações, quer na revista, e ainda depois do fecho desse projeto, Maria Lúcia Namorado defende muitos dos valores de uma educação que hoje classificamos de republicana (Carvalho, 1986).

Não sendo possível, neste artigo, enunciar todas as premissas que permitem defender a ligação da autora à oposição e à resistência ainda antes do período entre 1942 e 1958, veja-se como podem ser identificadas as opções profissionais e políticas que a aproximam, e sobretudo as que a afastam, da corrente de pensamento que aceitava, sem reservas, os princípios do Estado Novo. MLN está consciente dos problemas que a oposição enfrenta, sabe que a prima Maria Lamas tem uma vida empenhada e agitada e ela própria segue atentamente a evolução política e repressiva do regime. Tendo conhecimento de que, no verão de 1945, a oposição tenta um novo golpe liderado por Norton de Matos, no qual também participa João Soares, pai de Mário Soares (Raimundo, 2003), tal facto não a impede de, por mais de uma vez, referir o Colégio Moderno na revista de que é diretora. Nesse mesmo ano, nasce o MUD, cujas listas fundadoras subscreve.

Como diretora da revista (iniciativa que Maria Lamas não apoia mas na qual participa) tem a colaboração de inúmeras mulheres e homens com ligações ao regime, hoje, e já então, conotadas(os) com a resistência, e mesmo com a oposição, como Maria Palmira Tito de Morais, Maria Isabel César Anjo, Lília da Fonseca, Maria da Luz Albuquerque, Alice Vieira, Mário Castrim (com pseudónimo de Lúcia Benedita) entre muitas(os) outras(os). A Editorial ONF, de que foi diretora, editora, redatora e administradora, vai publicar alguns dos livros então pouco aconselhados para crianças, como os de Maria Isabel César Anjo ou de Matilde Rosa Araújo…

Das entrevistas feitas a diversas dessas senhoras ou familiares próximos, como Maria Cândida Caeiro, Isabel César Anjo, Leonoreta Leitão, Maria Isabel Mendonça Soares e Alice Vieira, fui recolhendo quer documentos materiais quer informações que me permitiram confirmar a teia de relações pessoais, afetivas e profissionais de MLN, sobretudo na área da resistência ao Estado Novo.

Essa teia conota-a com a resistência e oposição e interfere na sua atividade pessoal e profissional. A título de exemplo, refira-se que foi secretária da Assembleia-geral do CNMP, sob a presidência de Maria Lamas, pertenceu à Secção Portuguesa de Educação pela Arte, no tempo de Alice Gomes (irmã de Soeiro Pereira Gomes), e foi membro da Secção Portuguesa de IBBY – International Board on Books for Young People (integrando o grupo de leitura e classificação de livros para crianças publicados em Portugal) no tempo de Lília da Fonseca (pseudónimo de Maria Lígia Severino); participou ainda na Campanha de Alfabetização de Adultos, promovida por Helena Cidade Moura após a revolução em 1974, e foi sócia fundadora do Instituto de Apoio à Criança, no tempo de Manuela Eanes.

Como editora, planeou, dirigiu e editou, na coleção “Os Livros da Grande Roda”, livros de sua autoria, bem como de Irene Lisboa, de Raquel Delgado e de Maria Isabel César Anjo – desta última, A Primavera, O Verão, O Outono e O Inverno…, com ilustrações de Maria Keil. Escreveu, para crianças, A história do pintainho amarelo (sobre a reabilitação de cegos), ilustrado por Maria Keil, e, como conferencista, fez e publicou: Breves considerações sobre o valor pedagógico e social dos Jardins Escola João de Deus; Mensagem de Helen Keller e Fundação Sain e a reabilitação das pessoas cegas em Portugal. Traduziu ainda Problemas quotidianos de Educação, de Irene Lèzine, assim como Jean qui grogne et Jean qui rit (tradução erradamente atribuída a Maria Lamas).

A revista foi lugar de um discurso pedagógico sistematizado, por vezes idêntico mas muitas vezes também divergente do que era difundido pelas organizações vocacionadas para a educação feminina no Estado Novo. A revista ONF e a Editorial que fundou com a mesma designação, com sede em Lisboa, na Rua Almeida e Sousa 25, 2.º Esq., foram um meio de sobrevivência económica de MLN, mas, simultaneamente, um espaço onde muitas pessoas, por motivos políticos, puderam expressar a sua opinião/saber.

A revista teve uma única funcionária, Maria Helena Rosa Torres Peres Seixas, que terminara, em 1941, o Curso de Bordados e Rendas e fora aluna de Maria Clementina Carneiro de Moura, na Escola Machado de Castro. Mais tarde filiada no PCP, esta funcionária foi sócia do CNMP, ali entrando pela mão da diretora da revista.

O apelo à participação das(os) leitoras(es) era frequente e até crianças filhas de opositoras(es) ao regime, a partir de 1953, viram textos publicados como, entre muitas(os) outras(os), Pitum Keil do Amaral (nov. 1953) e Maria Lyra Pereira.

Algumas mulheres colaboradoras de Modas & Bordados também publicam em ONF e pertencem ao CNMP: Emília Sousa Costa, Sara Beirão, Elina Guimarães, Branca de Gonta Colaço e Maria Lamas. Esta última, quando, em 11 de julho de 1945, se torna presidente daquele órgão, por proposta de MLN, leva algumas dessas colaboradoras para o Conselho (Guimarães, 2002). Estão ainda nesse grupo outras colaboradoras da revista como Julieta Ferrão, Adelaide Bramão, Alice Ogando e Judith Maggiolly.

Tal como em Modas & Bordados, também em Os Nossos Filhos se detetam sensibilidades diferentes, do ponto de vista ideológico: há colaboradoras empenhadas com o regime, como Judite Furtado Coelho (que fora professora de MLN no Liceu Almeida Garrett e orientava as leitoras sobre Educação Física), mas também ali escrevem Maria Carolina Ramos, Branca Rumina, Sara Benoliel, Maria de Carvalho, Ilse Losa, Manuela Porto, Maria Palmira Tito de Morais e muitas outras. MLN terá contactado Rui Grácio para este escrever, na revista, sobre o problema da literatura infantil, apresentando-se este como “colaborador amigo sempre ao seu dispor” (Caixa 42. Maço 2).

Como exemplo de colaboradora convidada está, em carta de 22 de março de 1943, Elina Guimarães que agradece o convite que a diretora da revista lhe endereça para ali escrever2, aceitando e afirmando:

( ... ) muito agradeço desvanecedora carta ( ... ) a quem admiro através da sua nobilíssima obra. Tenho seguido com o maior interesse a revista ( ... ) e considero como uma honra e um prazer colaborar nela fazendo partilhar as outras mais do meu pequeno cabedal de experiência prática e estudos teóricos ( ... ). (Caixa 41. Maço 3)

Convidadas(os) a colaborar foram ainda Eduardo Antunes Gajeiro, fotógrafo (Caixa 41. Maço 3), e Claro do Prado (pseudónimo de Eduarda Mattos), a quem, por intermédio de Fernando Pessa, a diretora de ONF convidou para correspondente em Londres (Caixa 47. Maço 3).

Irene Lisboa havia recusado inicialmente a colaboração por falta de tempo, como se confirma em carta que a pedagoga envia a MLN: “( ... ) muito me penhora o seu convite mas lamento não ter tempo disponível para lhe corresponder como deseja. Suponho, no entanto, que V. Ex.ª poderá encontrar, além das muitas colaboradoras ilustres e interessantes que já tem, outras, entre os literatos, pedagogos e artistas portugueses que há. Que seja bem sucedida como aliás, a sua obra merece e carece ( ... )” (Caixa 41. Maço 1). Mais tarde muda de opinião e impõe condições para a publicação dos seus artigos: “( ... ) não os poderei ilustrar e ( ... ) devem ser publicados em números seguidos, sem fraccionamentos nem distâncias e que o preço a pagar de cada artigo seja de 100$00 escudos, preço que considero ainda baixo ( ... )” (Caixa 47. Maço 3). Outra das condições era não assinar, ao que a diretora da revista respondeu: “a senhora assina como puder e (Irene Lisboa) começou a mandar colaboração com anagrama ( ... ) e com um nome diferente Carlos Taveira, um nome que não era conhecido de ninguém ( ... )” (Borges, 2003, p. 212).

Destas(es) colaboradoras(es), pagas à peça, têm remuneração sistemática Maria Palmira Tito de Morais, Adriana Rodrigues (mãe de José Barata Moura), Isaura Correia Santos, e médicos como Ferreira de Mira e João Farmhouse, assim como Maria Alda Nogueira, conhecida ativista e oposicionista do/ao regime vigente, e ainda Maria Lamas.

A publicação segue uma linha republicana liberal, embora, sobretudo após finais da década de 40 e toda a década de 50, se perceba uma orientação indiscutivelmente de oposição e resistência, como prova a referência a alguns dados biográficos de muitas(os) colaboradoras(es). Neste grupo de colaboradoras(es) remuneradas(os) e frequentes, vejam-se, por exemplo, Maria Borges (ou Maria Amália Borges de Medeiros), que chegou a assinar o “Correio dos pais” (dez. 1956), Maria Palmira Tito de Morais (que fundou em 1939, com Maria Monjardino, o Centro de Saúde de Lisboa, sempre apresentado como um Centro modelo na revista, e onde trabalhou até 1949), ou ainda Alda Nogueira (Borges, 2003).

Das relações familiares e pessoais de MLN faziam parte outras(os) colaboradoras(es) da revista como Mário Castrim, António Emílio de Magalhães (crítico da situação dentro do regime), Maria Luísa Manso (professora de piano do filho mais novo da diretora da revista), Matilde Rosa Araújo (aluna da escola primária de Joana Vassalo, irmã de Maria Lamas, e que conhecera MLN muito nova). A mãe desta escritora, Cármen Ribeiro Lopes de Araújo, foi também assinante da revista. Nestas relações de amizade, encontram-se ainda Lucinda Atalaia, então diretora do Jardim-Escola João de Deus, e Lília da Fonseca, feminista assumida; estas duas mulheres, bem como as já referidas Alice Gomes, Madalena Gomes e Maria José Estanco, ficarão amigas até ao fim da vida.

Ao longo dos dezasseis anos de vigência da revista várias foram as personagens, geralmente colaboradores(as), cuja nota necrológica foi feita nas suas páginas. Destas, há duas sobre a mesma colaboradora: Manuela Porto, do CNMP e amiga pessoal de MLN. A primeira foi publicada no mês seguinte ao da sua morte (ago. 1950); um ano depois, a revista refere a homenagem póstuma que a AFPP promovera a 24 de abril, data do aniversário da homenageada. Houve o descerrar de uma placa no cemitério do Lumiar e, à noite, no Museu João de Deus, música com a pianista Maria da Graça Amado da Cunha e um grupo coral. Usaram da palavra a jornalista Lília da Fonseca e o compositor Fernando Lopes Graça, e Maria Barroso disse duas poesias (maio 1951).

Em meados dos anos 40, sempre numa perspetiva muito crítica, a revista publicou inúmeros artigos sobre a guerra e as suas consequências. São publicados mais de duzentos pequenos artigos, citações na forma de pequenas frases para meditar e textos sobre diversas iniciativas, da autoria de colaboradores(as) estrangeiros(as). Muitas vezes é neles que se encontra o que no país não se podia dizer, devido à censura. Os textos da diretora sobre o que se passava no estrangeiro são pequenas notas retiradas de publicações de referência, muitas das quais identificadas como fontes. Tal como nos temas da área política, também nos de educação a revista não só tentava mostrar, dando o exemplo do exterior, o que propunha na sua revista como aproveitava para evidenciar aspetos que, no quotidiano nacional, estavam arredados das conversas.

Sobre a vida em Inglaterra, a colaboradora Anália Torres, fingindo ter recebido cartas de uma portuguesa, pretende provar que naquele país, mesmo com a guerra, era menos difícil a vida das mulheres trabalhadoras (ago. 1951). Sobre a Suécia encontram-se artigos de J. Beltrão Coelho e Ilse Losa (fev. 1951), e, sobre o quotidiano das mulheres belgas, escreveu Emília Gomes Bação Leal (mar. 1948). Maria Luísa Manso escreveu sobre educação musical quando, em Londres, fez uma série de conferências na BBC, sobre analfabetismo musical (abr.-jun. 1950). Cecília Rey Colaço Menano (dez.-fev. 1951) deixou o seu testemunho sobre educação no estrangeiro, a partir de um conjunto de notas de viagem tomadas aquando da sua ida à Suíça. Nesta abordagem à colaboração estrangeira, referem-se outras(os) articulistas: entre junho e outubro de 1948 publicaram-se artigos a propósito de uma palestra sobre a educação no México, destacando a forma como fora conduzida a Campanha Nacional do Analfabetismo, como se haviam organizado as “equipas para dar apoio nos acidentes de trabalho”, como se viam os jardins infantis e como se organizara o ensino técnico (out. 1948). Posteriormente, a partir de um artigo no semanário Expresso (Cruz, 2005), foi-me possível identificar a palestrante:Maria Luiza Bosques, do Unitarian Service Committee. Tratava-se da mulher do embaixador do México em Portugal, Gilberto Bosques, que chegara “a Lisboa em Fevereiro de 1946 e trazia a missão de salvar republicanos espanhóis em fuga. Conseguiu-o graças a um insólito pacto estabelecido com Salazar, que assim traía o acordo assinado com Franco ( ... ) em 17 de Março de 1939” (Cruz, 2005). O embaixador, acompanhado da família, depois de “terem sido presos pelos nazis em França e a seguir deportados para a Alemanha durante um ano, ”, chegou a Lisboa com aquela missão e conseguiu realizar os seus propósitos. Os refugiados chegados à capital eram encaminhados para “Maria Oppenheimer ligada ao Unitarian Service Committee. O embaixador só terminou a sua missão em Lisboa ( ... ) em 23 de Janeiro de 1950” (Cruz, 2005). Maria Oppenheimer, com ficha na PIDE, foi autora de algumas citações, avulso, colocadas nestes números da revista.

Como todas as publicações, ONF era visada pela Comissão de Censura, à qual MLN tinha um enorme pavor, pois não podia imaginar o que seria a sua vida pessoal se lhe suspendessem ou a impedissem de publicar a revista. Apesar disso, não se coibia de publicar muitos artigos de autoras(es) com relações menos cordiais com tal entidade…

A identificação de autores(as) através de iniciais, acrónimos, nomes de solteira(s), pseudónimos femininos (por colaboradores) ou masculinos (por senhoras), ou mesmo a utilização de mais do que um pseudónimo para a mesma pessoa foram estratégias que dificultaram uma mais rápida identificação de algumas(uns) colaboradores(as) por parte da censura. O uso de pseudónimos é um recurso frequente e é o que faz Maria Palmira Tito de Morais num livro de culinária3 frequentemente anunciado em ONF, quando assina Blandimar. Quando, por motivos políticos, esta colaboradora, cujos textos são anónimos e foram republicados, deixou de poder assinar o que escrevia, usou outras identificações como Maria da Graça (jan. 1947) e Uma Puericultora (mar. 1947).

Algumas colaboradoras, conotadas com a oposição, também usaram pseudónimos para poderem escrever com mais de uma intervenção no mesmo número ou em números diversos, destacando-se a Professorinha de aldeia (Isabel César Anjo), Airina (Irene Lisboa), Carlos Taveira (Irene Lisboa), Rosa Silvestre (Maria Lamas), Suzana Pobre e S. (Maria do Carmo Rodrigues, escritora e diretora de A Canoa, em 1952), Aprendiz de educadora (Madalena Pires, da Associação Portuguesa de Surdos), Uma mãe agradecida (Maria da Natividade Pinheiro Correia, do CNMP de Coimbra), Ana Marcus (Ilse Losa), Maria Valverde Porto (Emília de Sousa Costa), Ana Maria (Guida Ottolini), Maria Paula de Azevedo (Iracema Folque do Souto) e Mitza (Maria Teresa G. de Andrade Santos, de O Beiral).

Usando vários pseudónimos e explicando ou não a razão de ser de cada um deles, existe um caso paradigmático: o de Lúcia Benedita (para poemas para crianças), um dos muitos pseudónimos com que Mário Castrim4 ali escreve. Para este colaborador, amigo de Matilde Rosa Araújo, foi possível identificar ainda outros pseudónimos: Manuel da Fonseca, Manuel Nunes da Fonseca, Manuel Agra, Maria Manuela Nunes e ainda Realejo.

Algumas colaboradoras usam pseudónimos masculinos, como Luís, que é Maria da Luz Albuquerque, do CNMP. Esta colaboradora, que usa ainda o pseudónimo Clara, com artigos cortados pela censura, teve um processo disciplinar e, em carta de 14 de março de 1946, pede: “( ... ) Se por acaso procurarem V. Exa. para que diga se colaboro em Os Nossos Filhos, não poderá V. Exa. negar? É este favor que lhe peço – podendo ser – e o qual desde já agradeço ( ... )” (Caixa 46. Maço 4).

Com iniciais ou acrónimos escrevem, entre muitas(os) outras(os) M.C.C. e M.C. (Maria Cesarina de Castro, dez. 1947 e fev. 1948) e F.B. (Francine Benoît, jun. 1955). Se os pseudónimos dão importantes informações sobre as pessoas que colaboraram na revista, as imagens e as fotografias publicadas revelam muitas das amizades, favores e redes de relações, muitas e muitos da oposição ao Estado Novo.

As fotografias têm local privilegiado na capa, à qual se seguem, por ordem de importância, as que são usadas para ilustrar os artigos e a contracapa. Apesar de nunca ter tido esse estatuto, o fotógrafo oficial da revista foi Casimiro Vinagre (avô do fotógrafo Walter Vinagre), uma vez que, em 205 números, 122 fotografias de capa são da sua autoria. Menciono ainda outras colaborações como as de Júlio Pomar, com um desenho (1953) e uma ilustração (1958) num texto sobre Natal, e Eduardo Gajeiro, com a reprodução de quatro fotografias da sua autoria.

Ao longo dos 205 números da revista apenas quatro5, todos posteriores a 1955, têm na capa6 reproduções de figuras da iconografia católica. Outra área em que se percebe a opção de resistência de ONF refere-se às imagens que nela são incluídas e que também fazem parte do arquivo de MLN. Cruzada a informação que nelas nos é dada com as cartas enviadas à diretora da revista, podem identificar-se muitas outras redes de amizades, pedidos, ofertas, dados da biografia da própria pedagogista, assim como temas de resistência ao Estado Novo, análise que seria assunto para outro artigo.

A Flama, revista que inicia a sua publicação em 1944, é a única que tem, à época, um aspeto gráfico semelhante ao da ONF, com a chamada de crianças à capa, mas também de adultos, sobretudo do sexo feminino. A revista ONF, por ter uma capa com três campos a vermelho, ou seja, uma parte ocupada com o título da publicação, outra com uma imagem e outra com informações como complemento de título, em rodapé, foi conotada com certos grupos religiosos e políticos, chegando a correr o boato de “que a revista era de protestantes mas ela (MLN) não queria que a revista fosse vista como política e/ou religiosa” (Seixas, entrevista, 11 jan. 2005).

Além de fotografias, a revista publicou também desenhos. Como colaboradoras(es) que desenharam expressamente para ali publicar, são exemplo: Fernando Carlos (genro de Maria Lamas, que também ilustrou Modas & Bordados), Maria Keil (que se ocupa da resposta a leitoras que pretendem remodelar a casa) e Vera Bordallo Pinheiro Vaz Gomes. Desenhos que as crianças realizaram para uma das iniciativas da revista – a Exposição Portugal visto pelas suas crianças – foram também usados para ilustrar alguns artigos, como é o caso do primeiro texto de Rui Grácio (ago. 1957).

Uma forma de chegar a mais leitoras(es), foi pedir às(aos) assinantes que angariassem outras(os). A assinante que obteve o prémio anual de 1956 (um conjunto de discos) foi Dulce Barroso Morais e Castro (mãe do futuro ator Morais e Castro), que os ofereceu à “Liga Portuguesa dos Deficientes Motores para serem leiloados a favor das crianças paralíticas” (fev. 1957).

Distribuidores de Os Nossos Filhos, e assim designados, identificam-se, desde o início, a Livraria Bertrand e a empresa Publicações Europa-América, fundada em 1945, por Francisco Lyon de Castro, um outro crítico do regime vigente que detém a distribuição exclusiva da revista para o Brasil. Um outro aspeto das relações com opositores(as) e com a resistência ao Estado Novo é o da publicação e distribuição da revista fora de Portugal. Depois do final da II Guerra Mundial, MLN teve a ideia de publicar ONF também no Brasil. Em 1946, Maria Luísa Silva Neves7, que conhecia Saudade Cortesão assim como Judite Cortesão e Agostinho da Silva, ocupou-se do lançamento da revista no Rio de Janeiro. Em carta posterior, indicou Saudade Cortesão como “futura representante de Os Nossos Filhos” naquela cidade (Caixa 31. Maço 2). Devido a problemas vários, essa situação não se concretizou e, entre setembro de 1948 e agosto de1949, a referida distribuição regressou às Publicações Europa-América.

Muitos foram os concursos promovidos pela revista Os Nossos Filhos. Alguns, como Erros Educativos, repetiram-se, mais tarde, no Diário de Lisboa. Uns destinavam-se às crianças e outros, às mães ou às(aos) educadoras(es) e neles participaram, como concorrentes, muitas senhoras da oposição e da resistência ao Estado Novo. Naquele grupo inclui-se o concurso Um acontecimento da minha vida (jul. 1951), imaginado por Ilse Losa para colmatar a má aceitação, pelo regime, da coleção de livros 7 Léguas, que a escritora dirigia (Caixa 41. Maço 1).

Além dos concursos promovidos para as crianças, houve outros especificamente para as mães assinantes de ONF. Estão neste conjunto e foram ali publicados o Grande Concurso das Mães (maio 1944), Concurso dos erros educativos (set. 1946-nov. 1947), Concurso Literário (dez. 1948 e 1949), Conto infantil (com júri composto por Manuela Porto, Lília da Fonseca e diretora da revista), Saber um poucochinho mais: Secção cultural dirigida por Matilde Rosa Araújo (maio 1952), Se eu tivesse uma varinha de condão… (jul. 1955), Conheça os seus alunos (mar. 1958) e Vamos dar um bocadinho de alegria às Crianças deficientes! (ago. 1958).

 Da leitura destes dados verifica-se que, dos vinte e cinco concursos realizados entre maio de 1944 e agosto de 1958, muitos se podem considerar relevantes para este tema da resistência ou oposição ao Estado Novo. O conteúdo do concurso Erros educativos, sobre o que se considera ‘errado’ em educação, será plasmado por César Anjo, em 1953, quando publica no Porto, nas Edições Saber, o livro de quase duzentas páginas a que dará o título: Erros de Educação (Anjo, 1953. 9-11), onde defende princípios educativos como a coeducação ou a educação sexual, temas à data arredados das preocupações do sistema.

O Concurso dos casos, lançado em agosto de 1950, tivera como júri três elementos, mas devido, ao falecimento de Manuela Porto, passa a ter apenas dois Lília da Fonseca e a diretora da revista.

O concurso Se eu tivesse uma varinha de condão8,iniciado em julho de 1955, destinava-se a professoras que quisessem enviar os trabalhos dos(as) seus(suas) alunos(as) e foi uma iniciativa que se estendeu por muitos números da revista. A ideia desta atividade surgiu depois de a professora primária Maria Olegário Mendes, professora em Peniche, irmã de outra colaboradora, Maria de Jesus Mateus de Oliveira Mendes, ter lido na aula o poema As Fadas de Antero de Quental e de ter pedido às(aos) alunas(os) um texto intitulado Se eu tivesse uma varinha de condão… (jun., ago. e set. 1955). Muitas professoras enviaram redações para esta iniciativa, estando, entre elas, Irene Carolina Fernandes, de Valpaço (Trás-os-Montes), Maria João Allen de Vasconcelos, da Escola Ave Maria, de Lisboa, Ema Quintas Alves (ativista política, impedida de lecionar no ensino oficial), do Liceu Francês, de Lisboa, assim como Zezinha de Évora, neta de Maria Lamas, que enviou o seu depoimento diretamente para a revista (jan. 1956).

Deste trabalho de Maria Olegário Mendes, em sala de aula, MLN retirou a ideia de fazer um concurso maior: para isso, republicou a poesia de Antero de Quental e pediu às professoras para lhe fazerem chegar os resultados de tal inquérito. Dirá: “Em Lisboa ( ... ) a nossa colaboradora Lucinda Atalaia ( ... ) chamou a si o encargo de recolher os depoimentos das crianças de Lisboa. Já ouviu 500 ( ... ) e o inquérito continua” (ago. 1955). Publicou também todas as adesões que a iniciativa foi tendo. Em outubro do mesmo ano pediu às professoras para voltarem a promover aquele inquérito, desta vez também no Ultramar, e referiu: “interessam-nos depoimentos de crianças brancas, negras ou mestiças. Neste caso pedimos que por baixo do nome da criança indiquem a cor ( ... ). Que nos mandem sem correções as redações das crianças ( ... ) todas têm o maior interesse” (out. 1955). Essas redações foram entregues a um especialista em psicologia infantil (mar. 1956).

Os depoimentos foram publicados desde junho de 1955. A diretora da revista escreveu um dos primeiros textos de reflexão sobre esta iniciativa (fev. 1956). Com o título “Se eu tivesse uma varinha de condão – Algumas considerações gerais sobre o trabalho realizado”9 e “Se eu tivesse uma varinha de condão – Estudo comparativo das respostas dos meios rurais e marítimos”10, foram publicados dois artigos com a apreciação de “308 respostas de meios rurais sendo 93 de rapazes e 215 de raparigas e 119 respostas de meios marítimos, sendo 59 de rapazes e 60 de raparigas” (dez. 1956). O estudo foi feito por Maria Borges, psicóloga, ou seja Maria Amália Harberts Borges de Medeiros, investigadora assumida na oposição.

Uma iniciativa que ocupou muitas das páginas da revista foi o Concurso de fotografias de crianças (mar.-nov. 1948), continuado, mais tarde, pelo Concurso da grande e linda roda de Os Nossos Filhos (jun. 1954), uma espécie de concurso de beleza e de iniciativa para recolha de fundos para assistência. O júri foi composto por Maria Keil, Vera Bordallo Pinheiro e a diretora de ONF (mar. 1952).

Outra área em que se identifica a resistência ao cânone defendido no Estado Novo é a dos comentários que são feitos, na revista, às obras recomendadas para leituras de crianças, sobretudo as de Maria Lamas, Ilse Losa ou Maria Clementina Carneiro de Moura, e de muit(as)os outr(as)os de uma cultura política de oposição ao regime. Há críticas elogiosas a duas obras de Ilse Losa: O Mundo em que vivi e Faísca conta a sua história, ambas mal aceites pela crítica do regime (jul. 1949). No cânone, refira-se o Boletim para Dirigentes da Mocidade Portuguesa Feminina (com início em janeiro de 1946, posterior a ONF), dirigido por Maria Guardiola, cujos objetivos se afastam dos da revista e onde muitos dos temas desenvolvidos são-no sob perspetivas bem diversas, como é o caso da educação sexual, da coeducação, das condições de vida da mulher trabalhadora, entre outros.

Analisando o número de colaboradoras de ONF que participam com uma quantidade de artigos superior a um dígito, é possível fornecer mais informações sobre aquelas que mantiveram ligações à oposição e/ou resistência ao Estado Novo. São os casos de:

Maria Palmira Tito de Morais, com 67 textos (1942-1952); Elina Guimarães, com 44 (1943-1958); Matilde Rosa Araújo, com 32 (1951-1958); Irene Lisboa, com 35 (1950-1956); Lília da Fonseca, com 23 (1943-1950); Ilse Losa, com 18 (1948-1958); Maria da Luz de Deus, do CNMP, com 16 (1942-1956); Fernanda Tasso de Figueiredo, com 16 (1944-1953); e Alice Gomes, com 13 (1950-1956).

Finalmente, dos cinquenta editoriais da revista não assinados pela diretora mas por elementos da oposição (sobre temas mais incómodos), selecionam-se os seguintes: Beatriz Bandeira, brasileira, contra a guerra e pelo pacifismo (jan. 1949); Anália Torres assina quatro textos: uma reflexão sobre egoísmo e belicismo humano (mar. 1948), um texto sobre educação para o pacifismo (out. 1949), outro, um elogio do trabalho após férias (out. 1950) e o último sobre exames escolares e fracassos (set. 1951); Alice Gomes enumera os critérios de escolha de uma escola (out. 1952); Francine Benoît reflete sobre música na formação da criança (mar. 1953); João dos Santos escreve sobre higiene mental infantil, férias na praia e erros educativos (ago. 1955); Maria Rosa Colaço publica um poema sobre o Natal e uma menina que morreu quando teve os desejados sapatos novos (jan. 1958); por fim, Maria Manuela Nunes (Mário Castrim) assina um texto sobre brinquedos bélicos (maio 1958).

Sob o ponto de vista político, é interessante ler o texto em que, ao fazer a apologia de uma alimentação racional para as crianças das escolas, MLN critica sem rodeios a campanha “Beber vinho é dar o pão a um milhão de portugueses” (jul. 1948), pois nas páginas da revista são inúmeras as referências a essa chaga – o alcoolismo – que atinge todos os grupos sociais.

Um outro tema abordado é a defesa e a criação de bibliotecas escolares junto de cada escola como forma de combate ao analfabetismo e iliteracia. Mesmo que este último conceito ainda não tivesse sido definido, é o que a diretora ataca quando considera que a escolha das obras deve ser cuidada e dá como exemplo de uma biblioteca itinerante de sucesso a Biblioteca da Criança Portuguesa, criada na Madeira, por Maria Regina da Silveira e Sousa (que virá a ser a sócia n.º 2 do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa), e que estava a ser continuada em Vila Viçosa por Maria Amélia de Almeida Ribeiro Vieira da Luz Carvalho11, opositora política assumida ao Estado Novo.

Outro aspeto a ter em conta ao analisar a revista ONF é a avaliação e (não) aceitação que, à época, dela foi feita. A diretora fez, em dezasseis dos editoriais publicados no mês do aniversário, uma avaliação do trabalho realizado. Tal apreciação é interna e externa, negativa ou positiva. Neste último grupo, a diretora referiu Alma Feminina, o órgão do CNMP, e também João de Deus Ramos que, depois de ter sido entrevistado sobre outro Jardim Infantil de Benguela para a revista, escreve: “Apraz-nos fazer este registo na revista ‘Os Nossos Filhos’, que considero actualmente o melhor baluarte em defesa da Infância no nosso País” (out. 1951).

A apreciação da revista feita por Ferreira de Castro foi das primeiras a referir o problema da censura. Quando convidado para ali escrever, respondeu:

 ( ... ) fico pesaroso por não poder atender seu desejo. Mas enquanto existir censura estou decidido a não escrever coisa alguma expressamente para a imprensa portuguesa. Isto mesmo eu já tornei público numa entrevista que dei ao “Diário de Lisboa” em Novembro do ano passado. Eu tinha a esperança de poder enviar-lhe um trecho do meu novo livro ( ... ) mas vejo que ele nada tem que possa servir para o carácter da sua revista. Espero que um dia venha em que possa enviar-lhe algum trabalho. Entretanto quero felicitá-la pela revista, que é, no seu género, muito boa, o que deve dar um grande trabalho e preocupações num meio como o nosso ( ... ). (Caixa 29. Maço 3)

Da análise do grupo de críticas feitas por elementos externos à revista conclui-se que ONF era apenas tolerada pelo regime. Em dois documentos produzidos pela Comissão de Leituras da Acção Católica Portuguesa12 (em 1954 e 1955-56), com fichas de apreciação individual, os livros e revistas são ali classificados como: Condenável, Tolerável e Não aconselhável. Em 1954, é feita a apreciação de ONF e de muitas obras de colaboradoras(es) da publicação. No conjunto de livros aos quais é atribuída aquela última avaliação – Não aconselhável – figuram obras de Emília de Sousa Costa.

No segundo grupo de fichas, as que foram publicadas em 1955-56, estão com a classificação de Condenável, o livro O alfaiatinho valente de Emília de Sousa Costa; como Tolerável, os livros de Maria de Castro Henriques Osswald e Maria da Natividade Pinheiro Correia; como Não aconselhável enumeram-se obras de Isaura Correia Santos, António Botto, Emília de Sousa Costa, Lídia Correia Serras Pereira e Ilse Losa, todas(os) colaboradoras(es) de ONF, e cujos livros existem, com dedicatórias, no Espólio de MLN. Neste grupo de fichas há um texto crítico e negativo sobre o livro Nós e a Criança, da Porto Editora, uma obra de Ilse Losa muito frequentemente elogiada em ONF mas criticada na ficha de avaliação por nele não se encontrar “a menor adesão às realidades sobrenaturais, nem, logicamente, à educação religiosa da criança” (assina I. L.) (ACP – 1955-56. Ficha C1. Espólio). É também neste segundo grupo de fichas que sai uma apreciação de Não aconselhável, atribuída a todos os números da revista ONF e que refere apenas:

( ... ) Revista que demonstra boa vontade e amor à criança e tem o mérito de ser a única no género em Portugal. Apresenta bons princípios de educação, mas apenas no natural, como se para além deste nada mais existisse. A leitura desta revista deve portanto ser feita com reservas. Traz geralmente uma ou duas páginas (de crítica literária e de receitas) que só muito longinquamente se podem relacionar com a finalidade da publicação: educação de crianças. (assina) M.N.L.  (ACP – 1955-56. Ficha D 1. Espólio)

Do que atrás se expõe, percebe-se que a revista ONF não pode ser analisada de forma uniforme e linear no que respeita uma clara transgressão dos cânones definidos pelo Estado Novo, já que a sua longevidade e condição de existência exigiram alguns estratagemas que permitiram a sua sobrevivência. No entanto, o texto apresentado esclarece uma teia de relações pessoais e profissionais entre MLN e muitas figuras – principalmente mulheres – declaradamente de oposição e de resistência ao sistema vigente, assim como demonstra a opção da diretora de ONF de lhes dar voz, ainda que muitas vezes sob pseudónimos, através de conteúdos mais ou menos explícitos de contestação à linha política e educativa preconizada pelo Estado Novo. Nesse sentido, esta revista cumpriu uma função educativa, aceite e valorizada por múltiplos sectores, o que a prestigiava e lhe permitia a existência, ao mesmo tempo que deliberadamente minava algumas das estruturas em que o regime se alicerçava, contribuindo para a consciência crescente da educação como espaço de liberdade e de autonomia individual.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Carvalho, M. M. (2005) Poder e ensino: Os manuais de História na política do Estado Novo: 1926-1940. Lisboa: Livros Horizonte.         [ Links ]

Cruz, V. (2005, dezembro 22). O pacto do embaixador Bosques. Expresso.         [ Links ]

Gorjão, V. (1994). A reivindicação do voto no programa do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas: 1914-1947. Lisboa: CIDM.         [ Links ]

Gorjão, V. (2002). Mulheres em tempos sombrios: Oposição feminina ao Estado Novo. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.         [ Links ]

Guimarães, M. A. R. P. (2002). Saberes, modas & pó de arroz: Modas & Bordados: vida feminina. 1933-1955. Coimbra: Faculdade de Letras.         [ Links ]

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Rosas, F. & Oliveira, P. A. (2004). A transição falhada: O marcelismo e o fim do Estado Novo: 1968-1974. Lisboa: Editorial Notícias.         [ Links ]

1 Desde então foram publicados muitos e diversos estudos, de que se mencionam apenas alguns: Barradas, A. (2006). Dicionário de mulheres rebeldes. Lisboa: Ela por Ela; Serralheiro, L. (2011). Mulheres em grupo contra a corrente. Rio Tinto: Evolua Edições; Cruzeiro, M. (2003). Maria Eugénia Varela Gomes: contra ventos e marés. Porto: Campo das Letras; Lindim, I. (2012). Mulheres de armas: histórias das Brigadas Revolucionárias. Carnaxide: Objetiva; Pimentel, I. F. (2013). História da Oposição à ditadura: 1926-1934. Porto: Figueirinhas; Honório, C. (2014). Mulheres contra a ditadura. Lisboa: Bertrand; Sales, T. (coord.) (2015). As Mulheres nas crises académicas durante a ditadura. Lisboa: UMAR.

2 Elabora, envia e (é publicada) uma série de artigos sobre temas que vão das relações mãe/criança até a criança e os brinquedos, as histórias, o ambiente, os livros.

3 Morais, M. P. T. (1944). Arte culinária: introdução de Pacheco de Amorim. Coimbra: Coimbra Editora.

4 Virá a casar com Alice Vieira, uma outra prima de Maria Lúcia Vassalo Namorado.

5 N.º 163. Dez. 1955, n.º 200. Dez. 1959, n.º 201. Dez. 1960 e n.º 205. Dez. 1964.

6 Outras ilustrações de cariz religioso são muito raras ao longo de toda a revista. Para além das capas há apenas uma ou outra reprodução, como é o caso de “A Virgem e o Menino”, de G. Bellini, em Brera, Milão, que ilustra o poema Natal, de Manuel Bandeira, em Os Nossos Filhos. n.º 199, dezembro 1958. p. 3.

7 Da leitura da correspondência do Espólio depreende-se que ela foi enfermeira diplomada pela Escola Técnica de Enfermeiras do Instituto Português de Oncologia, tinha o Curso de Comércio, foi sócia das Publicaciones Silva Neves, com escritório de representações da Argentina e do Chile na principal avenida de Montevideo, e ainda controladora técnica de dietética numa fábrica (Caixa 77. Maço 7; Caixa 31. Maço 2; Caixa 35. Maço 2; e Caixa 60. Maço 2).

8 Remetendo para o título do livro de contos infantis Varinha de condão, escrito por Fernanda de Castro e Teresa Leitão de Barros, publicado nos anos 30.

9 N.º 171. Ago. 1956. p. 12-13.

10 N.º 175. Dez. 1956. p. 14-15 e 20; este segundo texto indica que, posteriormente, serão analisadas as respostas das crianças dos meios urbanos.

11 Filha da professora que preparara Maria Lamas para o exame do 5.º ano, no Liceu onde também Maria Lúcia Vassalo Namorado fora aluna, quer desta senhora quer da mãe, Maria Adelaide Teixeira de Almeida Ribeiro Vieira da Luz.

12 Conjunto de 31 e de 28 fichas de apreciação de literatura infantil: crítica de livros e jornais.