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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dez. 2016

 

ESTUDOS

Françoise Collin: “je suis une femme, mais je n’est pas une femme”1

Teresa Joaquim*

*Universidade Aberta/CEMRI,

tjoaquim@uab.pt


 

RESUMO

Este artigo pretende fazer de forma sucinta o percurso da filósofa Françoise Collin, a partir do conceito de diferendo (Lyotard), da singularidade da sua abordagem e do contributo para a introdução da noção de mundo comum de H. Arendt, bem como do pensamento de M. Blanchot no contexto do feminismo contemporâneo.

Palavras-chave: Filosofia, diferendo, feminismo.


 

ABSTRACT

This text intends to succinctly outline the course of the philosopher Françoise Collin from the differend concept of Lyotard and the uniqueness of their approach and contribution to the introduction of the notion of common world of H. Arendt as well as by the thought of M. Blanchot in the context of contemporary feminism.

Keywords: philosophy, differend, feminism.


 

( ... ) A semana passada fui a Lausanne fazer uma conferência. ( ... ) um ano antes ( ... ) tinham-me feito verbalmente um convite que aceitei logo sem refletir. Por causa do lago. Falar sobre quê, falar mais uma vez, vinha por acréscimo. ( ... ) Um ano passa depressa. Recebi cartas com o programa, a pedir um título, um resumo, a hora de chegada, garantindo-me a reserva dum quarto de hotel. Há assim na vida intelectual uma parte de logística tão pesada como nos trabalhos domésticos. Não se trata só de pensar: é preciso também organizar-se, preencher formulários, responder à correspondência. O que fora um devaneio transformava-se em projeto, e o projeto traduzia-se em tarefas. Pensar, isto é, imaginar, seduz-me sempre. ( ... ) Para merecer o meu lago, eu tinha de ordenar o pensamento em ideias, e encadeá-las. ( ... ). Chove no meu lago e a bruma obscurece o horizonte ( ... ) apanho um autocarro de que sou a única utente para subir até ao Palais Beaulieu em frente do qual fica o Museu de Arte Bruta. ( ... ) Era aqui, sem que eu soubesse, que o rendez vous estava marcado ( ... ) objetos elaborados por desconhecidos ignorantes do que se nomeia arte e sustendo-se da sua única pulsão. ( ... ) A sua necessidade foi exclusivamente interior. Nenhuma precipitação, nenhuma finalidade. (Collin, 1999a, pp. 54-57)

Começo por traçar o percurso da filósofa Françoise Collin com o texto “A que integra o livro Je partirais d’un mot, escrito em 1999. Este longo excerto descreve e desenha a resposta a um convite de um grupo de professoras da Universidade de Lausanne, e dá a ver uma mescla de tarefas duma intelectual na preparação de uma conferência e o modo como esse convite é aceite por ela “por causa do meu lago” e como “o que fora um devaneio se transformou num projeto”; aceitar o convite também porque “pensar, imaginar, seduz-me sempre”. Ir “por causa do meu lago” (Lausanne) e o que esse ir implica na tarefa do pensamento e na sua apresentação em público: o expor-se (em público) e o ser desabitada na comunicação, o ser-se despojada das palavras antes de serem proferidas e a angústia do antes da exposição ao público que vai (des)habitar as palavras conhecidas. Depois, ainda o lago, o cinzento do dia e, em contraponto a essa viagem de uma intelectual e a sua exposição pública, o desejo de querer dar nome, voz (do feminismo, etc.) aos/às que não têm voz nem nome, ao visitar o Museu da Arte Bruta, e o choque que isso lhe provoca e que a faz dizer de si própria nesse contraponto de imagens que fazem/fizeram dela o que é: “filha dos que são nomeados, têm nome, mas sou também filha dos sem nome?” (p. 63).

Ou ainda esta interrogação no mesmo texto. “Todas as certezas vacilando, eu interrogo-me o que é que inspirou o meu feminismo ( ... )? O que é que me determinou a juntar-me, eu solitária, ao que se desenhava no espaço comum que as palavras mulher e feminino faziam ressoar? O fascínio do an-histórico pelo qual eu refazia a raiz com a minha origem materna? Ou antes a vontade de abrir a história a quem dela tinha sido excluída? Fundir-me no silêncio ou antes dar a palavra ao que me atraía? De modo que na luta travada para tomar um local (place), resistiu sempre a certeza íntima, irrazoável, de que o lugar (lieu) está fora deste local (place), excedendo-o sempre” (Collin, 1999a, pp. 58-59).

Françoise Collin, escritora e filósofa, nasceu na Bélgica em 1928 e morreu em Bruxelas no dia 1 de Setembro de 2012. Viveu em Paris desde 1982, cidade que ela retrata no livro On dirait une ville, 2008. As suas primeiras publicações foram romances – Le Jour fabuleux, 1960, e Rose qui peut, 1961 –, só mais tarde editando a sua tese de doutoramento Maurice Blanchot ou la question de l’écriture (1971). Este início revela o seu constante questionamento entre a literatura e a filosofia sobre as possibilidades da escrita depois da catástrofe, segundo Blanchot, um pensador que será determinante no percurso do pensamento de Collin. Nesse sentido, este percurso, que não sei se se pode designar entre mas com filosofia e literatura (no sentido deleuziano), permitiu-lhe esta constante contaminação entre mundos diversos e não estanques, entre Arte, Escrita, Literatura e Filosofia.

Após a publicação da sua tese de doutoramento, Collin é obrigada a deixar a Universidade (Saint Louis, em Bruxelas) e, em 1983, depois de uma viagem a Nova Iorque e da emoção que lhe provocou o movimento feminista nos Estados Unidos, funda com Jacqueline Aubenas a primeira revista feminista em língua francesa, Les Cahiers du Grif (1973-1997). Tal como afirmou na homenagem a Marcelle Marini sobre a colaboração desta na revista, Les Cahiers du Grif “só se manteve pela força e generosidade daquelas que, como Marcelle, aceitaram partilhar ativamente a aventura. Era preciso certamente (algo) comum. Mas era o comum de um pôr em comum que nunca fazia Um. Uma vontade de fazer um mundo” (Collin, 2007, p. 227).

Para além deste trabalho incessante relacionado com os Cahiers du Grif, organizou coletâneas de textos, devendo ser referido em particular Les Femmes, de Platon à Derrida. Anthologie critique, com Evelyne Pisier e Eleni Varikas, (2011) e Repenser le politique. L’apport du féminisme americain, com Penélope Deutscher (2005).

Abertura à pluralidade do pensamento. Abertura em muitos dos dossiês que integraram alguns números dos Cahiers; pela primeira vez, em contexto francófono, foram abordados autoras/es que hoje são amplamente citadas/os e revisitadas/os, como por exemplo Hannah Arendt e Georges Simmel, ou questões como a do género na história, ou das africanas, ou do corpo, etc. Houve sempre esse duplo movimento de inovação e (na) tradição, marca também da questão da herança, bem como do pensamento de Hannah Arendt, a saber, a de uma herança sem testamento. Escolhas não marcadas por questões meramente ideológicas que funcionam no inquestionamento de autores/as que não eram escolhidos/as pelas suas credenciais feministas mas pelo seu modo de provocar initium.

Nesse sentido dir-se-ia que as/os autoras/es que ela escolheu para os Cahiers não poderiam ser designadas/os/nomeadas/os como feministas, como a politóloga (na sua própria designação) Hannah Arendt, mas essa escolha permitiu-lhe repensar ou reelaborar categorias filosóficas, nomeadamente a de natalidade (não como categoria demográfica) em termos de fundamento de comunidade e sobretudo como um tema marginal na história do pensamento filosófico. Na verdade este pensamento debruçou-se (quase sempre) sobre a mortalidade, a finitude e o “ser para a morte” como enigma, limite, a qual, na obra de Blanchot, “esteve sempre presente sob a forma de uma exigência silenciosa, impedindo a palavra de sucumbir ( ... ) à tentação da ideologia” (referindo a injunção de Blanchot: “dizer o possível, responder pelo impossível”). Sobre a relação que manteve com Blanchot e Arendt, Collin dirá ainda: “( ... ) talvez seja passagem do morrer ao nascer. Blanchot descreve a escrita (écriture) como relação ao morrer, ao impossível (enquanto) Arendt é a relação ao nascer, relação ao possível, ao começo” (Collin, 1999a, p. 142).

Deste modo, a questão que Françoise Collin elaborou no âmbito filosófico e a partir do movimento feminista ou no movimento feminista a partir da filosofia (se estes movimentos se podem dissociar) foi a reavaliação do lugar das mulheres no contexto do mundo comum, na sua pluralidade e na sua constante deslocalização, porque marcado pelo sopro, espírito de invenção, de transgressão, de initium (que a noção arendtiana de natalidade também supõe). Para ela, o feminismo era um sonho de justiça e nesse sentido questionava o mundo comum na reestruturação fundamental das relações entre homens e mulheres. Na sua definição de feminismo – que não me canso de citar, e que integra, não por acaso, o texto “Textualidade da liberação, liberdade do texto”:o feminismo ( ... ) é um texto que se desenvolve, não uma tese. É uma linha melódica, não uma marcha militar. É uma inspiração, a inspiração de um sopro. (Collin, 1994, p. 149)

O feminismo é o primeiro movimento a colocar a questão política por excelência, a ausência de direitos num Estado de direito. Falar da definição política do feminismo ( ... ) é reivindicar e realizar a abertura de um espaço público, de um mundo comum – espaço público e mundo comum das mulheres, mas também acesso ao mundo comum em sentido lato. O feminismo é o direito à palavra política e a coragem da palavra pública. (Collin,1986, p. 21)

A sua leitura do movimento feminista como liberdade, em contraponto à mobilização ideológica (por exemplo), levou-a a estar aberta ao ‘ir’ ao encontro de outros contextos culturais. O seu pensamento foi fundamental para situar o feminismo no “mundo comum”, ao mesmo tempo que punha em questão o que, do ponto de vista do trabalho teórico sobre as mulheres e o género, poderia haver como perca de inovação. No seu texto sobre a história das mulheres, questionava a noção de deslocamento ou o modo de fazer história a partir dos cânones existentes, predominantemente masculinos, isto é, marcados pelo domínio do visível (cf. Joaquim, 2008, p. 99-111). Há em mais do que um texto de Françoise Collin a referência à noção de marca e traço (cf., in Birules, 1995, o texto “História e memória ou a marca e o traço”), onde debate as formas de inscrição e de reconhecimento e, em particular, a história das mulheres, a conceção do ser humano que nela pode estar implícita – a saber, o humano com a sua capacidade de agir, de fazer, de erigir, de certo modo a capacidade de deixar traços. A história das mulheres é e tem sido sobretudo essa tentativa de fazer com que essas marcas se tornem traços, escrita, documentos. Tarefa de tornar visíveis esferas de vida, de grupos, de práticas, de artes, que ficaram desconhecidas, sem registo, sem assinatura, sem nomes nem rostos próprios. A sua existência – porque elas eram, existiram – era marcada pela insignificância. O que leva a pensar não tanto sobre a invisibilidade mas sobre as formas que tomou essa invisibilidade ou essa visibilidade marginal, menor, como que tendo ficado numa zona menos iluminada. Deste modo, o que caracteriza o trabalho das histórias das mulheres é reconstituir “genealogias do feminino” (cf. texto de Collin “Un héritage sans testament”, 1992), que se tecem portanto na construção de linhagens visíveis; certamente que a invisibilidade que as fez, as constituiu, é ela também parte integrante dessa história, como um jogo entre formas diversas de visibilidade e invisibilidade.

Há pois na obra de F. Collin a atenção à “ pura perda” do que não é do domínio do visível mas que atravessa o seu pensamento filosófico. Daí também a forma como ela trabalhou o conceito de diferendo, do diferir, do que constantemente se elabora na diferença, embora essa elaboração teórica e prática (praxis) se fecunde na articulação entre “o poético e o político”, entre o que se sabe e o que excede o lugar, que é irrepresentável. É pois esse gesto entre o representável e a sua impossibilidade que provoca e traça uma obra e a sua abertura ao mundo comum. No pensamento arendtiano (que atravessa o trabalho de Collin), este gesto é marcado pelo initium que cada novo ser nele inaugura; deste modo, marca qualquer movimento, seja ele de cariz feminista ou outro, com a sua marca de inovação e também questiona a partir do seu interior a necessidade institucional de cada movimento em que se apaga muitas vezes esse início, começo como um sopro/espírito/ pensamento (como na sua definição de feminismo anteriormente citada) que modifica o contexto e a sua paisagem.

Em 1999, Collin publicou o belíssimo livro sobre Hannah Arendt, L’Homme est-il devenu superflu?, onde dirá a leitura de Arendt permitiu-me pensar melhor a experiência política – o meu itinerário político, porque para mim o feminismo é um itinerário político – duma maneira que não procede da mobilização mas da liberdade. (1999a: 148)

Tanto Blanchot como Arendt são sobreviventes, e assim a autora formula esta interrogação:

Já que somos sobreviventes, como viver em conjunto ou mais precisamente em que condições é ainda possível um mundo comum? ( ... ) A própria experiência da alteridade, pluralidade, alteração do sujeito. (Collin, 1999b, p. 143)

Nos seus textos há uma disseminação de conceitos, de obras, de pensadores que foram centrais para ela no seu pensamento (para além dos referidos, também Merleau Ponty, Lévinas e o diálogo com a obra de Simone de Beauvoir) e que lhe permitiram uma abordagem singular das questões, nomeadamente, a recusa de qualquer posição dogmática ou, como disse Rosa Braidotti, uma “elegância legendária na forma de pensar” (2003, p. 35) a partir da filosofia quebrando um quadro fixo de interpretação numa clausura do mesmo … como se houvesse sempre algo mais em que se alia o nomadismo das questões e o quadro do pensamento e das formas que o buscam.

Ora, esta forma de recusa de qualquer posição dogmática leva a uma questão sempre debatida, em particular no contexto cultural francês, sobre a diferença e a igualdade. Debate que Collin retraça de forma sucinta num texto publicado em português, “O feminismo na filosofia pós-metafísica” (2010), em que não se situa em nenhuma destas correntes, preferindo fugir a uma posição essencialista de cada uma destas posições ou não as analisar na sua oposição, convocando o conceito de diferendo elaborado por François Lyotard: o diferendo é o estado instável e o instante da linguagem em que alguma coisa deve poder ser posta em frases e ainda o não pode ser ( ... ). É preciso procurar novas regras de formação e de encadeamento de frases capazes de exprimir o diferendo que trai o sentimento de não querermos que este diferendo seja imediatamente abafado no litígio. (citado in Collin, 1999, p. 10)

Iremos centrar-nos, de modo mais particular, nesta questão – do diferendo –, porque é ela que dá a ver o próprio movimento do pensamento de Françoise Collin na sua estratégia de abordagem tanto das questões filosóficas do passado como dos debates contemporâneos em que ela participou, por exemplo, sobre a paridade. A questão do diferendo, elaborada a partir da definição do filósofo François Lyotard, foi tratada por ela em vários textos, conforme refere na nota do texto em português “O feminino na filosofia pós-metafísica” (in Joaquim, 2010). É o caso da obra Le Différend des sexes – de Platon à la parité (1999c). Num texto anterior a este e publicado em português, “Diferença e diferendo. A questão das mulheres em filosofia” (1995) (que integra o volume V dedicado ao século XX da História das Mulheres no Ocidente), ela afirma: “o filósofo não se interroga sobre o masculino, sobre os homens, mas sobre o feminino, sobre as mulheres: é indiretamente, nesse espelho, que ele trai a posição sexuada do sujeito pensante, sem todavia a problematizar como tal” (2010, p. 17). Talvez porque esteja inscrito esse longo invariante masculino como representante do universal, não deixando de ser problemático este não questionamento que se inscreve nesta “metafísica dos sexos”.

Esta longa abordagem da “questão das mulheres” pelos filósofos constitui a antologia que Collin organizou com Eleni Verikas, em 2000, Les Femmes de Platon à Derrida. Anthologie critique. No texto “Diferença e diferendo”, a autora retrata a modernidade, o movimento que designa como metafísica dos sexos e na qual está consignada a inferioridade das mulheres: “É tão difícil admitir que a diferença dos sexos é um puro produto da opressão que não deixaria vestígios se desaparecesse como considerar que existe um território feminino de algum modo autêntico, puro de qualquer interferência fálica” (Collin, 1995a, p. 34).

Poder-se-á dizer que as correntes em contraponto nos anos 60 e 70 do século XX, a diferencialista e a igualitarista, são herdeiras de debates intelectuais marcados nomeadamente por filósofos como Poullain de la Barre, Rousseau e Condorcet, debates marcados pela questão de saber se a razão é ou não marcada pela diferença sexual : ou a razão é una mas não cindida pela diferença sexual, e então todos/as têm as mesmas capacidades de pensamento e de ação e as mesmas possibilidades tanto na esfera pública como na esfera privada; ou a razão é una mas cindida pela diferença sexual e, nesse sentido, foi historicamente atribuída às mulheres uma razão diversa, isto é, uma razão prática que não cria princípios e que foi definida como tendo uma menor capacidade de abstração. No seu texto Le philosophe travesti ou le féminin sans les femmes (1993, 1.ª ed., p. 2), Collin caracteriza estas posições: as essencialistas, que na atualidade defendem que “a ultrapassagem da dominação deve deixar subsistir a diferença dos sexos, reforçando o contributo do feminino próprio das mulheres ( ... ) e as racionalistas ( ... ) (que defendem que) a ultrapassagem da dominação será ao mesmo tempo a extinção da diferença”. Antes ela dirá neste mesmo texto, que na “metafísica dos sexos, em que os homens são os representantes do universal e as mulheres do particular ( ... ), a diferença é sempre pensada na desigualdade.” (ibidem, pp. 1, 2).

Na crítica a esta “metafísica dos sexos”, a autora fará referência à obra de filósofos como Derrida e Deleuze (como pós-metafísicos?), num movimento de apologia do feminino que abrange ambos os sexos. O movimento designado como devir mulher do pensamento, utilizando a designação de Deleuze, rompe com a oposição entre masculino e feminino a partir da noção de desconstrução de Derrida. “Entre os sexos há rutura que não produz separação ou que produz separação produzindo ao mesmo tempo reparação” (Collin, 1995a, p. 335).

A autora concorda com este movimento de desconstrução, no entanto permanece para ela a interrogação de saber se este é “um feminino sem mulheres”, algo que ela designa como antifeminismo na filosofia contemporânea: “Um antifeminismo mais subtil que evita interrogar-se sobre a sua dualização hierárquica efetiva e sobre as estratégias da sua ultrapassagem” (Collin, 1993, p. 6). Sobre esta posição de Derrida, refere ainda, no mesmo texto, a “dificuldade de tomar em conta a dimensão do político no pensamento da diferença” (ibidem, p. 7, nota 11). Isto é, se aparentemente deixa de haver um discurso antifeminista na abordagem da “questão das mulheres”, como existiu de formas diversas ao longo da história da filosofia, e se aparece no contexto filosófico contemporâneo a positividade do feminino na filosofia, essa leitura faz-se a partir de um descentramento que não tem em conta, ou antes, apaga, também a existência ou a “( ... ) situação concreta do que é nascer homem e mulher, mesmo no mundo ocidental, (que) não dá as mesmas hipóteses de determinação do mundo comum; (a leitura) ilude pois a dissimetria dos grupos sexuados que se encontram e afrontam no real” (Collin, 2010, pp. 24-25). Podemos ainda interrogarmo-nos se esta elaboração do devir feminino na filosofia é apenas um gesto de desconstrução da metafisica e se poderia ser visto como sendo parte integrante do percurso do pensamento filosófico ocidental e de um logos que recalcou o feminino, o sensível; seria, pois, um feminino descorporizado do corpo politico e do pensamento.

Collin contrapõe assim a uma “metafísica dos sexos” uma praxis dos sexos: “A verdade dos sexos deixou de ser identificável. Não decorre nem de um facto secular, nem de uma representação que seria dada a priori, em nome de uma teoria ou da utopia: a verdade dos sexos não é representável. Mas está daqui em diante em movimento. Ela é ação. A diferença dos sexos tornou-se uma praxis. Uma praxis do irrepresentável. Nada está já dito do que será” (Collin, 1999c, p. 59).

Apesar das leis, o diferendo dos sexos permanece em jogo e deve ser falado em comum. Ousar-se-ia mesmo dizer que, talvez, pela primeira vez na história, é aos homens que cabe responder a um debate que as mulheres iniciaram. Porque elas não reivindicam apenas tal ou tal direito pontual, mas anunciam uma transformação profunda das relações seculares entre os sexos. Neste assunto são elas que tomam a palavra (ibidem).

Nestas dimensões reencontramos as possíveis e incertas “determinações no mundo comum” que se desenham no pensamento de Collin a partir da noção de diferendo de Lyotard – “dizer o que é um homem, o que é uma mulher, é também sempre deslocar os termos e o sentido numa prática privada ou pública como numa prática teórica” (Collin, 2010, p. 25), no sentido em que a determinação de cada sexo está sempre aberta a cada momento.

No fio desta noção de diferendo, o modo como este se inscreve na estratégia filosófica de Collin conduz a uma questão pregnante para as questões sobre o conceito analítico de género. Este conceito tem permitido leituras que seriam mais próximas de um devir feminino na filosofia, eliminando a questão da diferença sexual, das mulheres e dos homens. Parece-me que a noção de diferendo na obra de Collin admite fazer uma leitura das múltiplas variações do masculino e do feminino sem perder a sua contextualização no e com o mundo comum, a partir de uma perspetiva teórica inscrita numa praxis dos sexos que, em cada momento, requer uma leitura política dos mesmos. Permite também a positividade de uma leitura sobre a multiplicidade dos sexos, não os restringindo em dicotomia, mas tornando-os plurais, sem os descontextualizar. Esta leitura é diferente da que do ponto de vista teórico e político considera que é ultrapassado falar de “questões das mulheres” (como por exemplo na obra de Françoise Collin) e do esquecimento ou apagamento do acesso (difícil ainda) ao mundo comum. É um discurso que reduz as práticas a jogos performativos e de sexualidades em formas incorporais, sem atenção ao político que as marca e enforma. Por isso, estas questões das mulheres continuam a ter pertinência, em particular, na reformulação do mundo comum, que se traduz e baseia por vezes numa leitura simplista, por exemplo, da obra de Judith Butler. Collin desconstruiu de forma brilhante as  noções de género como performatividade na conferência que proferiu em Lisboa (2015), inscrevendo as questões do género em corpos palpáveis na busca do que ela interroga, por exemplo, no texto “O que é uma vida boa?” ou nesta conversa:

Quando falámos sobre o campo da inteligibilidade de género, estávamos falando sobre instituições, categorias e linguagens existentes que podem fazer com que o género tenha sentido. O reconhecimento é uma relação intersubjectiva e, para um indivíduo reconhecer outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade ( ... ). Invocamos campos de inteligibilidade quando reconhecemos outros, mas também podemos retrabalhá-los ou resistir a eles no curso de novas práticas de reconhecimento. (Knudsen, 2010, p. 167)

Significa pois que temos de seguir um trabalho duplo de desconstrução da chamada metafísica dos sexos e de elaboração de praxis inovadoras em que “je suis une femme et je n’est pas une femme”. Isso significa também que, nas suas palavras, enquanto intelectuais teremos de “deslocar pacientemente os fios do saber e do pensamento”. Desfazer os fios do pensamento evoca a imagem que H. Arendt tinha do pensamento como algo que se vai tecendo; do mesmo modo, este texto, quase no final, retoma a citação inicial do desejo do lago de Lausanne por Collin, da deslocação do espaço, de criar um mundo comum entre a partilha do pensamento e o choque dos sem nome do Museu de Arte Bruta. E é nesse confronto com o inominável que ela formula o seu pensamento de uma forma singular, que nos convida a ir também “em direção do desconhecido”.

A articulação complexa entre poético e político é mesmo talvez o suporte permanente da minha reflexão. Se há tensão entre estas duas dimensões da experiência humana, há também relação na medida em que não pode haver modificação política (nas relações de sexo) sem modificação simbólica, a qual não é redutível à pontualidade de leis ou de medidas sociais. A mudança busca-se mas não obedece ao comando. Foi na minha reflexão sobre a escrita que aprendi o que continuo a chamar ‘ir em direção do desconhecido’. (Entrevista com Fl. Rochefort e D. Haase-Dubosc, 2001)

1 Texto que parte da apresentação que fiz da obra de Fr. Collin na sessão da Universidade Feminista de 20 de março de 2014 sobre o Pensamento de feministas que marcam os tempos. Françoise Collin, Judith Butler e Susan Faludi, com Lígia Amâncio e João Manuel Oliveira. Aqui ficam de novo os meus agradecimentos a esta iniciativa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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