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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dez. 2016

 

NOTA DE ABERTURA

Nota de Abertura

Isabel Henriques de Jesus


 

Não é possível dissociar da nossa história as adesões intelectuais que vamos processando. Sabemos hoje que o racional é profundamente emocional, por isso, a receptividade que determinada forma de pensar tem em nós ocorre num substrato relacional em que os laços se vão apertando porque o encontro é feliz.

Vem isto a propósito da descoberta de Françoise Collin, figura de capa deste número 36 da revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher. Há uns anos, o pensamento desta feminista ajudou-me a encontrar os fios, a ordená-los, a construir a trama com que fui elaborando e reelaborando os significados do signo - feminismo - porque nele encontrei um ancoradouro para as minhas próprias inquietações.

De "um problema sem nome" identificado e denunciado por Betty Friedan, em 1963, que queria afinal dizer que as mulheres se sentiam mal na pele que se deixavam vestir, mas não haviam ainda encontrado os termos para o verbalizarem, condição necessária para a libertação, passando pelos movimentos feministas da segunda metade do século XX, muitas vezes disruptivos e radicais, a chamada segunda vaga do feminismo caracterizou-se pela extraordinária diversidade de posições, de emoções, de zangas, de dinamismo, aspectos que, no dizer de Judith Butler permitiram manter vivo o[s] movimento[s].

Um desses diferentes posicionamentos assentava numa divisão entre Universalistas e Diferencialistas. Para Collin, a questão de pertencermos a um todo humano ou sermos específicas de metade desse todo, tem pouca expressão na política dos sexos, considerando estéril essa contenda entre as feministas. A questão não deve, pois, ser colocada numa “lógica dos contrários”, que facilmente enclausura qualquer argumento em termos de alternativa ideológica, mas sim interrogar a forma e as modalidades de existência de posições sexuadas. Apesar de não se poder negar o aspecto morfológico e psicológico da diferença dos sexos, a questão central é saber se essa diferença se traduz e como se traduz na relação com o mundo e, ainda, como se inscreve na ordem social e simbólica.

O assunto estava lançado e as diferentes posições deviam ser equacionadas num quadro político ditado pela praxis. Não havendo modelo a seguir, já que o masculino tinha assegurado a exclusão das mulheres do pensamento e da acção política e, consequentemente, do poder e do saber, as mulheres precisavam de o criar, inventando-o, através da acção, e da sua permanente reelaboração, ou seja, usando as palavras de Collin: “a diferença dos sexos tornou-se uma praxis: uma praxis (ou uma política) do irrepresentável. Nada está dito sobre como será. Vai-se dizendo, frase por frase, como quando se fala”.

Este avançar através de uma estreita interdependência entre pensamento e acção permite entender o feminismo como um processo inacabado, sujeito a um permanente questionamento assente na acção política. Nenhum pensamento ou acção descansam sobre uma tese, uma teoria ou uma decisão. É no agir que as soluções, ainda que provisórias, serão alcançadas, tendo embora fundamentos conceptuais e teóricos. Agir é começar, é correr riscos, é não se conformar a um modelo prévio, é fazer acontecer qualquer coisa. Mesmo quando se chega a um resultado concreto, o processo não está terminado, recomeça, induz novos enunciados e torna-se objecto de um novo pensamento.

Quando, num movimento sem retorno iniciado no fim dos anos 60 do século passado, as mulheres transformaram a diferença em “diferendo”, o que elas fizeram foi algo de novo, com um peso e uma dimensão política nunca antes verificada. A relação entre os sexos foi então objecto desse tal agir onde as mulheres tiveram finalmente um lugar. Talvez pela primeira vez na história os homens foram obrigados a responder a um debate iniciado por elas. Abriu-se como que uma nova era nas relações humanas e toda a ordem secular foi abalada. Não sem custos!

Se, por um lado, é justo que prestemos homenagem a uma feminista, pensadora, filósofa, e ensaísta muito particular, que nos propõe uma sistemática reelaboração do pensamento, confrontando ideias feitas e recusando qualquer tipo de fechamento ideológico que impeça a liberdade de questionar e de se questionar, por outro, é obrigação (não no sentido de comando a que Collin era adversa, mas no sentido de um agir, de um acto político) das feministas manterem viva a memória de uma mulher que tanto contribuiu para uma visão do feminismo como algo em problematização permanente, de acordo com as circunstâncias da relação entre os sexos. A sua abordagem e vivência do feminismo incorporaram sempre um diálogo plural e polissémico.

Em 1999 ela escreveu que as mulheres constituíam o pivot da mudança. Em que medida o hoje de 1999 era diferente do hoje de hoje? Que influência social e política poderão as mulheres ter no sistema, apesar de já aí estarmos representadas (numa semi-paridade)? O que queremos ou conseguimos mudar? Como?

A revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher pretende dar o seu contributo, divulgando, numa edição semestral, um conjunto de artigos, de ideias, de personagens, permitindo configurar a tal interdependência entre pensamento e acção que exclui as verdades inquestionáveis de que o feminismo tantas vezes é vítima.