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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

Print version ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa June 2016

 

LEITURAS

Les Femmes au temps de la guerre de 14. Thébaud, F. (2013). Paris: Éditions Payot & Rivages, 478 pp.

Natividade Monteiro*

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva, Lisboa, Portugal


 

O livro Les Femmes au temps de la guerre de 14 é uma reedição revista e actualizada da obra publicada em 1986, com um preâmbulo, um capítulo e uma conclusão inéditos e ainda o prefácio de Michelle Perrot, que reforça a tese de que “les femmes au temps de la guerre sont aussi des femmes en guerre sur tous les fronts” (Thébaud, 2013, p. 19) No corpo do texto, a autora corrige as imprecisões conceptuais, devidas ao estado da investigação nos anos 1980, propõe nuances aos feminismos que, desde então, suscitaram propostas de pesquisa enriquecedoras e introduz numerosas referências complementares e recentes que permitem um aprofundamento de saberes e constituem um guia precioso para esta área de estudos. Na conclusão, a autora revisita as questões mais debatidas sobre o impacto das guerras no lugar das mulheres nas sociedades, nas relações de género e na redefinição das identidades, bem como apresenta elementos novos para uma reflexão em torno do carácter emancipador ou não da guerra de 14.

Inicialmente publicado  com o título La Femme au temps de la guerre de 14, este livro viria a revelar-se um êxito por se enquadrar na História das Mulheres, um domínio de investigação em franca expansão naquela época, e suscitar a inclusão de cadernos didácticos nos manuais escolares sobre a vida e o trabalho das mulheres durante a I Grande Guerra. Escrito de forma apelativa, teve grande aceitação pública, expressa nas cartas de leitores e leitoras que agradeceram à autora a oportunidade de conhecerem as experiências vividas pelas mães e avós e compreenderem melhor a história da própria família. Há muito que não se encontrava no mercado, pelo que saudamos esta reedição de 1994, no centenário da Grande Guerra, por tornar esta obra acessível a um novo público e por trazer novas perspectivas para o debate, suscitadas pela diversidade dos estudos mais recentes.

Com este livro, Françoise Thébaud introduziu novas dimensões de análise das fontes, esboçando caminhos para uma história do íntimo, da história dos efeitos da guerra nas desordens identitárias e nas relações de género, dos imaginários sociais, das violências sexuais exercidas sobre as mulheres e dos traumas de guerra, áreas de estudo desenvolvidas posteriormente. Esta nova edição informa-nos sobre as mais recentes pesquisas do Centre International de Recherche – Historial de la Grand  Guerre  e do CRID – Collectif de Recherche International e de Débat sur la Guerre  de  1914-1918,  centradas na “violência da cultura de guerra”, como matriz da brutalidade extrema dos conflitos armados do século XX, discordando, contudo, na tese do consentimento dos combatentes nessa mesma violência.

A capa do livro representa uma mulher conduzindo um tractor, situação  insólita  que  convida a folheá-lo para saber se a guerra mudou ou não as vidas individuais, as relações entre homens e mulheres e as identidades de género. Dividido em três partes, contempla todas as formas de participação das mulheres no conflito de 1914-1918 e confere significado às suas experiências num país em guerra, demonstrando que os conflitos bélicos não são um assunto só de homens. Na primeira parte, a autora contextualiza a entrada na guerra, traça um quadro elucidativo da situação e dos direitos sociais e civis das mulheres, bem como da capacidade reivindicativa das  associações  feministas, e descreve como a França se transformou num país feminino, com as mulheres de todos os grupos sociais a ocuparem o lugar dos homens, a entrarem no segredo dos seus ofícios, a ampliarem o seu campo de acção e a ganharem o gosto pela autonomia e responsabilidades. A França descobriu as mulheres e iniciou uma era de elogios aos méritos femininos, tanto na literatura como na política. Livros, imprensa, fotografias, cartazes, postais, e canções representavam as heroínas da guerra e os novos ofícios femininos, exaltando “les aptitudes morales et intellectuelles, professionnelles et sociales, énergétiques et physiques de la femme que offre au pays et à ses soldats sa force de travail et son courage, son dévouement et sa force d’âme” (Thébaud, 2013, p. 50).

Na segunda parte, a autora aborda as olvidadas da história, vítimas e resistentes das zonas invadidas que sofreram as violações, a maternidade indesejada, o trabalho forçado e as deportações, atrocidades que chocaram o mundo e serviram para outros países mobilizarem as populações para projectos militaristas. As espias, como Mata-Hari ou Mathilde Lebrun, surgem em oposição às heroínas do dever cívico, que assumiram os cargos públicos nas suas comunidades e asseguraram o património familiar e a manutenção da sociedade civil, cuidando do abastecimento das populações, acolhendo os refugiados das regiões em guerra, facilitando as comunicações, reagrupando as famílias, salvando prisioneiros, tratando dos  feridos e doentes e colaborando com os exércitos aliados. Simbolicamente, a enfermeira  foi  uma  das  figuras centrais da I Grande Guerra. Auxiliar indispensável do serviço de saúde militar, foi apelidada de “anjo branco”, “dama branca”, “anjo da guarda dos feridos”, “religiosa da Pátria” e “humilde servidora dos soldados”.

Ao longo do livro desfilam os patrióticos exércitos das damas da caridade e as obras de guerra criadas a favor dos “poilus”, dos órfãos e dos prisioneiros, as consoladoras madrinhas de guerra, as artistas, como Mistinguett ou Sarah Bernhaardt, arcanjos que faziam sonhar e davam alento moral aos soldados, “la belle femme du cabaret” que amenizava o sofrimento das trincheiras, o anjo do lar que sofria a solidão ou festejava a liberdade, anjo fiel ou traidor, sempre culpado porque ousava viver e sobre o qual recaíam a suspeita e o ciúme do soldado que, sujeito à disciplina militar, à separação e ao isolamento, desesperava tolhido pelo medo do abandono e a fobia da infidelidade. O sexo feminino era acusado de viver e de se divertir com relativa indiferença em relação às lágrimas e ao sangue vertidos onde se jogava o destino da França, da Europa e… mesmo do mundo! Mas, na visão das feministas, as francesas confirmam as suas capacidades no “combate da retaguarda”, respondendo ao “apelo da Pátria”.

As camponesas asseguravam a produção agrícola, nas cidades as funções masculinas passavam para o domínio feminino e nas indústrias de guerra as mulheres igualavam os homens no “travail viril”. A metalurgia, a química, a indústria automóvel, a aeronáutica e o armamento empregavam mulheres de todas as classes e idades, sendo a  maioria no fabrico de obuses, granadas e munições. Trabalho penoso, difícil e perigoso que “il faut avoir faim pour faire ce métier”. Todavia, no discurso oficial, elas eram as obreiras da Vitória e as bravas patriotas que criavam os engenhos de morte que salvavam os seus “poilus”. As feministas saudavam a entrada das mulheres num sector interdito e tentavam melhorar as condições de trabalho, enquanto as pacifistas as acusavam de se deixarem embebedar pelo absinto nacionalista e de, inconscientemente, darem força aos exploradores e aceitarem a tortura da guerra.

Será que a guerra emancipou as mulheres e ampliou os seus direitos de cidadania,  tal  como  as feministas esperavam quando suspenderam as reivindicações sufragistas, em nome da defesa da Pátria? Françoise Thébaud introduz nuances à tese defendida no estudo comparativo que fez na Histoire des femmes en Occident. Le XXe siècle de uma guerra não emancipatória, pelo seu carácter conservador nas relações de género. A guerra terá sido um ínterim, cujas mudanças foram superficiais e provisórias. Finda a guerra, os homens voltaram aos seus ofícios e as mulheres, contra as suas expectativas, regressaram ao lar e aos deveres da maternidade para repor a população.

Contudo, elas diziam que já nada seria como dantes. Serão as mais jovens que, pelo acesso à educação e ao trabalho remunerado, se irão libertar da tutela masculina e construir uma nova identidade. Todavia, as abordagens mais complexas, no âmbito da história social e cultural, demonstram que o debate não está fechado. Os estudos mais recentes também concluem que a concessão do voto às mulheres se deve mais às condições sociais e culturais específicas de cada país do que às mudanças causadas pela guerra. Se alguns países o concederam durante o conflito ou no seu rescaldo, outros sonegaram-no até às décadas de 40 ou 70, como no caso da França (1945) e Portugal (1975).