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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

LEITURAS

Helena Almeida: a minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra. Ramos, M. (coord.). (2015). Porto: Fundação de Serralves, 232 pp.

Rita Mira*

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Faces de Eva, Lisboa, Portugal, mira.rita@gmail.com.


 

Helena Almeida: a minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra é um livro publicado por ocasião da exposição, com o mesmo título, desta artista plástica portuguesa, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, entre Outubro de 2015 e Janeiro de 2016. Este título surge das palavras da própria artista (citada por Corral, p. 191), sugerindo a indistinção entre a sua obra e o seu corpo, entre a tela e si própria.

Como é referido no prefácio de Suzanne Cotter, Marta Gili e Dirk Snauwaert (pp. 7-8), tanto a exposição como este livro pretendem percorrer o trabalho de Helena Almeida, desde os anos de 1960 até aos dias de hoje, integrando mais de 80 obras de pintura, fotografia, desenho, performance e vídeo. Esta exposição teve como ponto de partida as 18 fotografias da série Dentro de mim (1998, pp. 184-185), convidando a/o visitante a entrar dentro da obra – que é o próprio corpo – da artista plástica.

Helena Almeida, nascida em 1934 e licenciada em Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, expôs pela primeira vez, colectivamente, em 1961, na II Exposição Gulbenkian e, individualmente, em 1967, na Galeria Buchholz, em Lisboa, onde apresentou uma pintura abstracta, geométrica (p. 36), a sair, de forma pouco convencional, dos limites da tela. No ano seguinte, realizou a segunda exposição na mesma galeria, com uma série de trabalhos que mostravam aquilo que, normalmente, não se vê numa exposição de pintura: o avesso das telas. A artista adicionou, ainda, alguns elementos tridimensionais – estore, portada –, transformando a tela em janela, ainda que sem vista ou paisagem (pp. 39, 40). Nesta altura, segundo a própria artista, já “estava a negociar com a pintura” (p. 129), já estava “a dar cabo da pintura” (p. 130). Na década de 70, a artista abandonou os métodos mais tradicionais de representação para se dedicar a diferentes práticas artísticas, cujo ponto de partida central era o seu corpo. A artista e o seu corpo – as suas formas, posturas e a relação com o espaço envolvente – são, até hoje, os protagonistas. Normalmente com um vestido preto e largo ou uma bata branca de trabalho, a imagem e o corpo da artista não surgem como auto-retratos, tratando-se da própria  matéria-prima  da  obra, uma presença reiterada de si mesma, sem personagens ou artifícios.

Helena Almeida utiliza, numa óptica transdisciplinar, a pintura, o desenho, a fotografia, a performance, o vídeo e a escultura, ao longo do seu percurso artístico, consolidado pela auto-representação. Se o corpo é o local onde todos os limites se confrontam com a existência humana, é também, no ponto de vista da sua obra, o limite das diversas disciplinas artísticas.

Esta publicação inclui textos de Bernardino Pinto de Almeida, historiador, crítico de arte e professor catedrático na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (pp. 18-32), Connie Buttler, curadora do Hammer Museum da Universidade de Los Angeles (pp. 80-87), Peggy Phelan, professora de teatro e performance da Universidade de Stanford (pp. 186-193), bem como uma entrevista com a artista, conduzida pelos curadores da exposição, João Ribas e Marta Moreira de Almeida (pp. 128138), e fotografias da maior parte das suas obras expostas. Inclui, também, a lista das exposições individuais e das obras presentes ao longo do livro.

Com o objectivo  de  analisar o lugar da obra desta artista no contexto mais vasto da arte contemporânea, este livro tem como ponto de partida um texto de Pinto de Almeida (pp. 18-32), que nos dá conta do contexto artístico em que se enquadra o seu trabalho, situando-o na “crise do modelo modernista e o advento de novos paradigmas” (p. 19), interrogando a própria noção de arte e os seus meios tradicionais de expressão.

Este processo de inquirição dos cânones da história da arte é, igualmente, alvo de reflexão por parte do movimento artístico feminista europeu, desde os finais da década de 1960, como refere Butler (pp. 80-87), denunciando as exclusões de género. Neste contexto, o atelier era e é, para muitas mulheres artistas, “local de interrogação e ruptura” (p. 81). O atelier de Helena Almeida é, em muitas obras, o espaço envolvente, entrecruzando-se o espaço privado da artista e a obra: “o meu atelier está dentro de mim” (p. 132).

Em vários trabalhos, é possível observar o questionamento que Helena Almeida faz à pintura de cavalete. Em Sem Título (1974, pp. 48-51), uma sequência fotográfica regista a artista plástica frente a um cavalete que expõe uma tela branca, com as mãos atrás das costas, segurando um pincel, e o chão do atelier que se encontra caótico, com panos e tintas derrubadas. A tela vazia contrasta com a agitação do atelier, parecendo retratar  a incapacidade da pintura em expressar o que rodeia a artista ou o seu interior. A obra Tela rosa para vestir (1969) é outro exemplo, em que a artista funde “o objecto artístico – a pintura – com o seu corpo” (Butler, p. 84). Veste uma tela branca, como se fosse uma camisola, e sorri para a objectiva fotográfica. Em Tela habitada (1976, p. 43), a artista plástica regressa, sete anos depois, a esta obra e coloca-a em movimento. Vestida de branco, a artista transporta uma tela vazia, como se fosse um painel publicitário. Caminha, igualmente sorridente, num jardim ou num parque. Ambas as obras são exemplos paradigmáticos de uma corporalização da própria pintura, registada pela fotografia.

A artista atravessa para o outro lado da obra e faz dela o seu próprio corpo, a sua casa, habitando as telas (Tela habitada, 1976, pp. 43, 76-79), as pinturas (série Pintura habitada, 1975, 1976, pp. 53-65; 89) e os desenhos (série Desenho habitado, 1975, 1976, 1977, pp. 66-75; 90-91; 94-95).

Durante a década de 70, a esfera doméstica, o espaço privado, o corpo feminino foram temáticas recorrentes nas obras de mulheres artistas, que se colocavam em diálogo com as interrogações feministas. Helena Almeida cria, nesta altura, uma série de  imagens sob o título A casa (1979, pp. 126, 127), em que, numa das imagens, surge de boca aberta, selada de cor azul, aludindo à centralidade de ter voz.

A temática  da  invisibilidade e da ausência de voz estão presentes na série Sente-me, Ouve-me, Vê-me, de 1978 e 1979, na qual os títulos evocativos entram em contradição com as imagens. Utilizando uma forte “dimensão performativa(Pinto de Almeida, p. 25), comum em muitas obras, as imagens Sente-me estão eivadas de representações sobre a impossibilidade de sentir o/a outro/a, as fotografias Ouve-me expressam, através dos lábios cosidos da artista, a impossibilidade de pronunciar qualquer palavra, e a obra Vê-me é uma peça sonora, em que se ouve o som de um desenho a ser feito a grafite sobre o papel.

Imagens da artista tapada, amordaçada ou abafada por uma tela, contra a qual pressiona as mãos e a boca, suscitam leituras sobre a opressão social, incluindo de género.

Tendo a palavra – escrita, falada, desenhada ou pintada – sido retirada às mulheres durante séculos e subsistindo ainda um quadro social dominante no qual cabe ao homem o papel central da fala, podemos enquadrar esta obra numa crítica a essa condição de desigualdade.

Para compreender a forma como o regime fascista do Estado Novo (1932-1974) marcou o trabalho criativo desta artista, Phelan (pp. 186-193) transpõe o axioma feminista “o pessoal é político” para “o político é pessoal”, tendo silenciado vozes e expressões de liberdade, incompatíveis com os desejos e ambições da criação artística.

Apesar de Helena Almeida não se assumir como feminista (p. 134), é impossível deixar de questionar,  a partir das suas obras, a condição social de ser mulher, contribuindo o seu trabalho para a reflexão, através da arte, de preocupações feministas, em Portugal.